Seis Ações para Não Morrer

 

Texto escrito para palestra realizada no seminário (Im)perfeições na Arte, realizado em parceria entre o SESC Bauru e o curso de Artes Visuais da Universidade Estadual Paulista/Campus de Bauru.

 

Francis Alÿs, frame de Game Over, 2011

 

APRENDER A ENTREGAR

Começo com uma pergunta simples: quantos de nós (ou de nossos pais e familiares) já nos endividamos para ter um carro? Esse objeto, cuja promessa de melhoria da locomoção está vinculada ao desejo das formas e do poder social que ele promove, moveu e move montanhas até hoje. Posso me lembrar das longas discussões (e posteriores dívidas) empreendidas pelos meus pais para sempre estar com um ou dois carros na garagem, sempre em manutenção, sempre limpos, sempre lustrosos. Posso me lembrar do desejo de meus pais por dois carros, símbolo de autonomia e independência entre o casal.

Posso também me lembrar de que quando minha mãe morreu sobrou um carro vermelho (e um pouco capenga) para ser cuidado, resto de inúmeras viagens entre São Paulo e São Bernardo do Campo, agora uma carcaça estranha para mim, que nunca dirigi. Mas me lembro principalmente de um curto vídeo do artista belga Francis Alÿs no qual vemos um trecho de uma estrada repleta de árvores, feito em 2011 no México. Durante seus 98 segundos de duração, vemos um fusca na estrada batendo de frente com uma árvore, amassando sua parte dianteira. Após um tempo, o artista sai de dentro do fusca e anda em direção à câmera, provavelmente por ele posicionada. Em uma breve descrição do trabalho, o artista conta que bateu o carro no Jardim Botânico da cidade de Culiacán.

A frase final da descrição é: a natureza fará o resto.

Desde que minha mãe faleceu só penso a arte como um modo de aprender, coletivamente, a morrer melhor. Encontros de ordem física ou objetual com nossa crescente aproximação ao fim de tudo. O fim dos nossos corpos, mas também o fim dos objetos que ficam, de uma democracia que se encontra em esgotamento, de um ecossistema que agoniza em alto e bom tom. Entregar um carro de volta à natureza, para ser tomado pelas raízes, pelo menos em nossa imaginação, é a minha primeira lembrança de como a arte pode criar espaços de fracasso dentro da lógica irrefreável de funcionamento do capital. E começo com ela justamente porque ela é algo que jamais irá se concretizar, que é pura potência de imaginação.

Imaginar espaços de fracasso pode ser mais poderoso do que fracassar.

 

Tom Marioni, O Ato de Beber Cerveja com os Amigos É a Mais Alta Forma de Arte, 1970

 

APRENDER A GASTAR

Falei do carro porque com ele sempre vem a dívida. É cada vez maior o número de estudos e ensaios que pensam a dívida como algo inerente ao nosso modo de vida. Nascemos endividados, morremos endividados, sempre temos algo a pagar. Financiamentos, empréstimos: para morar, para estudar, para locomoção. E quando o débito da dívida é encerrado, ganhamos crédito para futuras dívidas.

Ser um bom cidadão e estar dentro da lei é ter a possibilidade de contrair dívidas.

Em um texto, Fred Moten e Stefano Harney propõem que, ao invés do crédito, busquemos um mau débito, excessivo, incontrolável. O que eu mais gosto nessa proposição deles é que não é em qualquer lugar que a gente pode buscar esse tipo de débito, mas sim nas mesas de bar, bares, salões comuns de universidades etc. Ao contrário da progressão acadêmica que acumula créditos, o mau débito é uma interrupção de alguém que está sempre estudando, sempre traçando um plano, produzindo-o em “florestas”, nas “camas”, nos “abraços”. Parece claro que o que os autores colocam é uma afirmação do gasto excessivo de afeto, sem finalidade alguma: comprar um carro para dá-lo a uma árvore, mas também gastar cerveja com os amigos, como Tom Marioni nos anos 1970 em sua performance O Ato de Beber Cerveja com os Amigos É a Mais Alta Forma de Arte. A arte conceitual do período, com a possibilidade então aberta de uma operação artística que estivesse para além da manualidade, mas no discurso e na enunciação, permitiu essa série de gestos que afirmavam (e criavam) o potencial artístico em ações de puro gasto.

Acho que foi Fernando Pessoa quem escreveu que perder tempo comporta uma estética.

Se Tom Marioni bebe cervejas, Francis Alÿs filma crianças da Cidade do México brincando. Trajal Harrel, coreógrafo norte-americano, coloca seus bailarinos para dormir enquanto, acordado, cuida de seus corpos em Cutucar o Gigante Adormecido, trabalho em processo desde 2001. São recusas à demanda constante de produtividade da arte, principalmente da produtividade na qual se reconhece caráter crítico.

 

Fotografia de Harry Shunk e János Kender sobre o processo de Leap into the Void (1960), de Yves Klein

 

APRENDER A CAIR

Como os homens que caem e tropeçam na rua, como Ícaro que perde as asas por se aproximar do Sol, lembro-me de Bas Jan Ader. Bas faz parte de um universo de artistas que caem, iniciado talvez por Yves Klein com seu salto para o vazio de 1960. Se o salto de Klein é pura potência, imortalizando-o no ar como quem permanece constantemente prestes a voar, sua queda é também potência, nunca vista, apenas projetada. Já as quedas de Bas Jan Ader são tolas, mal executadas, fracassadas, feias. Queda de sitcom da pior qualidade. Ele cai mesmo: de bicicletas, de cima do telhado de uma casa, de uma cadeira. Cai sem nenhuma graça, sem nenhum apelo formal. É apenas um corpo aceitando a gravidade. Cai porque não tem quem o ampare, cai porque foi deixado sozinho. Talvez isso apareça em suas frases e títulos, como: Eu Estou Triste Demais para Te Contar Pensamentos Não Ditos Então Esquecidos. Seu impulso destrutivo e melancólico é tão grande, que morre em seu último trabalho intitulado Em Busca do Milagroso. Nele, tenta cruzar o oceano Atlântico sozinho em um barco, com apenas um rádio. Nunca volta.

É ainda no sentido do afeto como gasto que retomo a queda de Yves Klein. Retomo-a a partir da foto original, que penso ser hoje muito mais poderosa que a foto oficial, posteriormente editada. Aqui, vemos uma equipe, talvez seus amigos, prontos para ampará-lo, para impedir que seu corpo chegue ao chão.

O Ato de Criar uma Cama para a Queda dos Amigos É a Mais Alta Forma de Arte, imagino que seria o título dessa outra obra.

É precário, é imperfeito, é um pouco tosco. Mas não é sempre assim? Lembro que em uma das cartas que Lygia Clark escreve para Hélio Oiticica ela constata: “a gente nasce precário, uns apoiados nos outros, uma arquitetura completamente instável, um barraco que de algum jeito misterioso continua em pé”. Penso que essa instabilidade, essa incompletude, é essencial de ser resgatada em nosso entendimento de relação humana.

 

Cristian Duarte, O Que Realmente Está Acontecendo Quando Algo Acontece?, 2017. Fotografia de Mayra Azzi

 

APRENDER A RIR

Em tempos de capitalismo criativo, somos demandados o tempo todo a sermos criativos e críticos, sejamos artistas ou não. Somos bombardeados com perguntas sobre nossos pensamentos mais íntimos e estimulados a colocá-los em público a toda hora, produzindo conteúdo de graça para as mais diversas plataformas. Somos trabalhadores e trabalhadoras da nossa própria crítica. Desejo resistir a isso, desejo resistir ao entendimento de artista como empreendedor de si mesmo e como portador de alguma sabedoria (portanto capital) sobre o mundo que os outros não compartilham. Os projetos para os quais olho aqui têm em comum uma visão ao mesmo tempo muito simples e muito oposta da arte enquanto ferramenta de emancipação social. São trabalhos que criam hiatos, situações provisórias que não levaram a lugar algum no sentido prático. Justamente por isso os chamo de arte. Porque seu campo de operação está no campo do projeto, do exercício de imaginação de outras formas de se fazer política. Uma política onde se gasta, onde se perde tempo, onde a finalidade não determina modos de fazer.

O Que Realmente Está Acontecendo Quando Algo Acontece? é uma performance do coreógrafo brasileiro Cristian Duarte na qual um grande grupo de pessoas performa uma gargalhada muda e coletiva durante uma ou duas horas, em espaços de circulação de público. Não há narrativa, não há explicação. Há apenas um gesto compartilhado, um gesto de pura emoção (mas completamente produzido). Um gesto falso. O que me chama atenção nesse trabalho não é apenas que não se identifica o objeto de sua crítica, mas principalmente que a afetação é compartilhada pelos performers, que são menos propositores e mais vítimas do processo coreográfico, como se não tivessem outra saída a não ser performar o gesto e a emoção do gargalhar.

O performer não é dono da ação, ele é atravessado por ela.

Se nos lembrarmos da noção inicial de verbo performativo, proposta pelo linguista John Austin, podemos perceber que ele é sempre emitido por um indivíduo. O performativo, verbo que transforma o mundo no momento de sua enunciação, ganha seus exemplos quando a noiva diz “eu aceito”, ou quando o jogador diz “eu aposto”. Aqui, primeiramente poderíamos ler,“nós nos emocionamos”, mas, para além,“nos emocionam”.

 

Renan Marcondes, [Em Processo] Como Devoraram Um Prisioneiro e Me Conduziram a Este Espetáculo, 2018. Fotografia de Mayra Azzi

 

APRENDER A (NÃO) VER

Afirmo que a arte deva ser imperfeita porque a vida é imperfeita.

No dia 11 de setembro de 2001, um atentado destrói as Torres Gêmeas nos Estados Unidos.

No dia 11 de setembro de 2017, exatos dezesseis anos depois, minha mãe dorme e nunca mais acorda.

Por isso tento falar sobre um onze de setembro, almejando chegar no outro. O homem em queda talvez seja a foto mais icônica desse dia. Um homem, possivelmente chamado Jonathan Briley, cai às 9h41m15s para sua morte. Não sei em que momento minha mãe parou de respirar, mas imagino que seja nesse mesmo exato momento, para dar carga dramática à narrativa da minha vida. O que importa é que a experiência de se estar de ponta cabeça também faz parte do meu dia, dezesseis anos depois, ao ouvir a informação da morte pelo telefone e ir diretamente para o banheiro vomitar. Palavras emitidas que têm o poder performativo de revirar tripas. O dia 11 de setembro sempre me intrigou, porque ele está tanto vinculado à destruição hollywoodiana de ícones quanto ao amor e dedicação sem limites a uma causa. Sobre ele, o crítico T. J. Clark se faz a seguinte questão, que parece tão importante de ser recolocada nesse Brasil de 2018:

 

Por que os seres humanos, expostos à crueldade e à decepção do presente, parecem ser atraídos inelutavelmente para uma outra versão do “ideal do guerreiro” (ou o do guerreiro combinado com o do autoflagelador): dureza de espírito, implacabilidade, comprometimento irrestrito, isolamento contra a insignificância da vida cotidiana; enfim, uma dedicação à Morte – a fazer, forçar, a história, e a reescrever o futuro de acordo com a escritura de algum funesto Messias? (T. J. Clark. Modernismos: Ensaios sobre Política, História e Teoria da Arte. São Paulo: Cosac Naify, 2007, p. 309)

 

O autor segue com a polêmica afirmação: o espetáculo é um exercício de poder social. Afirmando que os Estados Unidos foram derrotados espetacularmente, Clark afirma que a queda das torres não teve nenhuma eficácia prática, e que na verdade o domínio de força que está em jogo é justamente o domínio da imagem, este que os Estados Unidos sempre dominaram tão bem. Produzimos imagens de tudo, e o ataque imprevisto foi muito registrado e por todos os ângulos possíveis. Digo isso porque as imagens têm muito poder, a ponto de precisarmos entregar um rosto para as pessoas chorarem quando alguém morre, mesmo que costurado e mal maquiado. A violência de 11 de setembro foi também uma violência de imagem. Precisamos de imagens para nos comover, ou, como diria o ditado: “o que os olhos não veem o coração não sente”.

Justamente por isso, olhar para as coisas retirando delas sua dimensão de espetáculo pode ser fracassado no sentido dos afetos, mas essencial para nos mantermos atentos em relação ao modo como essas mesmas imagens foram construídas e enquadradas. Possivelmente isso tenha me levado a iniciar o PROJETO INVISÍVEL, que compreende uma série de ações baseadas na impossibilidade de visão. Lá, os performers são obrigados a tomar o não ver como ponto de partida de suas ações, não apenas aguçando os outros sentidos, mas também compreendendo que ações e situações comuns são possíveis quando retiramos a visão como fator determinante.

 

Fotografia de Cacá Bernardes do processo de filmagem de Zulmira Elizabeth (2018), de Renan Marcondes

 

APRENDER A IMAGINAR

Seria a ação de imaginar algo uma ação entendida como fracassada, como fora de lugar, quando não objetiva um novo produto ou uma melhoria nos modos de vida? Uma imaginação impossível, uma imaginação fracassada, uma imaginação que não transformará o mundo. A mesma imaginação que vê o fusca desmembrado pela força das árvores e olha para a possibilidade de um homem voar.

Não é sobre melhorar a sociedade, é sobre extingui-la por completo.

No meu mais recente projeto, Zulmira Elizabeth, uma pesquisa em dança e vídeo feita também a partir do falecimento da minha mãe em 2017, imagino algo que nunca acessarei: a vida de minha mãe antes de nascer e seu envelhecimento que nunca chegará.

Para imaginar, acredito que é preciso fazer relações arbitrárias entre as coisas, juntar materiais que não conversam diretamente: minha mãe nasceu em 1965 e passou exata metade de sua vida sem ter a mim ao lado dela (pois me deu à luz com 26 e morreu com 52 anos de idade). Para acessar esse enigma de sua vida, fui buscar respostas em um filme lançado no ano em que ela nasceu, deparando-me (não sem ironia) com o filme A Falecida, de Leon Hirszman. No filme, Fernanda Montenegro encarna Zulmira, vivendo em um tempo, vestindo roupas, pegando bondes que eu acredito que minha mãe já tinha visto. A partir desse filme, convido quatro mulheres de diferentes idades (35, 50, 52 e 70 anos) para copiarem os gestos de mão de Fernanda Montenegro. Esses gestos são passados para mim e copiados em cena por Raul Rachou, bailarino que divide a cena comigo e que nasceu em 1951, quatorze anos antes de o filme ser lançado. Em cena, um processo de transmissão de gestos que perdem a precisão do original, mas que fundam um grupo comum a partir do que se viu, se reproduziu e se perdeu. Penso que isso pode ser um modo de não morrer: ensinar e mostrar coisas para outras pessoas e acreditar que elas as levarão adiante.

Talvez isso seja ao mesmo tempo não morrer e produzir arte.

 

 

PARA CITAR ESTA PUBLICAÇÃO

MARCONDES, Renan. “Seis Ações para Não Morrer”. eRevista Performatus, Inhumas, ano 7, n. 20, abr. 2019. ISSN: 2316-8102.

 

Revisão ortográfica de Marcio Honorio de Godoy

Edição de Mãe Paulo

© 2019 eRevista Performatus e o autor

Texto completo: PDF