Este diário agrupa lampejos, fragmentos de projetos e relatos do processo de vida e pesquisa neste primeiro semestre de 2020 no programa de Residência Artística da Fundação Armando Álvares Penteado – FAAP, alocado no Edifício Lutétia, que está situado na Praça do Patriarca, centro de São Paulo. Compreendendo o período de 05 de fevereiro a 08 de julho, previ inicialmente realizar uma série de performances no espaço público e experimentar o desdobramento dessas ações em escrita e instalações – sonoras e objetuais. Esse já é um procedimento cartográfico que venho experimentando ininterruptamente nos últimos quatro anos: é a inter-relação entre performance e escrita que tem norteado minha pesquisa sobre arte da performance e mobilidade urbana, a partir do que experiencio como pedestre, “usuário” de transportes coletivos, espectador e performer.
Na residência, tendo pela primeira vez um ateliê para trabalhar, acrescentaria ao trânsito entre esses papéis o deslocamento dos trabalhos entre espaço público e estúdio, também estimulado pela metodologia desse programa de residência, que possibilita a produção nas oficinas da FAAP e nos estúdios onde moramos no Lutétia. Acrescentaria, assim, o viés “instalativo” à pesquisa. No final de março, contudo, o isolamento social como medida urgente e necessária no contexto da pandemia do COVID-19 revirou qualquer planejamento ou possibilidade de produção. Assim, gostaria que você lesse este diário como uma conversa que se sucede por diferentes semanas, na maioria das vezes no parapeito da janela do meu estúdio ou na sacada do último andar deste prédio de oito pavimentos. Por vezes, com todo cuidado, caminharemos nas ruas: no presente, escutando diálogos, descrevendo cenas banais, formulando ações… E no futuro, prevendo corpo e materiais em performance nas ruas. Nos dois tempos, de certo modo, também estamos olhando para o retrovisor. Talvez seja melhor nomearmos essas conversas como atravessamentos, já que a precisão temporal, neste agora em que nos falamos, virou um falso problema e os temas vão se aninhando com os desejos e urgências. Antes de seguirmos para os tópicos, gostaria apenas de pontuar que atravessamos desde o Brasil, país em que o investimento na morte é explicitamente a plataforma do que ainda chamamos “governo”, e é exatamente por isso que pensar, fazer e compartilhar arte é, agora, mais do que sempre, uma questão de vida.
24 x 108 x 41
Assim que cheguei na residência, senti a necessidade de, antes de pensar em qualquer projeto, rever os trabalhos anteriores, entender como se agrupavam, aproveitar o espaço para espalhar os materiais, testar composições, pensar se nos trabalhos havia séries… Além, é claro, de prosseguir um método de pesquisa que é essencial para mim: perambular observando especialmente ambulantes, ciclistas, skatistas, carroceiros, artistas de rua, religiosos… Corpógrafos que geram outras lógicas de tempo, espaço e mobilidade. Em uma dessas caminhadas, ao voltar para casa e pisar na borda da Praça do Patriarca, avistei um homem entrando no carro enquanto outro fazia piadas sobre o número que compunha a placa do veículo:
“- Tinha mesmo que ter 24, né? Número perfeito pra você!
– Isso aqui foi um descuido, a mulher se apaixonou pela cor, caí na dela. Mas 24 tem mais a ver é com você, irmão. Deve ser bem o número da tua casa, conta aí!
– Que nada! Aproveita que o carnaval é semana que vem e se fantasia de bambi pra desfilar nesse carro”.
Subi as escadas e, antes de entrar, reparei bem que o número do meu estúdio era 24 pelo avesso, 42. Mesmo com dois sinais em sequência, passei dias relutando em retomar 24, performance de longa duração que realizei em 2016, e que eu nunca havia conseguido transformar em texto, nunca havia parado de verdade para lidar com seus registros, rastros e resíduos. Ao longo de 2016, durante os meus 24 anos de idade, encontrei na cidade do Rio de Janeiro – aleatoriamente nas ruas ou em situações combinadas por amigos em comum – homens chamados Fábio, desde que eu não os conhecesse ou tivesse ligação com eles. Com o argumento de ter uma “conversa em público sobre irmãos”, dividi a relação que carrego com Fabinho, meu meio-irmão mais velho, filho só do meu pai, gay como eu e suicidado aos 24. Uma performance-rito-de-passagem no ano em que eu ficaria mais velho que meu irmão mais velho, em que atravessaria a idade cujo número é popularmente atrelado à imagem do “veado” e à condição de ser “viado”.
A origem dessa estigmatização dos homossexuais através do número 24 no Brasil remonta ao século XIX, quando, na cidade do Rio de Janeiro, inventou-se a loteria popular Jogo do Bicho, no qual cada tabela numérica era associada a um animal do zoológico municipal. A de número 24 foi preenchida pelo veado, animal conhecido por manter relações homoafetivas aos olhos do público no zoológico municipal, além de ostentar um jeito garboso, que é normativamente desassociado do masculino. A obviedade inerente à discriminação é de ordem discursiva e fonética: veado – transviado – viado; vinte e quatro – vim de quatro, correlações do moralismo e da fragilidade hétero-masculina que se estendem até os dias atuais, demonstrando como ditos populares e discursos de ódio têm uma semelhante vitalidade linguística [1]. Dois séculos após a criação do Jogo do Bicho, o número ainda é motivo de chacota em conversas corriqueiras nas ruas e não só: o Congresso Nacional, até 2019, não tinha ocupado o gabinete de número 24; ano em que também um vereador virou notícia, no mesmo Rio de Janeiro onde se originou o xingamento, ao se recusar votar uma lei por ocupar a posição 24 na chamada; e no futebol a camisa 24 não existe, a não ser nos campeonatos mundiais, quando é obrigatória a presença do número, sendo destinada a reservas ou jogadores de outras delegações que passam a atuar nos times brasileiros. Não por acaso, uma das primeiras notícias esportivas de 2020 é sobre um jogador estrangeiro que, admitido num time brasileiro, foi orientado a deixar de lado a camisa 24 que representava em seu país, com direito a técnico de futebol soltando gracejos homofóbicos em coletiva de imprensa.
No mês de março, me dediquei integralmente a tentar pôr em palavras a performance de 2016, rememorando os encontros com cada Fábio, acrescentando àquela escrita, quatro anos depois, reflexões que tive sobre vida e morte ao caminhar pelas ruas de São Paulo, ao avistar a cidade pelas minhas janelas, ao abrir os noticiários e entender das piores maneiras que vivemos tempos limítrofes [2]. Pesquisar sobre suicídio nestes tempos pandêmicos, com os índices aumentando, sobretudo entre a comunidade LGBTQI+, foi inevitável. Conto para você que, ao menos nos dias de março que visitei o chat 188, que no Brasil atende pessoas que estão pensando em se matar, o chat registrava de quarenta a oitenta pessoas online, em diferentes horários do dia. A cada dezesseis horas, neste mesmo país, alguém foi morto ou decidiu morrer por conta do gênero e da sexualidade. Somente nas minhas redes sociais, soube de três pessoas LGBTQI+ suicidadas. (Parece extremamente preciso converter o substantivo suicida em suicidada, ainda mais quando se trata de grupos perseguidos, pois é necessário demarcar a agência da sociedade sobre essas mortes. Também me parece preciso cuidar linguisticamente para não resumir essas vidas ao ato de morte: para além das extensas e plurisseculares discussões filosóficas sobre existencialismo e livre-arbítrio, trata-se de afirmar a vida, já que os suicidados viveram uma vida que não se resume à morte, e viver uma vida, apesar de tudo, É).
Inevitável também foi, ao dissecar o 24, pesquisar sobre a utilização de números como expressões populares de estigmatização. Nesse processo de pesquisa, particularmente em relação aos gays, lembrei do caso dos 108, no Paraguai. No país fronteiriço, historicamente vilipendiado pelo Brasil, a utilização do número em placas de carros, em fachadas de casas e em portas de apartamentos é proibida por lei. Essa tentativa de apagamento de memória remete ao ano de 1959, quando no mês de setembro um locutor de rádio, homossexual, apareceu morto e carbonizado em sua residência. As bases repressoras da ditadura militar, nas quais estavam incluídos os veículos de comunicação apoiadores do regime, espalharam que se tratava de um crime entre pares, um acerto de contas entre “homens de condutas sexuais e comportamentais duvidosas”. Em suma, 108 homens gays foram catalogados, perseguidos, caçados e torturados. Listas com seus nomes foram coladas e distribuídas na capital Assunção e em outras partes do país. Hoje, mais de meio século depois, se as leis proíbem sua utilização e sua enunciação ainda significa xingamento e chacota nas ruas, há também uma reivindicação do número como símbolo de luta, operando uma reescritura histórica latente e irrefreável. O ativista e pesquisador da área de Direito Erwing Augsten Szokol tem, há anos, liderado um movimento de resgate da memória dessas vítimas do terrorismo de Estado, o que inclui publicações [3] e a manutenção, por alguns anos, de um espaço de resistência cultural LGBT chamado Mansión 108. Outro sensível e fundamental trabalho foi realizado em 2010 pela cineasta Renate Costa. No documentário Cuchilo de Palo [4], ela investiga a vida de seu tio paterno Rodolfo, homem gay torturado após ser incluído numa nova lista de 108 feita pela mesma ditadura militar, mas nos anos 1980.
No México, há o correlato 41. No dia 17 de novembro de 1901, a polícia recebeu uma denúncia anônima informando que no Centro da Cidade do México ocorria um baile secreto com 42 homens, estando metade deles vestidos com trajes femininos. Um deles, que segundo a narrativa popular era filho do presidente da época, foi absolvido das punições, ao contrário dos demais, que ficaram estigmatizados pelo episódio conhecido como “El baile de los 41 maricones”. Os atos repressores incluíram prisões, humilhação pública com os homens obrigados a varrer as ruas da cidade com os trajes femininos que estavam vestidos na festa, além de admissão obrigada no exército nacional aos que eram mais pobres e, portanto, sem possibilidade de recursos jurídicos. O número 41 segue, até os dias atuais, sendo enunciado nas ruas mexicanas como maldizer aos homossexuais.
No processo de pesquisa na residência em torno desses números, o projeto se desdobra em texto, performances e na prevista confecção de uma “escultura” composta por bandeiras e molde de metal do meu próprio tronco para a realização de uma performance intitulada 24 x 108 x 41, que consiste no seguinte programa: criar uma prótese de metal, semelhante a um corselete ortopédico, a partir de um molde em gesso do meu próprio dorso, precisamente a região entre os peitos e as costelas. Nessa base escultórica, abrir três furos onde serão encaixadas três bandeiras. As bandeiras serão serigrafadas, respectivamente, com os números 24, 108 e 41. Os pontos de encaixe equivalem às coordenadas de latitude e longitude do epicentro da Praça do Patriarca em direção às cidades do Rio de Janeiro, Assunção e Cidade do México. Os tecidos são colocados em hastes de PVC, que são, por seu turno, insertadas na escultura de metal. Vestir a escultura e permanecer por até oito horas no centro da Praça do Patriarca movimentando as bandeiras com a respiração, movimentando os números que disparam possibilidades de existência plurais e adversas ao enfadonho projeto de masculinidade anunciado pelo próprio nome da praça. Um gravador de áudio estará acoplado ao corpo para registrar possíveis interações dos transeuntes disparadas pelos números, pelo gesto ou pelo paradoxo, tanto da prótese, que prende e protege, quanto das bandeiras, que se lançam e perfuram.
Antes disso, planejei desdobrar o texto 24 numa nova performance ao serigrafar 24 camisas amarelas, de tamanhos P a GG, o número 24 estampado nas costas em tipografia de carimbo. Vestido com uma das camisas, transitarei nas ruas do calçadão comercial, que são perpendiculares à Praça do Patriarca, abordando homens de diversas idades para partilhar minha história em torno do número e presenteá-los com uma camisa. Aos que aceitarem, solicitarei que vistam e que posemos para uma foto que registrará nossas costas enquanto “encenamos” um gesto de camaradagem, como fazem os jogadores de futebol em fotos oficiais, entrelaçando os braços nos ombros. Um gravador de voz estará acionado durante toda a performance. Planejo expor o conjunto dessas fotos com o número estampado nas costas, bem como as fotos das costas dos homens que recusarem a camisa, além de um áudio editado registrando as conversas nas ruas durante a ação. Haverá um homem mais jovem que eu que, de costas, me mostrará o dedo do meio. Outro, bem mais velho, primeiro sorrirá, depois me escutará atenciosamente e vai vestir a camisa me abraçando na sequência. Um guarda municipal negará, pedindo que eu não atrapalhe seu trabalho. Homens anunciarão que estou distribuindo camisas, alguns aceitarão me ouvir só pela camisa, outros retrocederão ao avistar o número estampado. Haverá um que mandará que eu enfie a camisa no meu cu, outro que se emocionará lembrando do vizinho morto a pedradas. Um deles aceitará me ouvir e receber a camisa, afirmando que dá moral ao que faço, mas que não a vestirá em via pública. Três homens tomando chopp pós expediente zombarão quando eu passar vestido com a camisa, e eu voltarei para conversar com eles. Para todos, com todos e entre todos, estarei na escala 1 a 1 começando a reivindicar o número 24 como símbolo de vida, refazendo, ainda que timidamente, a oralização de uma narrativa fincada no ódio camuflado de “humor”.
(des)Estabilidade
Em 2017, no âmbito do festival Atos de Fala, caminhei de costas pelas ruas do centro do Rio de Janeiro, equilibrando essa bandeira em mãos, como se ela fosse um corpo carregado. Aos meus lados, dois amigos e artistas, André Rodrigues e Felipe Ribeiro, empunhavam as pás na posição ombro-arma. Cada porção de terra encontrada ao longo do caminho, em canteiros de árvores, entulhos de obras, era recolhida com as pás e despejada sobre o tecido. No decorrer das duas horas em que andávamos de costas, vendo em zoom out a cidade que não para de acontecer, a terra ia tingindo com certa opacidade a palavra ESTABILIDADE, bordada em azul petróleo e na diagonal, de modo que, para ser lida, era preciso curvar levemente o pescoço, sair da retidão que é da correria, da cidade e do trabalho. A performance se chamava ré Pública. Agora, em 2020, neste momento em que converso com você, eu me encontro isolado socialmente na residência artística da FAAP, no centro de São Paulo. O dia da minha chegada coincidiu com o começo da reforma do telhado do prédio vizinho, exatamente paralelo ao meu estúdio. Diariamente, de dois a cinco homens ficam estáveis em cima do teto, desafiando a geometria de inclinação, instalando, parte a parte, estrutura por estrutura. Desde o dia em que se instaurou a quarentena, cerrei as pás no chão e pendurei a bandeira nas janelas. Passei a gostar de olhar os prédios por trás do tecido. Gosto de encarar o substantivo estabilidade, essa ficção tão gasta em nossa discursividade bamba. Estabilidade nessa diagonal, sempre decrescente, em direção ao chão, prestes a ser sepulcrada. Miro a palavra e a cidade além da janela para me perguntar como, o que e por que seguir criando artisticamente neste momento. Nós, artistas, trabalhadores adjetivados como muitos outros como autônomos, em nossa maioria historicamente distanciados justamente desta prática, estabilidade. Qualidade daquele que é estável. Solidez. Segurança. Permanência e duração. Oriunda do latim. Fir-me-za, habilidade de ser firme. Se há três anos uma reforma trabalhista varria do país a solidez de muitos autônomos, forjando a preservação de uma estabilidade econômica, hoje a sordidez desse discurso ainda mais se escancara. Daqui, enquanto vejo a palavra e a cidade para (me) indagar como seguir, eu te conto que os homens seguem estáveis na diagonal do telhado, dia após dia, como se a cidade estivesse imune, ou como se fingisse que eles estão. Caminham de um lado para o outro carregando vigas de madeira, placas metálicas e telhas que, nos ombros, pesam outro homem. Por vezes, uma perna sai do eixo e eles pendem para a direita, sem cordas ou equipamentos para evitar a queda num vão entre nossos prédios que, felizmente, nunca acontece. Minhas mãos seguem suadas pelo susto, mas minha atenção é fisgada pelo helicóptero de uma emissora passando rasteiro, como se quisesse acordar o comércio de portas cerradas. Uma planta brota na fachada de um prédio, que tem o número 1926 selado no concreto tombado. É o único sobrado da região, aparentemente, em que existe moradia além desse prédio da Residência, e todos os dias há uma mulher que esforça braços, ar e língua entre os dentes para abrir uma janela que, no entanto, só desemperra pela metade. Enquanto você e eu a olhamos, parece que é a própria cidade quem nos pergunta quantas mulheres e quantos homens foram necessários para erguer as caixas d’água que reinam pesadas sobre os arranha-céus. Ainda é possível avistarmos três ou quatro funcionários de um call center, sem máscaras ou qualquer proteção da ordem do dia, trabalhando para daqui a um tanto correr em direção ao subsolo do metrô em horário de pico. O silêncio dessa cidade sitiada finalmente estronda a insutileza sonora da desigualdade. Os ferros arrastados em alguma reforma, as marteladas dos pedreiros, o catador que aproveita o peso da carga em sua carroça para brincar no meio da praça, dando umas corridinhas e tirando os pés do asfalto, pendurando o tronco no puxador, deixando que a própria carroça siga autônoma. Há uma caixa de som acoplada no veículo-trabalho, que nesse momento ecoa o refrão yeah yeah, do estadunidense Usher. Há uma britadeira abrindo algum asfalto perto de nós, enquanto os cães que vivem com as cada vez maiores dezenas de desabrigados na Praça ladram sem ser atendidos. São sons emitidos para nos lembrar que cidade e cuidado são conceitos verticalizados. No Banespão, espigão de concreto símbolo de São Paulo, hoje denominado Farol Santander, há uma lâmpada, lá pelo vigésimo e tanto andar, que esqueceram de apagar. No topo do prédio, a bandeira de São Paulo segue altiva com o vento, como se houvesse orgulho e motivo para flanar. O centro cultural decidiu que era a época perfeita para fazer a manutenção da fachada. Aqueles quatro ou cinco homens, amarrados por cordas que descem do terraço em direção ao térreo, descascam a pintura, revestem, pincelam nova camada de tinta. O helicóptero volta a passar, agora muito perto deles, que soltam as mãos e os pés da estrutura do prédio, confiando o peso de seus corpos à corda de segurança, flutuando sob o helicóptero, não sei se por susto ou por estupefação. Em um arranha-céu mais modesto estão dois trabalhadores com quepes amarelos na cabeça, talvez sejam bombeiros civis, puxando uma corda lançada para a janela do andar de baixo, da qual a penumbra só nos revela três mãos, um objeto de ferro com… Ih! É uma balança, acredita?! Uma balança chegando no topo de um prédio. Objeto-síntese da propriedade física estabilidade. Num desterro de justiça, talvez nos caiba tomar as rédeas do entendimento de que nossa autonomia só recupera sentido se revermos peso e densidade de algumas palavras. Imunidade, impunidade, corporativismo, patrulha, comunhão, demofobia… Listo essas palavras para você e lembro que pretendi, num trabalho sem título, jogar lençóis serigrafados com esses termos do topo da central de polícia, da igreja católica, do Lutétia e da própria Prefeitura, que, estáveis, não enxergam o que acontece na própria praça que circundam. No epicentro da praça, uma mulher equilibra uma mala de roupas na cabeça. Parece pesada, e vez ou outra ela abre os braços e curva um pouco os ombros, para continuar caminhando reto, dobrando na rua à direita para repousar sob alguma marquise, impedida de saber sobre auxílios ou emergências. Enquanto trocamos esta conversa inaudível, aquele que infortunadamente é a voz do Brasil para o mundo se esquiva da responsabilidade sobre os mortos e sobre os vivos, afirmando que não é coveiro. Você estala os dedos nos meus olhos, atinando que me perdi entre dados e atualizações, dizendo que, no Brasil, já é coisa de um cadáver por minuto todos os dias. Quando cerramos nossas pás diante da barbárie, explicitando que nunca nos resolvemos com o passado, é uma ideia de futuro espraiada em país que constantemente se enlutece.
Imbandeiramento/A invenção do Sudeste
A Residência Artística da FAAP está situada às margens do Vale do Anhangabaú. “Anhangabaú”, como é ironicamente comum na cidade de São Paulo, é uma das tantas palavras que revelam como os povos indígenas se fincaram linguisticamente num território que se constituiu pelo derramamento de seu sangue e por contínuos e sucessivos apagamentos de sua existência. Diz-se que “Anhangabaú” se traduz como “rio de mau espírito” ou “rio dos malefícios do diabo”, o que remete ao rio, hoje soterrado pelo vale, onde corpos de indígenas eram jogados pelos bandeirantes, homens que, para caçar ouro e outras pedras preciosas, descampavam aldeias, decapitavam índios, estupravam mulheres e crianças, escravizavam. São esses os homens que ainda figuram em narrativas históricas, e no empurra-empurra oral da cidade, como símbolo de força e heroicidade, já que supostamente saíram de São Paulo em expedições para “ampliar o território brasileiro”. São Paulo está repleta de tributos a esses facínoras: entre estátuas, praças e ruas, são centenas. Só o mais volumoso deles tem 15 metros de largura, 12 de altura e 50 de extensão, com 240 blocos de granito pesando cada um 50 toneladas. A exaltação aos bandeirantes é o regionalismo mor de São Paulo, cidade que, quatro séculos depois do início do martírio praticado pelos bandeirantes, se firmou como capital do capital justamente pela exploração do trabalho de retirantes e imigrantes, que a ergueram, também com sangue. Regionalismo, não por acaso, é uma palavra que a arte/crítica cultural paulista, sudestina por excelência financeira – o word ainda não reconhece dicionaristicamente o adjetivo sudestino –, adora empregar principalmente a artistas oriundos do Norte e do Nordeste para constantemente nos lembrar qual lugar histórico está reservado para nós nesse território, que segue produzindo rincões, interiores, lás e longínquos para seguir c(h)ancelando discursos. Essa bandeira amarela, que momentaneamente se crava diante dos arranha-céus do centro de São Paulo, tem duas frases bordadas em tupi-guarani, escritas a partir do poema “Descobrimento”, de Mário de Andrade. Na primeira metade do século XX, escreveu ele:
Abancado à escrivaninha em São Paulo
Na minha casa da Rua Lopes Chaves
De supetão senti um friúme por dentro.
Fiquei trêmulo, muito comovido
Com o livro palerma olhando pra mim.
Não vê que me lembrei que lá no Norte, meu Deus!
Muito longe de mim
Na escuridão ativa da noite que caiu
Um homem pálido magro de cabelo escorrendo nos olhos,
Depois de fazer uma pele com a borracha do dia,
Faz pouco se deitou, está dormindo.
Esse homem é brasileiro que nem eu.
Essa bandeira amarela tem o último verso do poema – Esse homem é brasileiro que nem eu – e sua reconstrução – Esse homem é brasileiro antes d’Eu – bordados em tupi-guarani, fechando um losango ligado por duas linhas em vermelho vivo, com uma seta branca ao centro, atravessada por arcos. Ao produzir essa bandeira, nos dias derradeiros que antecederam a quarentena, pensei em realizar uma performance caminhando de costas por toda a região do Anhangabaú – vale, ruas do entorno e viaduto do Chá, segurando o tecido bordado como um corpo. Enquanto caminhamos de costas pelo Anhangabaú, talvez conversemos que o poeta lembrou do homem pálido do Norte, mas não necessariamente descobriu que há incontáveis dele soterrados e vivos na sua própria cidade, cuja síntese de um martírio constante fantasiado de progresso pode ser o próprio Vale do Anhangabaú. De um lado, uma reforma urbana que higieniza-gourmetiza-gentrifica, trocando bancos espaçosos e pistas de skate por cafonas luminárias e fontes aquáticas; do outro, uma bandeira imensa do Brasil hasteada por milhares de reais, por associações privadas e pela prefeitura, para comemorar os 465 anos da cidade com um projeto chamado “Embandeirando”. Ao centro, o próprio prédio da Prefeitura, robusto e altivo demais para assistir à multidão de corpos miserabilizados que ocupam as praças, vitimados por fome e por descaso, ainda mais agora. Miserabilizados e não miseráveis, porque é preciso tomar parte já no nível da palavra para cessar o aniquilamento histórico que reforçamos a cada vez que falamos e andamos. Deveríamos caminhar por aqui com a ciência de que nossos pés seguem atropelando camadas de mortos e de vivos, de visíveis e não visíveis: corpos, águas, seres, coisas. E memórias. Caminhar por aqui com a responsabilidade sobre a multidão de sangue petrificada em ruas e estátuas. Sobretudo nós, brancos, caminhando ilesos sobre a cidade e por todos os lados, onde e como estamos empenhando nossos corpos contra a perpetuação dos genocídios que se refletem também em nossas mãos, pés e vozes? Pergunto isso em voz alta no meio do Viaduto do Chá, e um homem com a Bíblia nas mãos revira os dedos na altura da cabeça, enunciando gestualmente minha loucura ao falar sozinho. Paro e vejo a tal bandeira brasileira fincada na paisagem da cidade em tributo aos bandeirantes. Mais do que substitui-la por um tecido com a palavra IMBANDEIRAMENTO, não deveríamos praticar o mínimo de dignidade histórica e perguntar a quem pertence esta terra o que deve flamular acima de toda uma cidade? Caminho de volta à Residência, mas antes paro numa farmácia. Ao responder “débito”, a funcionária do caixa me pergunta de onde eu sou. Recife. “Que bacana! Está por aqui a passeio ou a trabalho? […] Ah! E você não quer voltar pra sua terra?” Pego a nota fiscal e ajeito a máscara no meu rosto, sem responder, mas desejando boa tarde. Subo as escadas, entro no estúdio, e inverto a bandeira para a posição vertical, tentando quebrar um pouco mais o losango-testemunho da bandeira do Brasil. Por hora, passo a preferir o objeto nessa posição, embora aproveite para te contar, encostado no parapeito da janela, que penso que as bandeiras são, muitas vezes e por si só, um substrato de fantasmagoria cintilando em pontos altos das cidades. O maior problema delas é, assim como as estátuas, esconder a história dos “vencidos”. Olho mais uma vez para a bandeira e penso que, nos próximos meses, ela se insira numa série de chamada A Invenção do Sudeste, com bandeiras que talvez reúnam regionalismos que não se assumem como pertencentes. Agora, enquanto penso por que não respondi à funcionária sobre o retorno à “minha terra”, lembro que preciso ir aos transportes públicos de São Paulo para continuar outra série mais urgente para mim: Transportadores [5]. Escrever e gravar cartas em movimento destinadas à minha avó, imaginando seus percursos como retirante nesta cidade nos anos 1940 e 1950. Remeter cartas sonoras ao passado, utilizando os transportes como emissores temporais, talvez me traga a compreensão de que, sendo nordestino, é preciso caminhar pelo Sudeste atento até aos advérbios de lugar que saem de minha boca, afirmando que aqui também é lá.
C(h)ancela
Nesse projeto, tomando como referência as larguras das ruas do calçadão perpendiculares à Praça do Patriarca, bem como o intenso fluxo pedestre no cruzamento entre Patriarca, Rua São Bento e Rua Direita, encaixarei um tecido numa vara de PVC de 3 m. A vara estará disposta horizontalmente e sustentada na altura de minha cintura por uma prótese de metal onde será encaixada. Nas duas extremidades do tecido estarão estampadas em tipografia de carimbo, na frente e no verso, respectivamente, as palavras “ré” e “futuridade” (outras versões terão outros pares antitéticos, bem como folhas de papel metalfilm, que são um espelho, no lugar do tecido). O título do trabalho é uma junção entre os termos “cancela” e “chancela”, que são disparados, respectivamente, pelo teor de obstrução de passagem impelido pela dimensão do material e pela tipografia de carimbo em fonte Elementa Bold. A proposta é me locomover e parar portando essa vara de 3 m, operando as negociações necessárias com os espaços de passagem, recoreografando os transeuntes.
Línguas Especulares
Com folhas de papel metalfilm dispostas verticalmente, fazer uma instalação em via pública, jogando com a relação entre espelhamento (provocado pelo papel) e arquitetura em vias de intenso fluxo. Para essa primeira realização, a “língua” de espelhos será instalada no viaduto da Ladeira General Carneiro, paralela ao Pátio do Colégio, há algumas quadras da Praça do Patriarca. Irei imprimir em serigrafia verticalmente na superfície das folhas de metalfilm a frase “O outro nunca se apresenta de frente” [6]. A foto abaixo é apenas o registro de um primeiro estudo técnico no local, e há apenas uma folha. Para entendimento da escala, são doze folhas dispostas verticalmente, unidas por ilhós e fios de nylon transparentes. Minha intenção é que Línguas Especulares seja um trabalho instalado em outros viadutos e vales da(s) cidade(s), com e sem frases serigrafadas. Formulando esse programa aqui na Residência, percebi que o espelhamento é uma materialidade conceitual que está perpassando meu trabalho, quer seja nas performances Bando Recíproco, em que puxo um carrinho com espelho acoplado pelas ruas da cidade, e Fa(r)dado, em que jogo centenas de envelopes vermelhos contendo cartões metalfilm com frases impressas em serigrafias, quer seja em performances como Massa Ré [7], em que, andando em coro de costas nas ruas das cidades, é um gesto de retrovisor para a história que se assume corporalmente.
Escrita / de Sacada /
No meio dessas conversas-atravessamentos, é bem provável que tenha me esquecido de confessar que muitos desses dias em residência foram acometidos por um silêncio ensurdecedor, digo, por uma ausência constante de sentido, como se o país por fora dessas janelas se empenhasse de modo ininterrupto em arrancar os nortes de o que, como e por que ser e fazer. Estou debruçado nos parapeitos do ateliê coletivo do oitavo andar dessa Residência, com várias folhas de papel, escolhendo a cada vez uma pessoa presente na praça – um guarda municipal ao telefone; um homem desabrigado deitado no meio da praça, fazendo as próprias muletas de travesseiro, levantando a vista todas as vezes que um pombo, um veículo ou alguém passa muito perto do seu corpo; um grupo de mulheres andando simetricamente cadenciadas etc. – até que desapareça de minha vista ou minha atenção seja fisgada por outro corpo. Tento escrever na velocidade da cidade, inacreditavelmente cheia numa curva ascendente de mortes, e desconfio se entenderei minha própria letra e por quanto tempo aguentarei rascunhar essa escrita, que é mais de vertigem do que de sacada.
Quando tento pontuar estas páginas e finalmente perguntar para você o que se vê e se escuta das sacadas de sua janela, os dias são marcados: por um menino de cinco anos caindo de 35 metros de altura, assassinado pela “patroa” da mãe, cujo ato-sucessão de negligências só escancara o racismo estrutural que impede qualquer futuridade neste país, qualquer sentido; por um novo recorde de mortes contabilizadas por COVID-19 em apenas 24 horas – 1.473; pelas ameaças crescentes de um fascismo eleito democraticamente, mesmo que por vias criminosas, que explicitamente quer outorgar o autoritarismo militarizado como forma de governo… No meio dessas ausências de sentido, um último aforismo dispara neste diário, como uma escuta de dentro do corpo para fazer coro ao chamado coletivo por afirmação de vida e, inexoravelmente, agir, fazendo e sendo. Esse aforismo é uma explicação de epifania sem ninguém pedir:
Intuição como ciência de si
NOTAS
[1] Este é o argumento central de um trabalho anterior a 24, também de 2016, chamado Gota. A partir das expressões populares “gota d’água” e “gota serena”, construí um texto que relata a caminhada de duas horas que fiz com um balde vermelho com capacidade para 13,6 litros, coletando água das pessoas na rua para eliminar a pichação “Viado bom é viado morto” inscrita num banheiro masculino em comemoração ao assassinato de um estudante homossexual. Um registro de uma das performances com esse texto pode ser conferido em: <https://www.youtube.com/watch?v=7hW2XYYnTj4>.
[2] “24, vi-vos” é o título do texto que elaborei a partir deste processo de pesquisa. Ele integra a série “Tabloide”, da Plataforma Parêntesis, editora coordenada por Regina Melim e Gabi Bresola. A série de textos está disponível em: http://www.plataformaparentesis.com/site/tabloide/
[3] Conferir: <https://108memorias.files.wordpress.com/2013/06/108-ciento-ocho.pdf>.
[4] Disponível em: <https://www.youtube.com/watch?v=FmMVbXujw40>.
[5] Você pode escutar o primeiro experimento dessa série, “Carta a 1948”, escrita e gravada nos trens do Rio de Janeiro em 2018, aqui: <https://soundcloud.com/elilson-237842477/carta-a-1948-elilson/s-xrWlt>.
[6] Frase extraída de texto do filósofo Maurice Merleau-Ponty, citado pela psicanalista Tânia Rivera na série de lives Janelas Abertas, promovida pelo NEP – Núcleo Experimental de Performance, da UFRJ.
[7] Maiores detalhes sobre esses trabalhos podem ser conferidos nos materiais disponibilizados em meu site: <www.elilson.com>, ou em: <https://galeriavermelho.com.br/sites/default/files/artistas/pdf_portfolio/Elilson%20_0.pdf>.
PARA CITAR ESTA PUBLICAÇÃO
ELILSON. “Diário de uma Residência Artística em Contexto de Suspensão”. eRevista Performatus, Inhumas, ano 8, n. 21, jul. 2020. ISSN: 2316-8102.
Revisão ortográfica de Marcio Honorio de Godoy
Edição de Mãe Paulo
© 2020 eRevista Performatus e o autor
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