Jana Sterbak, Measuring Tape Cones [Fita Métrica em Forma de Cone], 1979
I
Uma fotografia, baseada em uma das obras de Jana Sterbak, mostra um braço nu erguido na altura do cotovelo e ligeiramente curvado para cima. O braço é revestido por uma prótese inesperada: um cone laranja fabricado a partir de uma fita métrica estreitamente enrolada. O cone também é ligeiramente arqueado, prolongando a linha do braço num arco aberto virado para cima. Temos aí uma imagem estranha devido à curiosa justaposição da nudez do braço e da forma do cone, opressiva e um tanto ameaçadora. A beleza natural do braço, a sua musculatura fina e delicada realçada, desaparece na regularidade do ponto de fuga que constitui o interior do cone. Este último, no entanto, ao alongar o braço, ressalta a curvatura elegante do seu arco, aperfeiçoando-o e, quiçá, dando-lhe poder, ao mesmo tempo em que o modela e o transcende. Essa simples imagem é rica em contradições: elegante e, no entanto, ligeiramente estranha; divertida, mas não desprovida de ameaça. As oposições que ela evoca – entre o corpo e seus adornos, entre a natureza física e o artifício humano, entre o fato de conferir poder e a restrição desse mesmo poder que implica o confinamento – são os temas centrais do trabalho de Jana Sterbak.
Para Sterbak, o corpo é o ponto de partida: dele emana a sua arte e as suas obras nos remetem constantemente a ele. Os materiais que ela utiliza e os objetos que fabrica sugerem íntimas relações com nossos corpos. Seu caráter puramente físico irrompe bruscamente em nossas consciências, atravessando as camadas intermediárias da história, da cultura e da teoria com a força de uma sensação visceral. Em princípio, devemos sentir suas obras e lembrar-nos que não podemos nos conceber independentes do corpo. Partes do corpo esculpidas, vestidos feitos de carne ou de fios de aquecimento, vários tipos de gaiolas e outros mecanismos análogos do aprisionamento, todos eles adquirem o seu pleno sentido quando postos em relação com o corpo, com as limitações e com o caráter efêmero de nossa existência física. Essas obras refletem o interesse de Sterbak pelo papel complexo do corpo em nossa formação como sujeitos. Enquanto base física da nossa existência, o corpo nos une à natureza – essa ordem material que se caracteriza por relações de causa e efeito cegas e indiferentes às intenções e às aspirações dos seres humanos. Como seres físicos, somos determinados por essa ordem, enredados num emaranhado absurdo de acontecimentos independentes da nossa vontade. Para Sterbak, nossos desejos, nossas limitações físicas e, acima de tudo, nossa mortalidade implicam esta verdade desconfortável: a base física do nosso ser é independente da nossa vontade e muitas vezes vai de encontro às nossas aspirações mais profundas.
No entanto, Sterbak coloca igualmente o corpo na origem da motivação que nos impele a transcender nossa determinação imposta pela natureza física. O fato de sermos ligados à natureza através do nosso corpo obriga-nos a transcender as limitações que ela nos impõe. Uma das razões mais evidentes é a nossa natureza mortal. O medo da morte nos leva a todos os tipos de atividades criadoras. Muitos dos temas de Sterbak – o saber, a ciência, a tecnologia, a magia, a própria arte – podem ser considerados como estratégias criadoras destinadas a diferir a morte. Em certa medida, eles nos libertam do caráter arbitrário de uma ordem natural indiferente ao sentido que as nossas vidas têm para nós. Daí resulta o sentimento, por mais débil que seja, de poder controlar, individual e coletivamente, a arbitrariedade das circunstâncias.
Outra razão que explica que somos impelidos a transcender nossa determinação pela natureza provém do desejo de reconhecimento e legitimação que sentimos enquanto sujeitos conscientes de si. O corpo, aqui, continua a ser um elemento central. Nossa subjetividade, que necessita, por menor que seja, de um sentido de nós mesmos como identidades distintas com nossas próprias vidas, exige tanto o distanciamento da natureza física quanto a busca pelo que diferencia as nossas identidades das dos outros. A primeira exigência requer simplesmente uma capacidade de formular intenções que não seja imediatamente determinada por um impulso natural. Já a segunda exigência é mais complexa, pois ela sugere que a identidade, isto é, a elaboração de uma versão do tipo de pessoa que somos, requer necessariamente que a representemos aos outros. Esse pedido de reconhecimento implica uma capacidade de “autocriação”; conhecer a si mesmo acarreta a necessidade de criar-nos para os outros. Jana Sterbak é fascinada pelo processo de autocriação, especialmente em relação ao corpo como lugar onde esse processo se realiza do princípio ao fim. A representação do corpo em público é sempre uma expressão artificial que nos diferencia simbolicamente da homogeneidade da natureza. Trata-se, ao mesmo tempo, de uma exigência de reconhecimento por parte dos outros: queremos que eles reconheçam e legitimem a versão que projetamos de nós mesmos, tal como essa versão se expressa através do artifício do corpo em representação. É por essa razão que o vestuário é tão importante para o processo de formação de nossas subjetividades. Vestimo-nos para afirmar uma identidade específica, que nos é própria, e para encontrar uma confirmação dessa identidade na opinião dos outros. Nessa perspectiva, as roupas são uma espécie de tecnologia do eu: elas oferecem a promessa de uma certa dose de controle sobre nós mesmos e sobre o mundo público em que vivemos.
Para Sterbak, portanto, o corpo é a base do nosso desejo de criar-nos como sujeitos independentes, com identidades específicas. Contudo, o seu julgamento sobre a atividade de autocriação é marcado pela ambivalência quanto à possibilidade de jamais atingir tal propósito. Ela considera essa atividade como um processo necessário e potencialmente libertador, mas ela a aborda numa perspectiva sempre irônica, voltada mais a captar suas ambiguidades do que suas promessas. Ela trata as limitações do corpo, em particular a mortalidade, como sendo a origem de grande parte da nossa atividade criadora. Se o desejo de criar é, até certo ponto, motivado pelo nosso desejo de adiar a morte e, mais comumente, de transcender as restrições que limitam e frustram nossos objetivos, então trata-se de um elemento primordial da nossa concepção do ser humano. Todavia, Sterbak não observa no potencial subjacente de liberdade uma fonte de otimismo. Tentamos nos recriar – nós mesmos e o mundo – de uma maneira que nos convém, só que os resultados dessa atividade não conferem necessariamente poder ou libertação. Eles até o podem, no caso de certas descobertas científicas, ou talvez no caso de uma obra de arte feita com perfeição. Na maioria das vezes, porém, esses resultados não conseguem concretizar plenamente os objetivos para os quais foram definidos. Pelo contrário, eles tornam-se uma fonte adicional e inesperada de restrições que exigem outras estratégias criativas. Para Sterbak, essa oposição está sempre presente e nunca resolvida, tanto em nossa autorrepresentação quanto em nossas tentativas mais ambiciosas para libertar a humanidade dos vários males que a afligem.
II
Se a determinação do corpo pela natureza física induz nossa criação, podemos então muito bem conceber a cultura – e a história – como sendo campos a partir dos quais desenvolvemos nossas próprias criações. É claro que não podemos construir no vazio, e nosso desejo de sermos legitimados pelos outros requer que as nossas criações pessoais tenham por base as formas ou os arquétipos culturais que compartilhamos com os outros. A ideia de subjetividade como um produto (pelo menos parcialmente) da vontade implica a capacidade de abstrair-nos do nosso próprio solo cultural e tratá-lo como um campo simbólico, do qual extraímos ideias, valores, metáforas e tudo aquilo de que precisamos para nos construir e nos representar. Jamais conseguiremos evidentemente nos abstrair de todo esse solo; permaneceremos sempre mesclados e condicionados em muitos aspectos, mesmo quando, conscientemente, o manipulamos para servir a nossos próprios fins. O trabalho criador de Jana Sterbak reflete um aspecto da complexidade da nossa relação com a cultura. Ela guarda uma distância das tradições culturais que a influenciaram, a fim de melhor utilizá-las intelectual e esteticamente. Se existe em seu trabalho um papel de fachada, este é o do estrangeiro, de alguém que participa de várias tradições culturais, mas que as mantém à distância, graças a um certo distanciamento irônico, isto é, a uma perspectiva que lhe dá a liberdade para poder explorá-las como objetos.
Não obstante, uma estratégia intelectual ou estética baseada no distanciamento irônico não implica nem o relativismo nem o postulado de uma perspectiva falsamente transcendental em que todos os fenômenos culturais aparecem equivalentes e manipuláveis da mesma maneira. Sterbak não caiu em nenhuma dessas armadilhas. Como a maioria de nós, ela adere a determinados valores morais e políticos e a outros não. Ela não pretende ser didática em relação às opiniões ou aos valores derivados dos objetos de suas explorações. Em todo o seu trabalho, Sterbak adota um postura cética, dando plena latitude às ironias e às ambiguidades peculiares a cada objeto. O ceticismo é uma propriedade essencial na sua abordagem da utopia, vista em todos os seus aspectos. Sterbak estima que o impulso utópico é inerente a muitos projetos humanos: à estética, à inovação tecnológica e, claro, às ideologias políticas. A utopia, de fato, atende ao desejo de transcender a nossa condição. Nossas mais poderosas motivações – o desejo, o amor, a preservação de si – refletem o desejo de elevar-nos para além da nossa condição, para um estado em que a nossa imaginação concebe como uma espécie de perfeição: o fim do desejo, do abandono ou do medo. De qualquer forma, a utopia é inerente à tradição judaico-cristã, e atingiu o auge de sua expressão nas aspirações políticas e estéticas do modernismo. Quaisquer que sejam as razões para a preeminência das utopias, Jana Sterbak busca banalizá-las onde quer que ela as encontre; e, para isso, ela escolheu a ironia.
A complexa importância que Sterbak atribui ao corpo é revelada em duas obras realizadas no início de sua carreira: Measuring Tape Cones [Fita Métrica em Forma de Cone] (1979) e Golem: Objects as Sensations [Golem: Os Objetos como Sensações] (1979-1982). A primeira obra é uma série de fitas métricas esculpidas em forma de cone. Ela constitui uma exploração inicial da lógica complexa que governa os complementos do corpo. Os materiais utilizados e os objetos retirados daí remetem ao processo de representação do corpo no mundo público e, por consequência, à lógica oposta dos complementos. As medidas são um pré-requisito para o vestuário como projeção de uma concepção específica de si no espaço público. As fitas métricas completam o corpo, submetendo-o a um sistema de medida padrão, o qual, por sua vez, abre possibilidades ilimitadas de artifícios e representações. É a um só tempo um ato de poder e de restrição. Se por um lado o sujeito recebe o poder das tecnologias, das medidas, dando-lhe, desse modo, a capacidade de se representar a si mesmo em termos cada vez mais complexos e sofisticados, por outro ele se submete a uma série de medidas normativas e, como consequência implícita, aos requisitos de conformidade. A tecnologia permite se criar e se recriar indefinidamente. Em contrapartida, ela reduz o sujeito a objeto, sobre o qual se aplicam normas cujo controle (tamanhos, formas e estilos) escapa a esse mesmo sujeito. Os cones esculpidos com fitas feitos por Sterbak ressaltam com maior ênfase o caráter contraditório dessa complementaridade. Os cones podem ser usados como adereços divertidos e ligeiramente grotescos, prolongando os dedos ou o braço, ao mesmo tempo que, pelo caráter artificial da sua construção, os modelam e os restringem. Trata-se, portanto, de uma ironia sutilmente subversiva; a artista desarma a autoridade reguladora das fitas ao transformá-las em adornos quase absurdos.
Jana Sterbak, Estomac (Venom) [Estômago (Veneno)]; Malevolent Heart (Gift) [Coração Malevolente (Presente)]; Penis [Pênis]; detalhes de Golem: Objects as Sensations [Golem: Os Objetos como Sensações], 1979-1982
Golem: Objects as Sensations [Golem: Os Objetos como Sensações] constitui o ponto de partida para uma análise mais complexa sobre o corpo, colocando-o na junção entre a natureza e a cultura. O trabalho consiste em uma série de órgãos esculpidos: corações de chumbo, estômagos de borracha, baço de bronze etc. A obra baseia-se na relação de analogia entre os objetos e os materiais utilizados para representá-los. O resultado é uma dramatização correspondente ao impacto visceral de cada escultura. A estratégia, que consiste em evocar associações analógicas, é necessária no caso dos órgãos internos, uma vez que nenhum dos nossos sentidos permite esse acesso. Os materiais utilizados por Sterbak nos ajudam a imaginá-los, do mesmo modo que os membros fantasmas, fontes de vida presentes na escuridão do corpo. O impacto visceral das esculturas é importante na medida em que o trabalho procura levar-nos de volta ao corpo enquanto base física da nossa existência. Os órgãos esculpidos são dispostos no chão de uma sala, sem qualquer comentário, como se isso não passasse de um simples inventário. A obra reduz tudo o que é humano ao seu elemento de base, isto é, à matéria, destacando assim a base física da existência. Não se trata apenas de mostrar que todos nós podemos ser reduzidos a carne, sangue e ossos. Trata-se antes de mostrar que a concepção que temos de nós mesmos, bem como a criação e a representação que projetamos enquanto entidades ultrapassando a mera presença física, depende também das limitações inerentes ao corpo. A obra concerne aos órgãos vitais – o coração, o baço e o estômago –, que estão intimamente associados à concepção que temos de nós mesmos, na medida em que eles são os parâmetros da nossa mortalidade. A vida cessa tão logo eles deixam de existir. A esse título, eles oferecem uma forma temporal à nossa existência, impondo um quadro temporário linear no qual se torna possível dar um sentido significativo ao que se entende por viver uma vida [1]. Nossa concepção do que significa viver uma vida que valha a pena, a importância relativa que damos aos outros, o desejo fundamental de fazermos alguma coisa do que somos, tudo isso parece pressupor o horizonte de mortalidade moldado por esses órgãos [2].
O Golem insinua que o temor da morte forja em parte o nosso desejo de ultrapassar a base estritamente material da vida. O “Golem” do título é um personagem célebre do folclore de Praga, uma pequena criatura feita de argila, como por um passe de mágica, e cuja função é proteger os judeus de Praga do fanatismo cristão. O interesse de Sterbak na lenda do Golem deve-se, até certo ponto, ao mito da criação. Trata-se do invariável desejo humano de ir além das fronteiras que nos limitam ou nos oprimem, mediante um ato de criação. Sterbak usa o corpo como fonte simbólica desse desejo. Nossos corpos, emaranhados nas relações contingentes, são prisioneiros de toda uma variedade de forças naturais que, não somente são indiferentes às nossas aspirações, como também as solapam. Essa visão da natureza como uma força amoral indiferente e potencialmente hostil é onipresente no trabalho de Sterbak. A todo momento corremos o risco de sermos tragados pelo caos da natureza. Contudo, esse mesmo perigo simbolizado pela mortalidade do corpo também constitui a força essencial que nos permite imaginar nós mesmos e o nosso mundo para além da nossa mera presença física. Aos olhos de Sterbak, os componentes que definem a vida cultural – a arte, a ciência, a tecnologia, a representação de si – são veículos necessários ao nosso devir, os meios pelos quais nos distinguimos do fluxo caótico e absurdo da natureza.
III
Muitas obras realizadas por Sterbak ao longo dos últimos quinze anos não se enquadram facilmente neste esquema interpretativo. No que se segue, eu gostaria de apresentar quatro temas recorrentes em seu trabalho. Existe um certo risco nisso. É delicado esperar dos artistas que eles organizem claramente as suas obras de acordo com arquétipos já adequados para a análise. E realmente vários desses temas estão presentes em muitas, se não na maioria, de suas obras. A despeito disso, os temas que tenho em mente – o desejo e o vestuário, o confinamento e a libertação – emanam, como já salientei, do interesse global de Sterbak pela subjetividade. O que pretendo mostrar aqui é que esses temas fornecem um conjunto de preocupações interligadas a partir das quais podemos interpretar sua obra.
O desejo
Toda pesquisa sobre a importância do corpo em termos de subjetividade e identidade deve se interessar pelo desejo, e esse é um tema recorrente na obra de Jana Sterbak. Para Sterbak, o corpo está sempre envolvido em regimes conflitantes de desejo, e sua obra dá uma importância especial à ambiguidade e às discordâncias que caracterizam os efeitos do desejo. Essa atenção é evidente em Seduction Couch [Divã de Sedução] (1986-1987): uma espreguiçadeira construída de aço perfurado e carregada de energia eletrostática, que produz, quando tocada, um choque intenso mas inofensivo. Como objeto, a obra evoca a relação íntima entre atração e repulsão, entre dor e desejo. A obra é iluminada por um foco de luz que projeta um belo motivo na parede situada logo atrás. A obra crepita igualmente com a eletricidade; objeto a um só tempo atraente e perigoso. O poder de sedução da obra reside na atração e no temor simultâneos que ela suscita. Temos vontade de tocá-la tanto pela sua beleza quanto pela promessa de dor.
Entretanto, nessa obra, Sterbak leva essa exploração do desejo para além dos limites da dialética de atração e repulsão. Seduction Couch [Divã de Sedução] também evoca uma convenção própria à história da arte, a chaise longue com odalisca, e especialmente o célebre retrato de Madame Récamier por Jacques-Louis David. No final dos anos de 1980, Sterbak interessou-se por lugares e espaços onde há trocas de desejo e poder. Uma obra como Attitudes [Atitudes], uma cama cujos travesseiros são bordados com palavras como “Doença” e “Reputação”, evoca a íntima relação entre poder e desejo; ao passo que dois outros trabalhos, Drawing Room [Sala de Estar] e Sulking Room [Boudoir], retratam espaços tradicionalmente femininos: o primeiro mostra um lugar onde “as senhoras” podem retirar-se após o jantar, o segundo, um boudoir, ou, literalmente [em francês], lugar onde se fica amuada [3]. Madame Récamier ocupava esses lugares femininos, e David mostra-a numa posição reclinada em uma chaise longue, lugar tradicional de sedução. Se Seduction Couch [Divã de Sedução] se refere às consequências para as mulheres da elaboração social do desejo sexual feminino, é com o intuito de ilustrar a reciprocidade do poder e do desejo, e não para sugerir que as suas consequências são sempre mais penosas para as mulheres. O Retrato de Madame Récamier foi pintado por David como um objeto de desejo masculino – uma odalisca –, mas essa é uma representação altamente irônica. Na realidade, Madame Récamier tinha a reputação de castidade (embora ela também tenha tido amantes), o que lhe permitiu manter o seu status social e econômico e contar com um dos maiores salões parisienses do final do século XVIII. Longe de ser uma vítima impotente do desejo masculino, ela o manipulava com sucesso por meio de suas próprias representações, e adquirindo assim um poder considerável. Os excessos do desejo transparecem no Seduction Couch [Divã de Sedução]. A obra sugere que o poder e o desejo são recíprocos: se o desejo confere poder, ele também nos submete à dominação dos outros, tornando-nos cúmplices dessa dominação. Experimentamos isso quando desejamos alguma coisa que nos é prejudicial, e desejamos com mais intensidade justamente por isso.
Jana Sterbak, I Want You to Feel the Way I Do… (The Dress) [Quero que Você Sinta o que Eu Sinto… (O Vestido)], 1984-1985
O excesso do desejo também está presente nas peças do vestuário de Jana Sterbak. O exemplo mais extremo desse excesso é I Want You to Feel the Way I Do… (The Dress) [Quero que Você Sinta o que Eu Sinto… (O Vestido)] (1984-1985). Trata-se de uma construção de malha de aço cercada por arame cromo aquecido eletricamente, e acompanhada por um texto. O arame aquecido evoca a vingança de Medéia contra Glauce, a amante do seu marido Jasão. Ela envia a Glauce um vestido que se inflama e a queima viva. O texto revela uma voz que cai na armadilha dos seus próprios desejos, da vingança e da dominação. “Eu quero que você sinta o que eu sinto. Minha cabeça está coberta de arame farpado e minha pele esfrega-se contra a minha carne de dentro. […] Eu ouvirei o que você ouvir, alimentar-me-ei do seu pensamento, vestirei as suas roupas”. Eis aí o desejo em estado bruto, poderoso, atávico e descontrolado. A lógica própria à vingança de Medéia incita-a a assassinar seus próprios filhos. À medida que a voz do texto parece se distanciar de tal ato de desespero rumo a uma espécie de narcisismo altivo, ela nos oferece um vislumbre da força primitiva do desejo e da incapacidade de qualquer artifício humano para contê-la.
O vestuário
Para entender o interesse de Sterbak pelo vestuário podemos, como já apontei, relacioná-lo com a atividade da representação de si. O corpo sempre esteve a meio caminho entre o animal e o homem, entre a natureza e a cultura [4]. A nudez representa a ausência do ser humano: o corpo enquanto carne, privado de identidade. O corpo vestido, em contrapartida, é o corpo de um sujeito humano, porque é através da roupa que projetamos no espaço público a nossa própria identidade: nossa classe social, nosso sexo, ou nossa sexualidade. Há qualquer coisa de implicitamente utópico nisso. A esperança de que as nossas próprias representações sejam confirmadas pelos outros reflete o desejo de uma autonomia sem limites, o desejo de poder de se criar e de se recriar à vontade. Para Sterbak, contudo, essa aspiração é sempre minada pela realidade privada do corpo.
Jana Sterbak, Vanitas: Flesh Dress for an Albino Anorectic [Vanitas: Vestido de Carne para Albino Anoréxico], 1987
Talvez seja em Vanitas: Flesh Dress for an Albino Anorectic [Vanitas: Vestido de Carne para Albino Anoréxico] (1987) que a tensão entre o corpo e as suas representações se manifeste com mais relevo. Essa obra pertence à tradição “vanitas” da pintura e da escultura, na qual o corpo foi associado ao nosso estado decaído e, portanto, intrinsecamente trágico. Enquanto fonte de nossos desejos “terrestres”, o corpo foi igualmente a fonte da nossa vaidade e concupiscência, e, logo, da nossa alienação de Deus. Esse vestido de carne baseia-se nessa tradição para destacar tanto o eventual absurdo de nossos esforços para superar as limitações do corpo, quanto a presença constante do trágico na vida humana. À medida que a exposição avança, o vestido seca, transformando-se numa casca dura, enrugada, brilhante, parecida com o efeito do envelhecimento na pele humana. A evolução do trabalho – a sua secura – simboliza o caminho tomado pelo corpo humano em direção à morte. Desse modo, ela chama a atenção para o nosso destino, mas também zomba das nossas obsessões de embelezamento. Nossa cultura de cuidados corporais – os cremes, os regimes e os exercícios físicos – revela-se fútil face à inevitabilidade da morte. Entretanto, além da ironia, o vestido de carne inspira algo ainda mais ameaçador. Para muitos de nós, a mortalidade é definida, tal como formulada por Hobbes, como o fim do desejo e, por conseguinte, como o fim da possibilidade do bem. Para aquelas pessoas incapazes de acreditar até mesmo na possibilidade de redenção, a vaidade do esforço humano evocada pelo envelhecimento do vestido é profundamente trágica.
Jana Sterbak, Remote Control II [Controle-Remoto II], 1989
A tensão presente entre o corpo e as nossas representações de si evoca a tensão em todo artifício humano. O vestuário pode ser visto como uma espécie de técnica, como um meio através do qual o eu é apresentado ao mundo, e o interesse de Sterbak pelo vestuário acompanha o seu interesse pela ciência e pela tecnologia. Ambas estão intimamente ligadas à nossa aspiração de nos libertar das limitações da natureza física, e ambas indicam que o poder (sobre nós mesmos, sobre os outros, sobre a natureza) é um meio necessário para alcançar essa liberdade. Mas as coisas não são tão simples assim. As tecnologias que criamos para libertar-nos da natureza tendem não só a nos conferir poder como a restringi-lo. Essa ideia é central nos edifícios de crinolina de Sterbak, Remote Control I and II [Controle-Remoto I e II] (1989), e também, de maneira mais oblíqua, na performance Psi a slečna (Defence) [Mulher e Cachorros (Defesa)] (1995). O primeiro mostra grandes vestidos com aros de alumínio nos quais uma mulher fica suspensa por uma roupa de baixo. A construção é montada sobre rodas motorizadas e pode ser operada por um controle remoto. A mulher que “traja” esse vestido encontra-se pura e simplesmente aprisionada, incapaz de tocar o solo e de controlar os próprios movimentos, exceto quando utiliza o controle. Durante o espetáculo, tudo gira em torno do controle remoto. Quando a mulher vestida o detém, ela dispõe de um poder considerável. Ela governa os movimentos, é o centro das atenções, e tem até o poder sobre como os espectadores experimentam o espaço. No entanto, quando o controle remoto passa às mãos dos seus assistentes, ela perde todo o poder: suspensa no ar, ela está totalmente indefesa, prisioneira e à mercê daqueles que controlam a tecnologia que a envolve. As crinolinas efetuam uma espécie de inversão coreográfica entre o controle e o confinamento. Desse modo, expressam fisicamente os desejos conflitantes de autodeterminação e dependência que Sterbak encontra em cada um de nós. As crinolinas evocam os efeitos ambíguos da tecnologia. Se esta confere poder e desempenha um papel essencial em nossa capacidade de autodeterminação, ela pode igualmente tornar-nos dependentes, incapazes de controlar as consequências de tal utilização.
O confinamento
A arte de Jana Sterbak é assombrada pelo tema do confinamento; essa preocupação é particularmente evidente em suas obras mais recentes. Algumas das novas obras: as três versões de Sisyphus [Sísifo], Jacket [Jaqueta] (uma jaqueta de mulher com as mangas entrelaçadas), Cage for Sound [Gaiola para Som] e Psi a slečna (Defence) [Mulher e Cachorros (Defesa)] baseiam-se na ideia de confinamento. Sisyphus III [Sísifo III] é uma construção em forma de casco revestido de aço inoxidável, onde um homem deve ser capaz de se equilibrar. O fundo do casco é arredondado como um ovo, o que torna muito difícil para a pessoa dentro do casco manter o equilíbrio. Na verdade, o próprio peso da pessoa faz com que ela balance para lá e para cá, e ela deve lutar constantemente para ficar na posição vertical. Na parede perto da obra, há uma bobina de filme bastante grosseira nos recordando o primeiro daguerreótipo de Edward Muybridge. A imagem em preto e branco a tremer na parede é a de um homem muito musculoso, sem camisa, lutando para manter-se em equilíbrio dentro do casco. Os esforços dele demandam uma enorme força física, mas seus movimentos apresentam uma certa qualidade rítmica, semelhante a uma dança, o que pode desmentir a dificuldade.
Entre outras coisas, essa obra lida com a estética do corpo humano em movimento e, como os daguerreótipos de Muybridge, é de uma beleza fascinante. Mas ela também se refere às preocupações de Sterbak com a contingência e o confinamento. O título da obra é uma referência ao célebre ensaio de Camus, O Mito de Sísifo, e, através dele, ao próprio mito. Os esforços empreendidos pelo modelo para encontrar o equilíbrio no casco formam o paralelo com os esforços infrutíferos e infinitos de Sísifo para içar o rochedo até o cume da colina, e assim eles sugerem que existe um certo absurdo subjacente na maior parte dos empreendimentos humanos. Mas, ao mesmo tempo, há algo de heroico nos esforços do modelo; é preciso força e habilidade notáveis para que ele se mantenha em equilíbrio, mesmo que a finalidade desse projeto nem sempre seja evidente. Parafraseando Camus, somos prisioneiros das repetições e dos ritmos insensatos da vida cotidiana, e, dessa maneira, o suicídio torna-se uma opção moral e filosoficamente séria. As repercussões, aqui, não parecem ser tão desesperadoras. Apesar de sermos mais ou menos prisioneiros dos nossos empreendimentos, independentemente do seu grau de absurdidade, há algo de heroico na tentativa de levar a cabo alguma coisa.
Jana Sterbak, Psi a slečna (Defence) [Mulher e Cachorros (Defesa)], 1995
A performance Psi a slečna (Defence) [Mulher e Cachorros (Defesa)] também lida com a maneira como estamos confinados em nossas próprias lutas, embora de forma mais irônica e esperançosa que em Sisyphus [Sísifo]. Essa obra é um espetáculo que começa com uma mulher em pé, de meia-calça e camiseta pretas, ao lado de uma construção metálica circular suspensa no teto. A construção abriga um pano branco, que se revela ser um vestido. Quando a construção é colocada no chão, o tecido é retirado e a mulher entra na estrutura, agora rodeada por uma barreira metálica na altura do joelho. Esse espaço restrito torna-se um provador de roupa onde a mulher é vestida com um sofisticado traje de noite. Primeiro, colocam-lhe uma crinolina, depois uma saia de veludo branco sobre a crinolina. A parte superior é composta por um corpete de veludo branco semelhante à saia. Ela usa sapatos de plataforma, sobrepujando assim a audiência. O resultado final é um artifício absurdamente elaborado, a meio caminho entre a escultura, a prisão e o teatro – uma diva encarcerada em uma imagem de sua própria fabricação.
A segunda parte desse espetáculo nos aproxima ainda mais do teatro do absurdo. Quando a mulher termina de se vestir, um grande número de pastores-alemães (e os seus donos) passam entre os espectadores e se reúnem em torno dela. Os cães cercam-na, eles isolam-na (ou protegem-na?) dos espectadores, reforçando assim a ideia de confinamento. Quando o círculo é formado, a mulher começa a cantar uma ária da ópera Páris e Helena, de Glück. Do seu traje sofisticado, a sua voz vibra com força, como uma espécie de afirmação da sua autonomia. Mas quando ela canta, os cachorros começam a latir, e a voz então tem que competir com a cacofonia geral: às vezes claramente audível, em outros momentos quase imperceptível em meio a estupidez do coro canino. O efeito é a um só tempo absurdo e ameaçador. O tema da oposição, caro a Sterbak, faz mais uma vez a sua aparição. Uma dessas oposições situa-se entre a natureza e a cultura. Os latidos estúpidos dos cães contrastam fortemente com a sutileza oferecida pela ária de Glück, e chamam a nossa atenção para a indiferença perturbadora entre a natureza e o artifício humano.
Esse trabalho reitera igualmente a oposição entre a autonomia (ou criação) e o confinamento, traço fundamental na arte de Jana Sterbak. No início da performance, a cantora lírica veste “uma prisão virtual”, onde o seu corpo está literalmente aprisionado por camadas cada vez mais elaboradas do traje. Mas esse traje a transforma também numa diva; a arquitetura amplia e sustém a sua voz, dando-lhe maior grandeza e imponência. Sob esse ponto de vista, o espetáculo lembra a coreografia da autonomia e do confinamento característicos das crinolinas mais antigas. Esse trabalho navega continuamente entre os dois, enfatizando essa tensão central em sua arte. No final do espetáculo, os latidos param, cedendo lugar aos aplausos, e a diva, usando o seu traje “prisão”, anda lentamente em direção a um assistente que a espera com um buquê de flores.
A libertação
Esse último gesto pode ser interpretado como uma proclamação de liberdade. A diva não se encontra diminuída por toda essa estrutura elaborada que pesa sobre ela: ela literalmente a transporta. Mas se essa obra afirma a possibilidade da liberdade, ela só o faz em relação aos limites que a condicionam. Na realidade, tudo continua decididamente antiutópico, recordando-nos que o desejo de criar emana apenas das circunstâncias que o rodeiam. A luta travada por essa diva para ser ouvida, para mostrar a sua obra apesar da cacofonia geral dos latidos, repercute na mais recente videoinstalação de Jana Sterbak, Declaration [Declaração]. O vídeo mostra um homem que gagueja e que se esforça para ler o documento criador da Revolução Francesa, a “Declaração dos Direitos do Homem e do Cidadão”. O vídeo é reproduzido numa televisão colocada sobre uma mesa ordinária, e diante da mesa há duas cadeiras desenhadas por Arne Jacobsen.
Em regra, essa construção simples está inserida num campo complexo de referências. Essa instalação nos remete às origens do projeto modernista, à democracia, e, portanto, à Revolução Francesa. Essa referência é indispensável para revelar o impulso utópico implícito, segundo Sterbak, em vários aspectos do projeto modernista. A leitura é peculiar por duas razões. Primeiramente, dezessete artigos da “Declaração” são lidos na ordem inversa, do último para o primeiro, terminando assim com o princípio fundamental da democracia moderna: “Os homens nascem e são livres e iguais em direitos”. Segundo, o leitor gagueja, e faz isso com uma intenção predeterminada. Ou seja, ele tem dificuldade para pronunciar palavras como direitos, cidadãos, poder ou lei. Assim, os valores fundamentais do documento são destacados pela dificuldade que encontra o leitor em pronunciá-los. Creio que Sterbak reconhece, com razão, que existe, na base da “Declaração”, um forte impulso utópico. Sterbak pensa que esse impulso se infiltrou em muitos aspectos do modernismo – com consequências, por vezes, das mais assustadoras. Há de novo um paralelo entre o ideal da república essencialmente moderada dos girondinos, que deu origem ao terror dos jacobinos, e as aspirações humanistas de liberdade e de igualdade de Marx e seu ideal de sociedade comunista com os quais Stálin fundou o seu pesadelo. Mas os efeitos dessa visão utópica ultrapassam a esfera estritamente política. As cadeiras de Jacobsen recorda-nos que as nossas aspirações modernas de liberdade e de igualdade inspiraram um igualitarismo estético, mesmo que à custa de uma boa dose de ironia e desconforto para os seus “defensores”.
Se Declaration [Declaração] é uma obra política, é-o apenas na medida em que nos solicita uma reflexão sobre as contradições implícitas contidas em muitos dos nossos mais caros valores políticos. Para Jana Sterbak, qualquer projeto humano, do ato mais mundano de representação até às revoluções políticas, é assolado pela contradição entre a aspiração à perfeição e as limitações inerentes à nossa natureza. A gagueira do leitor perturba o racionalismo desmedido da “Declaração” – ato aparentemente involuntário de dissidência contra o universalismo totalizante dos princípios fundamentais desse documento. Mas talvez essa dissidência não seja completamente involuntária, nem inteiramente fútil. No final da leitura, ficamos admirados (e aliviados) que a luta do leitor contra a gagueira tenha terminado, ao menos temporariamente. Parece muito mais fácil identificar-se com a luta muito pessoal do leitor consigo mesmo do que com os princípios universais por ele pronunciados, de sorte que nos vemos implicados no distanciamento irônico da artista em relação ao projeto utópico. A liberdade mais importante, ao que parece, reside na luta contra o próprio eu.
IV
O corpo é onipresente na arte de Sterbak: o gesto elegante da curva de um braço, corpos suspensos e contidos, autorizados e perturbadores, sempre escapando, de uma forma ou de outra, a todos os projetos de regulação e melhoria que eles inspiram, e sempre nos colocando em face de nós mesmos e de nossas próprias limitações. Para Sterbak, o corpo está na origem da vontade de criar. Tendo por base o fluxo incompleto e, finalmente, sem sentido da natureza física, o corpo fornece um poderoso impulso para criar-nos a nós mesmos como constitutivamente diferentes, um “lugar de sentido” para nós mesmos e para os outros. Mas suas obras indicam que não existe emancipação absoluta, ou transcendência, fora do fundamento no qual nos construímos e à nossa história. Os desejos do corpo seguem a perturbar todos os projetos que eles suscitam, e as estratégias criadoras que empregamos permanecem interessantes e defensáveis por causa de, e não a despeito de, suas imperfeições. A indisciplina do desejo, sua natureza transgressora, muitas vezes incontrolável, desempenha um papel sem dúvida nenhuma crucial em toda e qualquer concepção da subjetividade. É em razão da natureza particular da sua indisciplina, nos momentos em que ela nos coloca contra os regimes que tentam controlá-la, que a nossa individualidade subsiste.
Numa obra recente, Perspiration: Olfactory Portrait [Transpiração: Retrato Olfativo] (1995), Sterbak explora o irredutível fundamento natural do desejo erótico e a sua relação improvável, mas crucial, com a nossa individualidade. Transpiração relata uma experiência: uma tentativa visando decompor, depois reconstruir, quimicamente o cheiro da transpiração do parceiro de Sterbak. O ponto de partida dessa obra é a intuição de que muitas mulheres (e provavelmente um certo número de homens) acham o odor da transpiração masculina sexualmente excitante. A transpiração evaporada é aspirada em um quarto, onde é misturada a um pó adsorvente. O pó é então introduzido num cromatógrafo gasoso, que cria uma representação gráfica dos principais componentes da transpiração. Teoricamente, esse método deveria permitir ao perfumista reconstituir quimicamente o exato odor do seu parceiro. Contudo, na prática, isso se mostra pouco realista. O cromatógrafo não é suficientemente sensível para isolar todos os componentes menores, muitos dos quais influenciam o odor, e mesmo se conseguisse, seria difícil para o perfumista determinar de modo correto a quantidade exata de cada material. Dessa forma, essa técnica sofisticada só pode produzir uma versão genérica do cheiro da transpiração masculina. De modo geral, ela não é capaz de reproduzir a especificidade do cheiro do seu parceiro, e, logo, não pode reproduzir esse aspecto particular que o torna precisamente único aos seus olhos.
Essa obra é fruto do interesse de Sterbak pelo corpo e seus desejos, mas também pelo papel dos sentidos em nossa experiência estética. Ela sugere que o prazer e o desejo encontram uma dimensão profunda e irredutivelmente física, e que essa base natural tenta resistir, de uma forma ou de outra, às nossas mais audaciosas tentativas de controlá-la ou duplicá-la. Nessa perspectiva, a obra assemelha-se a vários projetos realizados por psicólogos e cientistas da computação que têm por objetivo o desenvolvimento de programas de computador capazes de reproduzir a inteligência humana. Um dos problemas levantados pelos programas de inteligência artificial é o de que eles podem reproduzir, e em alguns casos até superar, algumas habilidades cognitivas dos homens, mas eles são incapazes de reproduzir a intencionalidade e autoconsciência necessárias para que o programa adquira uma identidade própria. Como no projeto de Sterbak, a técnica pode reproduzir (alguns) aspectos genéricos da inteligência humana, mas não aquilo que distingue a inteligência de uma pessoa em particular. Transpiração parece assim ressaltar um ponto importante: o de que a natureza escapa às nossas tentativas mais orgulhosas de submetê-la aos nossos próprios imperativos. De modo que a obra também se refere a algo de reconfortante, que é o mistério constitutivo e fundamental do desejo humano.
NOTAS
[1] Ver: Richard Wolheim, The Thread of Life, Cambridge, Mass.: Harvard University Press, 1984, p. 257-261.
[2] Não quero dizer com isso que as pessoas com uma concepção não linear do tempo, como, por exemplo, aquelas que acreditam na reencarnação, são incapazes de imaginar as suas vidas de forma adequada, ou de dar importância às suas relações com os outros. O que quero dizer é que a noção particular de subjetividade que observo no trabalho de Sterbak pressupõe uma noção de mortalidade como fim da vida humana. Isso só é possível porque ela considera a subjetividade como um projeto oriundo da vontade individual, e somente desse ponto de vista adquire significado e importância.
[3] Nota do tradutor: “bourdoir” (ou, na sua forma aportuguesada, “budoar”) refere-se a um cômodo “pequeno e elegante, reservado à dona da casa, que nele pode se isolar ou receber pessoas íntimas” (Houaiss). A palavra deriva do verbo “bouder“, que significa “ficar amuado”. Em inglês, a tradução de “boudoir” – “sulking room” – leva em conta esses aspectos.
[4] Mario Perniola, “Between Clothing and Nudity”, em Michel Feher (ed.), Fragments for a History of the Human Body, New York: Zone, 1989, p. 237.
PARA CITAR ESTA PUBLICAÇÃO
NOBLE, Richard. “Jana Sterbak: Dialética da Criação e do Confinamento”. Trad. de Fernando L. Costa. eRevista Performatus, Inhumas, ano 2, n. 9, mar. 2014. ISSN: 2316-8102.
Tradução do francês para o português de Fernando L. Costa
Revisão ortográfica de Marcio Honorio de Godoy
Edição de Mãe Paulo
© 2014 eRevista Performatus e o autor
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