A ficção aparece em minha pesquisa como algo que borra a realidade. Podemos pensar: O que é a ficção? Capitalismo e dinheiro são ficções e, no entanto, viver nesse sistema político e econômico e com suas regras o torna realidade para nós. Astrologia é tida como ficção, mas a Lua, que na astrologia lida com nossas emoções representadas pela água, influencia as marés do mar de acordo com suas fases e, como bem sabemos, nosso corpo é composto por cerca de 70% de água. Logo, a Lua influencia diretamente nossos corpos. É físico, um afeto natural, mas não científico. É dialogando entre realidade e ficção que crio as camisetas Camilla Braga Promo (2019).
Camilla Braga, Camilla Braga Promo, indumento relacional, 2019
Esse indumento relacional intitulado de Camilla Braga Promo é um desdobramento do vídeo Chris Burden Promo (1976), do artista estadunidense Chris Burden. Na ocasião, Burden alugou um tempo na TV [1] e exibiu esse vídeo com fundo azul e letras amarelas onde uma voz mórbida lia os nomes de artistas cânones da história da arte. No fim do vídeo, Burden adiciona seu nome, igualando-se aos outros artistas apresentados no vídeo e causando um pequeno alvoroço, porque na época ele era “o único artista desconhecido” entre os outros apontados em seu trabalho. O espectador daquela época ao ler a lista provavelmente se sentia em desvantagem, porque o contexto dessa lista é a apresentação de nomes de artistas modelos, e um deles é tido por desconhecido para quem lia. Há uma provocação gerada no espectador então de pesquisar sobre quem ele é. Em meu caso, repito o gesto performático de Burden em minhas camisetas Camilla Braga Promo, adicionando meu nome à lista, sendo assim a primeira mulher a aparecer nela. Tem ficção, tem algo de desobediência no atrevimento de me igualar aos tais, mas também tem de realidade: é uma lista de artistas, um espaço em disputa.
Mais tarde, Chris Burden se tornou significativo na cena artística. Ainda não tanto quanto os pintores, mas depois de quase quarenta anos do comercial ter ido ao ar na TV estadunidense, trazer essa lista com o nome de Burden já não é mais tão transgressor. Então a ação de Burden é sobre o tempo também, sobre, por exemplo, há quanto tempo Leonardo Da Vinci é referência na história da arte e o quanto essa temporalidade o afirma. Como menciona o curador Adriano Pedrosa, em seu texto “History, Histórias”, no catálogo Histórias afro-atlânticas, Vol. 1, “a disciplina da história da arte, com suas raízes, estruturas e modelo profundamente europeus, é o aparato mais poderoso e duradouro do imperialismo e da colonização” [2] e ainda aponta como suporte de seu pensamento a afirmação do historiador da arte Steve Edwards de que “o cânone é uma condição estrutural da história da arte” [3].
Sobre as minhas camisetas, acrescentar meu nome e ser a primeira mulher a figurar nelas não foi o suficiente para mim, pois ainda se tratava de uma lista de pessoas tidas por brancas e cisgêneras. Lancei, então, a segunda coleção de camisetas, adicionando à lista o nome da pessoa que a veste, buscando singularidade e diferença, mas também sugerindo que juntas ousemos nos igualar aos “gênios da arte”. É ficção, mas também é realidade.
Legitimação no circuito artístico é uma ficção que afeta como realidade. “Vestir a camisa” significa jogar no time. Acho que somos um time que está jogando uma partida de “guerrilha poética”, como diz Luis Camnitzer, artista uruguaio que discorre sobre arte conceitual e conceitualismo, sendo este praticado na América Latina em condições de flerte com a subversão, criando “uma distância perceptiva do status quo, uma que solicita reavaliação e induz a vontade de fazer mudanças” [4]. Penso, então, nessa guerrilha poética. Hakim Bey nos fala da TAZ: Zona Autônoma Temporária, que diz respeito a lugares temporários, não mapeados pela vigilância do sistema vigente, onde os participantes são livres dentro desse contexto. Trata-se de espaços de liberdade em movimento: não são estáticos, mas circulam surgindo e sumindo antes de serem mapeados. Nesse sentido, penso os indumentos relacionais como um trabalho que dialoga com o movimento da TAZ: os usuários as vestem e caminham pela cidade, assim elas circulam em praças públicas, entram nas casas das pessoas e estão no circuito de arte, em vernissages. Tal movimento acaba ganhando feições de um tipo de guerrilha, em que o soldado escolhe se vai usar a camiseta, quando, onde e relativamente para quem. Elas se tornam um vírus na cidade, não podem ser mapeadas nem mesmo por mim, que somente sei cada um que adquiriu a obra. Por isso, forma-se um exército autônomo.
Camilla Braga, Carol Sunshine Promo, Rodrigo Ferreira Promo, Camilla Braga Promo, Gilson Plano Promo, indumento relacional, 2020. Fotografia de Gabi Carrera
O primeiro grupo de camisetas da segunda coleção foi pensado para a equipe educativa da Escola de Artes Visuais do Parque Lage (Rio de Janeiro, Brasil), formada principalmente por artistas-educadores, onde trabalhei antes da pandemia. Nessas camisetas, adicionei o nome de cada artista-educador ao final da lista, então a coleção carrega a ideia de que o usuário tenha seu nome adicionado à lista também. No contexto educativo, as camisetas igualam as educadoras – institucionalmente invisibilizadas nos espaços expositivos – aos cânones previamente citados. Proponho, assim, que uma nova istória da arte (sem o “H” mesmo como usava a artista feminista estadunidense Carolee Schneemann [5]) comece a ser escrita e que seja em diálogo com a educação e vivência dentro e fora do espaço expositivo.
Camilla Braga, Gilson Plano Promo, Antonio Amador Promo, indumento relacional, 2020
Ainda levando em consideração o pensamento de Camnitzer: “Na busca por modos de reduzir a perda de informação (desmediatização), usar o contexto para dar significado (contextualização) parece ser uma ferramenta mais sutil do que reduzir o material (reducionismo).”[6]
Quando discutimos arte, já estamos numa ação dita educativa. Nesse sentido, não há separação entre arte e educação. Falar, ouvir, trocar, ser convocado pelo objeto, que por si instaura uma série de relações e forças, já é um ato educacional. As artistas-educadoras vestiram a camiseta e se propuseram a conversar sobre arte sendo mais que um veículo de informações e dados a respeito das obras expostas, mas como provocador dos públicos, conduzindo diálogos que por muitas vezes são borrados com a vida cotidiana e, assim, têm o estatuto de arte. Arte é política, educação é política e arte é educação. Penso então as camisetas como vivência educativa, inserida no contexto ficcional canônico e em nossas histórias particulares, legítimas, adicionadas à lista a partir de nossos nomes.
NOTAS
[1] Na compilação de vídeos The TV Commercials 1973-1977, de Chris Burden, consta o vídeo Chris Burden Promo, de 1976, no qual encontra-se a seguinte epígrafe: “Comprei vinte e um horários em três canais de Los Angeles, Canal 5, Canal 11 e Canal 13. O anúncio foi ao ar de 17 a 24 de setembro de 1976. Em Nova York, comprei vinte e quatro horários no Canal 4 e 9 em horários muito visíveis, como os noticiários da manhã e durante o popular ‘Saturday Night Live’. O anúncio foi ao ar de 1 a 21 de maio de 1976. Os primeiros nomes na ‘publicidade’ seguinte, ‘Chris Burden Promo’, foram escolhidos a partir dos resultados de uma pesquisa nacional que mostrou que eles eram os artistas mais conhecidos do público em geral. Convenci vários gerentes de emissoras que o meu nome, ‘Chris Burden’, também era o nome de uma empresa de arte e, assim, eles concordaram em me vender tempo no ar.” Ver o vídeo em: <http://www.ubu.com/film/burden_tv.html>. Acessado no dia 23 de maio de 2020, tradução livre.
[2] PEDROSA, Adriano. “History, Histórias”. Em: PEDROSA, Adriano; TOLEDO, Tomás (Orgs.). Histórias afro-atlânticas, Vol. 1., p. 30.
[3] EDWARDS, Steve. “Introduction”. Em: Art and Its Histories. New Haven: Yale University Press, 1999, p. 13 apud PEDROSA, Adriano. “History, Histórias”. Em: PEDROSA, Adriano; TOLEDO, Tomás (Orgs.). Histórias afro-atlânticas, Vol. 1, p. 30.
[4] CAMNITZER, Luis. Conceptualism in Latin America Art: Didactics of Liberation, p. 19, tradução livre.
[5] Carolee Schneemann usava istory (istória) em seus escritos para evitar o pronome possessivo masculino his incorporado na palavra history (história).
[6] CAMNITZER, Luis. Conceptualism in Latin America Art: Didactics of Liberation, p. 33, tradução livre.
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
BASBAUM, Ricardo. “Artes/Vidas”. Revista Poiésis, v. 18, n. 29, 2017.
BEY, Hakim. TAZ: Zona Autônoma Tempóraria. Col. Baderna. Trad. de Renato Rezende e Patrícia Decia. São Paulo: Conrad Editora do Brasil, 2001.
CAMNITZER, Luis. Conceptualism in Latin America Art: Didactics of Liberation. Texas: University of Texas Press, 2007.
PEDROSA, Adriano; TOLEDO, Tomás (Orgs.). Histórias afro-atlânticas, Vol. 1. São Paulo, MASP, 2018.
PARA CITAR ESTA PUBLICAÇÃO
BRAGA, Camilla. “Inventário e Partilha”. eRevista Performatus, Inhumas, ano 8, n. 21, jul. 2020. ISSN: 2316-8102.
Revisão ortográfica de Marcio Honorio de Godoy
Edição de Mãe Paulo
© 2020 eRevista Performatus e a autora
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