Deixem o FaceApp em paz!

 

Este texto de Valéria Barcellos foi lido em seu perfil (@valeriabarcellosoficial) da rede social Instagram no dia 15 de junho de 2020.

 

Deixem o FaceApp em paz… é só mais uma brincadeira. Mais uma.

E é claro e óbvio que nossas questões e opiniões serão vistas como reclamação…

O tal MIMIMI…

Um aplicativo destinado à diversão aparece pra que pessoas que estão em congruência com seu gênero, a princípio, possam experimentar a sensação de ser do outro gênero por alguns minutos virtuais. Acho o aplicativo incompleto.

Vou explicar por que:

Pra nós, mulheres trans, que sentimos na pele literalmente as agruras de uma adequação de gênero, achamos que o aplicativo deixou muito a desejar. Ele deve ser imediatamente trocado por uma nova versão com sons, e sensível ao toque (sugiro pequenos choques graduais que vão aumentando).

Nessa nova versão, sim, seria muito interessante a troca. E ficaria assim:

Para “homens que trocam por mulheres” – salários desconexos e menores, títulos de louca e invasão de corpos alheios, jornada dupla de trabalho e medo, muito medo.

Para a versão em que “mulheres trocam por homens” sugiro as masculinidades tóxicas, que sempre aparecem entre eles, e creio que isso por si só já ia adequar as outras problemáticas.

Agora, para muitos de vocês que encaram esse aplicativo como a oportunidade de se sentir trans, sugiro uma versão turbo…

Essa versão traria sons que bradariam aos quatro ventos que você é: “inútil, incapaz, puta, lixo, aberração, traveca, mulher genérica, que nunca será mulher de verdade porque não tem útero, pervertida”. Também traria uma versão com frases célebres do tipo “você parece mulher… Você é operada? Qual teu nome de verdade? Teu pau é grande?”

Uma outra versão viria com frases sempre elogiosas porém acompanhadas do “mas”… “não tenho nada contra, mas…” Aí, a pessoa que está usando o aplicativo completaria com sua transfobia diária.

Sugiro também uma versão que impede de se conseguir emprego formal. Mas a versão que vai fazer muito sucesso é a que dá socos, facadas e tiros… Igualzinho acontece conosco.

A que mata afogada e arranca o coração, essa é só pra quem paga a versão plus, por favor.

Para homens trans, sugiro frases do tipo: “você parece homem de verdade”. “Nem parece mulher.” “Tem pau?” “E quando menstrua?” “Que nojo, tem buceta?!” “Ah, mas lá no fundo sempre fica algo né?” “Olha essa voz”. Sugiro uma versão de estupro corretivo e uma outra que, como num passe de mágica, a pessoa desaparece, fica invisível assim como os homens trans.

ANTES DE MAIS NADA, QUE FIQUE BEM EXPLICADO: ESTOU SENDO IRÔNICA!

E é tão louco explicar ironia nos anos 2020, anos que num certo passado lá atrás falávamos que seriam repletos de carros que voam e de teletransporte. Ainda venho aqui explicar o óbvio, e pior, explicar o porquê me sinto constrangida, sendo que o fato de me constranger já deveria ser premissa para eu não ter de explicar mais nada, nesse caso.

Não é o aplicativo em si. Não é só a performance de gênero que machuca.

É sobre levar a sério quando é brincadeira, e na brincadeira e desrespeito quando é sério.

É sobre uma escuta que não foi feita lá atrás, que perdura até hoje.

É sobre desrespeito a uma vivência que nunca vai deixar de ser performática para ser real aos olhos de quem vê, porque sempre é tratada como palhaçada, brincadeira, joguetes.

Tudo fica muito mais explicado e visível quando nós, pessoas trans, estamos dizendo, gritando, que isso é ofensivo, e vocês não escutam porque, pra vocês, “é só uma brincadeira”.

Vamos brincar de trocar de vivência por um dia? Você sobreviveria? Você aguentaria?

E se ao chegar até aqui você ainda está se perguntando se isso ainda não é exagero, defina exagero para mim: questionar o meu constrangimento por um aplicativo ou 111 facadas num corpo trans? Comparação esquisita? Não, realidade!

É isso… Se ao invés de performar gênero você ouvisse quem de fato tem na sua vivência questões de gênero, saberia do que eu estou falando.

No mais, sigamos aqui, rindo de tudo, tal qual hienas.

É engraçado, é só brincadeira, é só um app…

Volto a expressar aqui… nada contra quem está usando o aplicativo, mas tudo contra quem está usando e comparando a uma vivência trans. Não! Isso nunca.

Nossas vivências são sérias, urgentes…

Fiquem aí no virtual performando.

Seguiremos aqui no real sendo, não uma performance, mas uma vida que não se respeita, não se ouve, não se sente e não se vê, bem parecida com toda essa vida virtual possibilitada pelo aplicativo. #sqn

 

 

PARA CITAR ESTA PUBLICAÇÃO

BARCELLOS, Valéria. “Deixem o FaceApp em paz!”. eRevista Performatus, Inhumas, ano 8, n. 21, jul. 2020. ISSN: 2316-8102.

 

Revisão ortográfica de Marcio Honorio de Godoy

Edição de Mãe Paulo

© 2020 eRevista Performatus e a autora

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