Por ele eu ponho minha mão no fogo
Still frame de Protetores de Proximidade Humana (2016). Acervo de Renan Marcondes. Cortesia do artista
Quando iniciei o desenvolvimento da série Protetores de Proximidade Humana em 2015, jamais imaginei que algo tão próximo de sua ficção e de seu absurdo pudesse estar ao nosso lado. Nessa série, crio objetos fictícios que auxiliariam na separação humana, tornando assépticas ações básicas de relações afetivas (como dançar, se beijar, dormir juntos etc.). Porém, não apenas os crio, mas os situo em um contexto expográfico falso, acompanhados por textos de parede e vídeos institucionais, como se o público estivesse vendo seu próprio presente de um futuro bem mais distante.
Um dia é da caça, outro do caçador
A série é, ao mesmo tempo, uma tentativa de responder aos objetos relacionais de Lygia Clark como importantes símbolos da promessa relacional e utópica da arte brasileira dos anos 1970, e uma crítica a uma assepsia das relações humanas. Também pensava na época sobre a atual condição desses objetos em contextos museológicos que, apesar de necessária para sua conservação, é tristemente contraditória em relação ao uso que a artista deles fazia.
Como tento sempre fazer em minha pesquisa, a minha resposta ou visão é de ordem negativa, ou seja: não busco superar Clark ou mesmo dar continuidade ao seu projeto, mas sim revelar o espaço vazio que existe entre o que foi proposto em 1970 e o estado atual de nossas relações sociais e da arte contemporânea. Espetacularizada, nossa produção hoje é diretamente informada pelo campo da imagem publicitária, que promete impulsioná-la ou torná-la mais democrática. Basta vermos, por exemplo, a campanha publicitária feita por Marina Abramović para a Adidas em 2014 para vislumbrarmos esse cenário.
Não desejo detectar um fracasso, pois acredito que a utopia da arte da performance em seu surgimento abarcava inclusive essa possibilidade. O que desejo é refletir sobre o potencial mágico dos objetos que estimulam nossos desejos, hoje nos encarando com suas superfícies lisas, brilhantes e acetinadas. Acho que os objetos de Lygia tinham, de certa forma, a cara de seu tempo, com formas simples e orgânicas que faziam da utopia um sonho de retorno à casa, à terra, à mãe. Na época em que fiz o segundo vídeo da série, em entrevista para Márcio Harum, apontei que o que me interessava era o momento “quando se transmuta o mistério do inexplicável em objeto (o ex-voto) ou souvenir” [1]. Imbuir poder mágico aos objetos é parte do segredo dos afetos, estimulando-os a serem algo além do que usualmente são. Essa tarefa, que penso tão artística quanto religiosa, é algo que talvez tenhamos nos esquecido.
O seguro morreu de velho
Penso ser essa minha questão central sobre esse momento: como repentinamente o valor simbólico das coisas foi jogado para cima por uma força invisível cujo apelido carinhoso é morte. De um dia para o outro, voos são cancelados, milhas de cartão de crédito valem nada, o álcool em gel que mal olhávamos nas prateleiras se esgota, as camisinhas param de ser vendidas. Esse foi o mistério que ainda não consegui apontar nessa série sobre assepsia, outrora exagerada mas hoje parte do nosso cotidiano: a criação desses novos objetos nos quais escolhemos crer, que protegem beijos, mas que impedem também tosses e fazem batismos, apenas é possibilitada por uma alteração em todo o sistema de valores que os circundam. Um novo objeto arrasta todos os outros consigo.
Andorinha só não faz verão
Still frame de Protetores de Proximidade Humana (2016). Acervo de Renan Marcondes. Cortesia do artista
Ao invés do autoelogio de achar que a obra foi visionária ou premonitória de um tempo, me parece que esse foi o ponto esquecido, a ser visto daqui em diante. Um contexto de separação suspende todos os valores que antes conhecíamos, e ficamos apenas supondo quais eles poderiam ser. Em 2018, já inebriado pelo espírito das eleições presidenciais no Brasil, coloquei um grupo de performers no meio de uma sala repleta de fumaça para criar a série de vídeos TEATRO, ainda inédita. No momento não sabia bem o que buscava com aquilo, mas hoje esse material me parece tocar mais no nosso momento do que a série dos Protetores.
Imagino hoje pessoas tentando pegar coisas no ar, sendo essa a distância fundamental entre corpos e coisas, enquanto repetem ditados populares. Não é um espaço físico que separa objetos e corpos, mas sim as próprias concepções prévias do mundo e da linguagem que impedem outras relações entre coisas e corpos. Essas concepções, é claro, saltam aos nossos olhos nesses momentos em que forças invisíveis (sendo a morte e mais possível de se imaginar) nos forçam a aumentar a distância que sempre existe entre mim e o outro.
O apego a uma linguagem que mantém valores prévios de mundo, tão bem simbolizado pelos ditados populares, me diz mais respeito ao nosso atual momento do que a materialidade de objetos que limpam e organizam nossas relações. Antes dos novos objetos, uma nova linguagem.
NOTAS
[1] Ver a entrevista citada em: <http://www.pacodasartes.org.br/temporada-de-projetos/2017/artistas/renanmarcondes.aspx>.
PARA CITAR ESTA PUBLICAÇÃO
MARCONDES, Renan. “Quatro Ditados Para um Novo Tempo”. eRevista Performatus, Inhumas, ano 8, n. 21, jul. 2020. ISSN: 2316-8102.
Revisão ortográfica de Marcio Honorio de Godoy
Edição de Mãe Paulo
© 2020 eRevista Performatus e o autor
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