Em Relação (2020). Apresentação final da Residência Artística Virtual “Práticas para Criação Artística Através da Internet”, do artista e pesquisador Daniel Pinheiro. Imagem de Isabel Costa
EIXO RESIDÊNCIAS é uma plataforma de residências artísticas situada em Mosteiró/Vila do Conde, em Portugal, dirigida por Isabel Costa (Portugal) e Malena Albarracín (Argentina).
Essa plataforma, criada em janeiro de 2020, e vencedora da bolsa StartUP Voucher 2019-2022, da StartUP Portugal – Estratégia Nacional para o Empreendedorismo, pretende disponibilizar um lugar de criação na área das Artes Performativas e aproximar a criação artística às comunidades locais.
Em sua primeira fase de desenvolvimento, estava previsto concretizar-se uma Residência Artística (RA) piloto, intitulada “Tango e Danças Folclóricas”, com a artista convidada Andrea Ghuisolfi (Uruguai), quando foi decretado o Estado de Emergência em Portugal no contexto da pandemia de SARS-COVID-19.
Para se dar continuidade ao projeto, tivemos de reajustar todo o plano de trabalho e decidimos concretizar a primeira RA piloto através de uma Residência Artística Virtual (RAV). Nesse sentido, convidamos o artista e investigador Daniel Pinheiro, especialista na exploração da criação artística no contexto da Arte Telemática. Esta RAV “Práticas para Criação Artística Através da Internet” concretizou-se de 30 de abril a 21 de maio de 2020 na plataforma ZOOM, em colaboração com um grupo de dez participantes ligadxs às artes performativas, entre os quais alunxs das Escolas de Dança da Juventude Unida de Mosteiró e do Centro Municipal da Juventude de Vila do Conde e algumas/alguns artistas de Portugal, Holanda, Brasil, Uruguai e Argentina.
Ao longo de quatro sessões, Daniel procurou dar a conhecer alguns dos seus projetos desenvolvidos em colaboração com outrxs artistas, à distância e através das possibilidades apresentadas pela tecnologia, com práticas de criação artística em (e na) rede. A prática desenvolvida em torno desses projetos trouxe também a exploração da dinâmica gerada entre indivíduo e máquina, procurando dessa forma comentar o impacto da tecnologia nas noções de espaço, identidade e agência (capacidade de ação).
As quatro sessões culminaram numa apresentação final, denominada Em Relação, onde se procurou reunir as vontades dxs participantes e experimentações levadas a cabo durante as sessões anteriores, todas elas no sentido de ativar a relação entre xs várixs intervenientes através da distância que, nesse caso, xs unia num tempo e espaço únicos e com as características impostas pelas ferramentas utilizadas!
Em resposta à questão “O que, para ti, mudou depois da RAV?”, Daniel Pinheiro diz que “abriu a possibilidade de experimentar um formato de formação/prática no campo em que trabalho e, nesse sentido, gerou a vontade de desenvolver mais essa estrutura para outros contextos no futuro”.
Colocando a mesma questão às/aos participantes, obtivemos diferentes testemunhos:
“Descobri possibilidades e descobri ainda que posso descobrir muitas mais possibilidades.”
“Ajudou-me a perceber as alternativas criativas que softwares comumente usados para ‘formalidades’ podem ser utilizados para fins artísticos.”
“Esta experiência deixou várias questões interessantes: que espaço há à criatividade nas diferentes áreas da nossa vida? E como criar uma “relação” nas diferentes formas como nos conectamos virtualmente? E as palavras? Como é que as pesquisamos? Como é que as usamos? Como é que as ouvimos? Que importância têm?”
“Oh, gera-me uma sensação dupla, desejos de fazer/usar o conhecimento adquirido e, ao mesmo tempo, um desespero de viajar, encontrarmo-nos, abraçarmo-nos!”
“Acho que me abri um pouco mais para as possibilidades de interação e realização de trabalhos virtuais.”
Quando recebemos o convite de Mãe Paulo e Tales Frey para escrever para a eRevista Performatus sobre a experiência da RAV, abrimos esse convite a todxs xs participantes. Então, a bailarina e escritora argentina Josefina Zuain aceitou o desafio e partilhou a sua experiência através do objeto artístico “O Meu Corpo Nela”, (“Mi Cuerpo en Ella”, título original) que expomos de seguida traduzido para o português.
Isabel Costa e Malena Albarracín
Direção artística de EIXO Residências Artísticas
O Meu Corpo Nela
Josefina Zuain
Nestes dias algo se curva entre as minhas omoplatas. Ou atrás duma. Ou atrás da outra. Uma curva nova está a mudar a forma das minhas costas. Estreio uma extensão. Como um cacto que tira uma cria de si mesmo para tentar obter alguma luz. Deve ser as horas que passamos juntas. Ou a intenção do meu corpo nela. Ela A Inalcançável. Ela Toda. Ela e eu.
Enquanto a minha cara tenta entrar na tela, os meus olhos esticam-se para fora da cabeça e um sorriso grotesco escapa da minha boca, mostrando muitos dentes e manifestando os nervos que me provocam a situação de estar conectada. Enquanto me contraio toda sobre ela. Até atrás, uma parte do meu corpo quer sair ou não quer entrar.
Não estamos a encontrar a distância certa.
Zoom Dia 1
A voz arrasta-se. As dx outrx, claro. A minha, escuto-a perfeitamente porque estou comigo. A minha imagem congela-se, a de alguém que não conheço também. Os narizes parecem todos maiores do que eram quando andava pela rua. Eu, para frente, para trás, para frente, para trás. Há voracidade no meu olhar que pica de ponta a ponta na tela com a velocidade de um inseto histérico.
Frame. Pareço deformada. É como se um cartum tivesse escapado da minha cara e me representasse.
Alguém entra, sai, entra, sai. Algum(x) outrx faz barulho. Cai uma câmera. Ouve-se que uma pessoa um pouco dispersa responde a uma mensagem de áudio. Algum participante começa a falar e desaparece. Fundo branco, uma janela, bibliotecas… Vejo alguma plantinha, sei quem tem um animal de estimação. Vigio a atitude dos demais. Sim, vigio, sou horrível. E também sou duas. Uma que se vê, outra que se ouve. O Meu nome aparece gigante sobre fundo preto num dos quadrados da reunião. E noutro quadrado a minha cara-cartum. Presença duplicada por divisão.
A gente se cumprimenta. Olá, pode me ouvir?
Insistimos. Pode me ouvir?
Corroboramos. Agora sim, sim.
Hesitamos. Agora sim? Me ouve?
Ela e eu nunca chegamos. Sempre estamos a entrar e a cair, a falar e a conectar, reverberando e voltando. Infinitos cliques permitem-nos voltar e voltar a entrar e voltar a voltar a entrar.
As metáforas espaciais fazem parte disso. Não estou certa se mover-me é exatamente o que acontece.
Ela
Ela A que Devora Tudo com Habilidade. Os seus filhos nascem, saem e voltam para entrar na sua goela. Tudo o que acontece no mundo pode integrar-se nela. Brincamos que é um meio (mas) sabemos: é tudo, é Toda. A maior ficção que vivemos juntas é de disponibilidade e de estabilidade. Nenhuma das duas coisas são certas. Que não seja mal interpretado, já vivi situações piores.
Mas a falta de espaço entre mim e ela, tensiona as minhas costas. Ela é absorvente. A Una. A Toda. A Inevitável. A Insubstituível. A Paciente. A Misericordiosa. Sempre disponível, sempre disposta a falhar, sempre ali para que juntas voltemos a tentar.
Após a infinidade de insistências, durante esses tempos extensos em que juntas tentamos socializar com outrxs, conseguimos fazer de conta que “tudo isso” não está mais a acontecer. Como um casal que já não discute mais. Não há interferência, não há câmeras paradas, não vemos nem ouvimos o que não devíamos. Entramos, saímos, caímos, voltamos. A impermanência é o modo de estarmos juntas aqui, hoje, com outrxs.
E o silêncio? O silêncio nos aterroriza.
Recordações do Mundo Material
Durante os meus dias em quarentena, lembrei-me de infinitas cenas de professores tentando colocar um VHS, um DVD ou projetar imagens com seus computadores na sala de aula. Os nervos, a sensação de vergonha e dificuldade, uma vulnerabilidade aparecia naqueles momentos. A crise de autoridade do professor, exposta na necessidade de pedir ajuda aos alunos até ao último momento em que o DVD começa, mas faltam as legendas.
Não sei quanto tempo me leva pôr um filme e deitar-me para assistir a algo com meu projetor; não tenho registro se falha mais vezes do que funciona. Não me lembro da quantidade de filmes que deixamos pela metade, ela primeiro, depois eu.
Os quatro primeiros dos noventa e nove nomes de Allah são
ar-Rahmân, (O Possibilitador de Existência)
ar-Rahîm, (o Que Conduz Cada Criatura Para a Sua Plenitude)
al-Málik, (O Rei a quem Tudo Está Subjugado e a Nada se Subjuga)
al-Quddûs, (O Indescritível. O Irrepresentável)
Ela
A Inevitável. Falar sobre ela é parte do destino traçado. Volta sobre si mesma, capta a atenção de tudo. Toda. Ela. Ela é Tudo.
Em qualquer dia normal (antes, quando existia algum tipo de rotina), chegávamos a um lugar com chuva ou calor ou num inverno gelado. Falávamos disso. Um pouco. Partilhávamos como cada um estava a viver e a sentir. Como o tempo nos estava a afetar. Não se falava de uma aula numa sala de aula – numa aula. Falava-se do que se falara e às vezes de qualquer coisa, mas quase nunca se falava de pintura, as paredes, os bancos, a luz… O aquecimento (lembro-me) ocupava os seus segundos de conversa.
A Inexorável. A Impalpável. A Venerada. A Que Tudo Dá e Tudo Tira. A Que Nem Toca Nem É Tocada. Irrepresentável mas real. Indescritível, invisível. Dela falamos o tempo todo. O Nosso tempo (hoje) é nela.
Zoom Entrada n. 54
As conversas pelas plataformas digitais correm o risco de reduzirem-se a um teste de som.
Pode me ouvir? Pode me ouvir?
Desesperada, insistente. Consegue me ouvir?
Sim, sim, estou aqui.
Falta que me gritem. Tranquila!! Estou aqui!!
Zoom entrada n. 5500
Quando recebi o convite para participar na edição virtual de EIXO, me senti triste e grata. Triste porque não é o mesmo participar numa residência que ergue o seu formato a partir da impossibilidade. Mais grata do que triste, porque soube que era uma oportunidade para des-pensar-me no im-possível e descobrir que algo igualmente bom poderia acontecer. Uma casa numa montanha nevada requer fogo.
Receamos a novidade e criar-fazer-ser-estar continuava a ser uma ocasião para partilharmos e polirmos o nosso recém marcado casamento. Então saímos para o mundo social qual casal escaldante, a medir os nossos movimentos, observando-nos uma à outra.
Ao longo do processo, dos “encontros”, das “sessões” de experimentação, viajei por muitos estados. Ela Toda. Eu nela e com ela. Meu espírito está sujeito À Intangível. A Minha presença depende do fio fino de nosso relacionamento. Ela, A Instável.
Residir é aprender a viver. Ensaiar maneiras nunca é ruim.
Podemos fazer da ligação algo mais criativo.
Ela
De todos os estados de humor, os dela são sempre os mais evidentes. Não há um bom sinal de internet em casa, o computador não tem câmera, os microfones fazem interferência, a bateria do iPhone herdado está sulfatada… Ela é Toda. As suas necessidades se impõe como prioridade. As Minhas costas ficam mais tensas, chegam mais longe de mim, continuo a expandir-me.
Ela é mais importante que eu.
Nós
Percebi então que nossa participação na residência ia a ser de adaptação. Adaptar-nos a condições de realidade desconhecidas, despercebidas e inexploradas é a nossa sobrevivência amorosa. Residir é adaptar(-se)(nós).
Os primeiros dias de quarentena foram confusos. Os últimos já quase não são dias. Não é um problema de horários, de fato nossos horários são mais organizados agora do que antes. Ela regula o tempo que não é meu (talvez nunca tenha sido e eu não o notei até os meus 35 anos). O sol não entra pela janela e, no entanto, nunca dormimos depois das 10 da manhã. A sua insônia afeta de forma direta as minhas horas de descanso.
Não é necessário idealizar. Temos que desarmar o projeto e viver com o real.
Quando entramos juntas na plataforma Zoom do EIXO, sinto o entusiasmo intangível do encontro com os outrxs. O desejo de diálogo.
Há valor na minha presença. Ela ainda está lá com as suas goelas abertas, sedenta por palavras sobre si mesma. A Sedenta. Aquela Que Bebe Tudo.
Eu sinto uma nova forma, para continuar a sentir-ser-estar-pensar. Acalmo-me. Sinto-me aliviada. A procura de diferentes maneiras de usar as plataformas virtuais convida-me a livrar-me um pouco dessa visão apocalíptica de um mundo inabitável.
Não dramatizes tanto Jo. Ela me disse.
Durante este mês, nos conectarmos para jogar foi uma excitação vital. Deu uma lufada de ar fresco ao meu casamento recente. Ativar espaços não produtivos nem afetados pelas obrigações. Imaginei o meu pai perguntando a mim, mas … o que está fazendo? E soube que não ter a resposta era, mais uma vez, uma forma de estar. Estou.
Sim, sim, amor, estamos.
Não que eu tenha me desmaterializado. O meu corpo está comigo.
Sou a Josefina. Olá, está me ouvindo?
Adapto-me, logo, estou (a chegar).
PARA CITAR ESTA PUBLICAÇÃO
ZUAIN, Josefina. “O Meu Corpo Nela”. Trad. de Isabel Costa e Malena Albarracín. eRevista Performatus, Inhumas, ano 8, n. 21, jul. 2020. ISSN: 2316-8102.
Revisão ortográfica de Marcio Honorio de Godoy
Tradução do espanhol para o português de Isabel Costa e Malena Albarracín
Edição de Mãe Paulo
© 2020 eRevista Performatus e a autora
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