Registro do Primeiro Tour Feminista do Porto, em maio de 2019. Fotografia de Tiago Barbosa. Arquivo Coletivo MAAD
Companheira me ajude, eu não quero andar só.
Eu sozinha ando bem, mas com você ando melhor.
— Trecho do cântico da Marcha Mundial das Mulheres
O Tour Feminista da cidade do Porto, criado pelo Coletivo MAAD – Mulheres, Arte, Arquitetura e Design (Alícia Medeiros e Isabeli Santiago), com a colaboração de Laurem Crosetti, em Portugal, teve início durante o IV Festival Feminista do Porto, em maio de 2019. Desde então passou a realizar-se regularmente, tendo alcançado mais de uma centena de pessoas. Criado sob a premissa do combate à tendência histórica do silenciamento feminino nas narrativas sociais, o Tour Feminista do Porto responde também à urgência de repensar coletivamente a cidade do Porto e a(s) sua(s) História(s) a partir de um enquadramento crítico, político, feminista [1] e ativista.
Caminhando pela cidade, através de um percurso fluido de três horas (aproximadamente), ativamos a memória de mulheres como Ana Plácido, Carolina Michaelis, Gisberta Salce, Henriqueta da Conceição e Virgínia de Moura, que constituem o roteiro fixo do Tour.
Sendo a cidade um organismo vivo e em constante transformação, esse resgate histórico é, por sua vez, permeado por narrativas múltiplas que contemplam desde os marcos efêmeros da paisagem urbana até às partilhas pessoais das pessoas que conosco caminham. Essa interação permite-nos estabelecer o diálogo entre problemáticas históricas e atuais, enquanto os relatos na primeira pessoa expandem a experiência das vivências narradas da esfera pessoal para a esfera política. Toda essa dinâmica, além de problematizar o apagamento visual e a distorção da memória simbólica feminina na toponímia consequente do silenciamento histórico, assume contornos de uma prática historiográfica radical e performativa que alimenta o arquivo mental coletivo com referências outrora marginalizadas.
[ PARTE I ]
– ENQUADRAMENTO HISTÓRICO DA PROBLEMÁTICA –
Havemos de relembrar que toda a História está por ser reescrita dos pontos de vista das pessoas silenciadas pelos supostos universais que ocuparam o poder e as destituíram do lugar de sujeitos. (Zarvos; Small; Barcelos, 2018)
Historicamente a opressão feminina esteve sempre associada ao espaço, seja este físico ou simbólico. Desde o gineceu Clássico aos desdobramentos contemporâneos encontramos o desenvolvimento dos espaços, os seus usos e funções, o acesso aos mesmos, moldados a partir de critérios opressores, dentre eles critérios fixados a partir da discriminação de gênero, raça e classe. A partir desses critérios, a divisão primária e simbólica dos espaços – público e privado – foi sendo progressivamente estabelecida. Assim, de modo genérico, estipulou-se o espaço público como sendo reservado aos “homens” e o espaço doméstico reservado às “mulheres” [2]. Se ao espaço público corresponde uma construção coletiva política e simbólica concebida sob dinâmicas de poder, a exclusão da presença física das mulheres [3] nesses mesmos espaços espelha a exclusão da sua participação simbólica na vida pública, validando simultaneamente o estatuto de privilégio dos sujeitos masculinos.
Em seu livro Mulheres na Cidade, a historiadora Michelle Perrot [4] fornece um enquadramento histórico que articula o desenvolvimento das práticas e vivências urbanas, individuais ou coletivas enquanto reflexo da diferença de gênero. A autora mostra como, desde a antiguidade Clássica, homens e mulheres tiveram a sua presença espacial definida a partir de uma série de valores cívicos, políticos, morais e simbólicos. Tais valores foram, primeiramente, determinantes na própria definição dos espaços público e privado que, em última instância, se determinam por uma oposição.
No caso do espaço público, Perrot chama a nossa atenção para a complexidade da sua dupla composição simbólica; se por um lado a esfera pública designa um conjunto jurídico ou de costumes que regulam os direitos e deveres que constituem uma comunidade, corresponde também aos laços imateriais que formam a opinião pública, sendo que estas dimensões surgem constantemente sobrepostas e articuladas. Espacialmente, sob uma perspectiva concreta e material, o espaço público equivale, em termos gerais, à cidade e, enquanto espaço sexualizado, reflete as tensões derivadas da diferença de gênero:
No espaço público, na cidade, homens e mulheres estão situados em dois extremos da escala de valores. […] Investido de uma função oficial, o homem público desempenha um papel importante e reconhecido. Com maior ou menor reconhecimento, participa no poder. É possível que receba homenagens nacionais póstumas. É candidato potencial ao Panteão dos Grandes Homens que a pátria, agradecida, honra. Depravada, perdida, ousada, vendável [5] […] A mulher pública é uma “criatura”, uma mulher comum, que pertence a todos. O homem público, sujeito eminente da cidade, deve encarnar a honra e a virtude. A mulher pública constitui a sua vergonha, a parte oculta, dissimulada […] objeto vil […] disponível, sem individualidade própria. (Perrot, 1997, p. 7, trad. livre)
A concepção do espaço enquanto sexualizado é, portanto, essencial para a contextualização e análise do espaço público e das suas vivências que aqui propomos; pois, como destaca Perrot, além de tornar visível a tensão entre os gêneros, o espaço público modela e é modelado por essa mesma tensão. Por outro lado, dessa tensão de gênero/sexual irão emanar as possíveis leituras políticas e/ou poéticas do espaço.
[SOBRE O LUGAR DAS MULHERES]
A compreensão das variadas definições de espaço – público e privado, sexualizados – demonstra que o lugar da mulher na sociedade foi sempre problemático, especialmente sob uma matriz ocidental onde, desde a Grécia Clássica [6], pensa-se a cidadania como exercício político, concentrando-se na comunidade cívica o núcleo de decisão e poder. Ao observar a cidade grega, ou a cidade romana, exemplos dessas civilizações, nos deparamos com a ideia do desajuste feminino face ao espaço e à vida pública.
Para os atenienses, por exemplo, o corpo do cidadão deveria se sentir à vontade no espaço da cidade, o que notoriamente era observado através da nudez pública. A prática da exibição da nudez, reservada aos homens livres, era simbólica da sua “dignidade de cidadão”. Tal concepção ateniense a respeito da nudez, diz o sociólogo Richard Sennett, provinha da crença sobre o calor corporal e suas consequências fisiológicas. O corpo quente era o mais forte, ágil, articulado e dominante [7], enquanto o frio era fraco, passivo e inerte. Os atenienses estendiam esses atributos da temperatura aos sexos, sendo que os corpos femininos [8] eram os mais frios (Sennett, [1994] 2008).
Assim, pode-se dizer que apesar do notório culto ao corpo praticado pelos gregos, estes continuavam a excluir diversos corpos da experiência, espaço e representatividade urbana e, consequentemente, política. Essa exclusão acabava por demarcar uma separação muito visível entre as esferas públicas e privadas. Essa separação brutal, concebida pelos gregos, é determinante para a sociedade da época e sua consequente visão sobre os papéis de gênero. Se no espaço público, conectado à cidadania, encontrava-se a liberdade e a igualdade (de se estar entre iguais, “homens cidadãos”), no espaço privado, habitado por mulheres, servos e escravos, reinava a desigualdade, pela submissão e pelas necessidades de preservação, reprodução e sobrevivência da espécie (Arendt, [1958] 2001). A ideia do espaço da casa (privado) como sendo a esfera de ocupação do feminino e o espaço da cidade (público) pertencendo ao masculino continuou ao longo da história, mesmo que algumas evoluções em relação à igualdade de direitos tenham acontecido.
Herdamos da matriz clássica o estereótipo do desajuste feminino face à vivência do/no espaço público que continuou a ser propagada no contexto da democracia ocidental moderna. Estabeleceu-se um cânone a partir do qual fomos historicamente definidas como o outro oposto de um (o homem) (Beauvoir, [1949] 2015, p. 16) e, por isso, “irracionais, selvagens, instáveis, manipuladoras, histéricas”; constituindo-nos uma ameaça.
Com a expansão do cristianismo e a consequente introdução dos moldes ideológicos religiosos nas estruturas sociais coletivas e privadas, assistimos à redução da subjetividade feminina ao corpo – incontrolável, pecaminoso, lascivo e sujo. Não deixa de ser curioso observar que mesmo após “renascimentos”, “iluminações” e desenvolvimentos nas ciências, na filosofia, nas tecnologias, tais perspectivas que nos consideram biológica e intelectualmente incapazes e inferiores se tenham mantido praticamente imutáveis até o século XVIII.
Embora o contexto europeu pós-Revolução francesa revele uma série de mudanças sociais e políticas elementares, dentre elas a reestruturação e reconfiguração do espaço público, cuja influência faz-se presente ainda na contemporaneidade, não podemos deixar de mencionar a culpabilização histórica feminina presente nas obras de teóricos como Jules Michelet (n. 1798), Gustave Le Bom (n. 1841), Gabriel de Tarde (n. 1843), Hippolyte Taine (n. 1828) etc. No caso de Michelet, por exemplo, Perrot destaca a formulação e disseminação de uma perspectiva historicista que atribuía os desastres históricos ao desequilíbrio dos sexos (Perrot, 1997, p. 9). Tal argumento serve para reforçar ainda mais os estereótipos sociais de gênero em que a mulher é designada como “feita” para a vida doméstica, fada do lar, mãe e cuidadora da família; essa definição patriarcal resulta, ainda hoje, extremamente benéfica para os homens [9].
Todavia, é também a partir do século XVIII que, de forma mais expressiva, as mulheres começam a desenvolver estratégias que permitam a sua participação na vida pública, ainda que indiretamente. Nesse contexto, o acesso das mulheres [10] ao espaço público vai sendo conquistado também através de atividades artísticas, como a pintura e a escrita [11]; sendo a última a mais significativa.
A transição do século XVIII para o século XIX, na Europa, foi profundamente marcada pela Revolução Industrial que, além de consolidar mudanças nos meios de produção, influiu diretamente no crescimento urbano que se intensificou exponencialmente. Estabeleceu-se assim um novo contexto, o da metrópole, com o ambiente urbano a fervilhar, ocupado pelas multidões. Nesse cenário, onde um novo estilo de vida começa a formar-se, surge um personagem destinado a admirar e a maravilhar-se com essa nova estrutura de cidade-metrópole e suas rotinas caóticas – o flâneur.
O termo em francês, profundamente explorado na literatura de matriz europeia, especialmente pelo poeta Charles Baudelaire, remete à figura de um andarilho, ou mesmo um caminhante vadio que vagueia despretensiosamente pela cidade. O retrato deste personagem que vaga entre as reformas urbanas e as multidões parisienses, cuja paisagem foi profundamente alterada pelas intervenções haussmanianas, parece dominar a escrita de Baudelaire, juntamente com um imenso fascínio pelo urbano.
Sob a perspectiva historiográfica, crítica e feminista, que até agora temos vindo a traçar, podemos enquadrar a figura do flâneur sob diferentes prismas. Se por um lado o aparecimento dessa figura revela a percepção do caminhar como forma poética, revela também as especificidades de contexto que permitem o livre deslocamento desse sujeito pela metrópole, especialmente o gênero. Segundo as investigadoras Elfriede Dreyer e Estelle McDowall, “a posição das mulheres nas ruas, portanto, sempre foi marginal, e suas experiências limitadas e reguladas”, enquanto o homem continua livre ao transitar pelo espaço urbano. Dito isso, é importante mencionar que a imagem do flâneur, como uma mulher, nunca foi explorada no século XIX e segue, ainda hoje, de difícil visualização [12] (Medeiros, 2019).
A análise do flâneur elaborada por Walter Benjamin, que o define como principal espectador urbano, salienta outros aspectos do contexto privilegiado desse sujeito. Vejamos: o flâneur de Baudelaire (século XIX) não é qualquer pessoa do gênero masculino, que caminha pela cidade entre casa, trabalho e lazer, mas sim um personagem que se deixa levar pela vida pulsante das grandes metrópoles. Tampouco é um turista, no sentido mais banal da palavra, pois “flânerie [a ação do flâneur] requer um conhecimento da cidade, e para Baudelaire o flâneur só poderia ser um verdadeiro artista se conhecesse a cidade e como usá-la” (Elfriede Dreyer & McDowall, 2012, p. 31, trad. livre). Esse é antes um boêmio, um anônimo na multidão, sem grandes objetivos em suas caminhadas a não ser estar nas avenidas, ruas, becos e vielas. Para a socióloga e acadêmica Janet Wolff, o flanêur do século XIX é “necessariamente masculino”. Sobre esse privilégio, a autora escreve:
O privilégio de passar despercebido na cidade, particularmente no período em que o flâneur floresceu – ou seja, meados do século XIX até o início do século XX – não era concedido às mulheres, cuja presença nas ruas certamente seria notada. Não apenas isso, como muitos historiadores do período apontaram, as mulheres em público, e particularmente mulheres aparentando vagar sem objetivo, imediatamente atraem o selo negativo do “não respeitável”. Não é por acaso que a prostituta aparece como o tropo central feminino no discurso da modernidade, o problema para as mulheres era a sua identificação automática como a “prostituta de rua” sempre que andavam na rua. (Wolff, [2003] 2008, p. 19, trad. livre)
Segundo Dreyer e McDowall, na cidade, mulheres são vistas como parte da arquitetura urbana, algo a ser observado pelo flâneur, se tornando assim parte das mercadorias do espetáculo urbano (Elfriede Dreyer & McDowall, 2012, p. 33). As figuras femininas que ocupam o espaço público no século XIX são facilmente associadas às prostitutas ou mulheres da classe trabalhadora, julgadas como sendo pessoas sem valor moral, o que muitos autores veem como uma das principais razões pela qual as mulheres ainda seriam olhadas e tratadas como objetos a serem consumidos no ambiente urbano. A presença de mulheres no espaço público urbano do século XIX é então invisível, ou marginal [13].
Com a fundação da União Nacional Pelo Sufrágio Feminino (1897), por Millicent Fawcett (1847-1929), no Reino Unido, inaugura-se o movimento “sufragista”. Embora as origens políticas do feminismo [14] surjam comumente associadas à Revolução Francesa (1789), é a partir das ações dessas primeiras sufragistas que se desenvolve a ideia de ativismo político feminista, cujo impacto alargado expandiu a luta pelos direitos cívicos das mulheres a outros países. Desde então fomos, progressivamente, tendo acesso a uma série de direitos [15] básicos como: voto, contracepção, aborto, acesso a educação etc.
[ PARTE II ]
– PONTO DE PARTIDA: UMA (RE)AÇÃO POÉTICA À CIDADE PATRIARCAL –
A palavra e sua circulação moldam mais a esfera pública do que o espaço material. Olympe de Gouges não está errado quando declara em plena Revolução: “A mulher tem o direito de subir à tribuna!” A noção de que sua natureza a condena ao silêncio e à obscuridade está afetuosamente ancorada em nossas culturas. (Perrot, 1997, p. 61, trad. livre)
A noção do espaço como resultado de atividades cognitivas (Anders, 1998) surge, historicamente, perspectivada de diferentes formas. Contudo, desde o século XIX, encontramos abordagens mais amplas, em que essa ideia surge criticamente desenvolvida e articulada na produção teórica de diferentes disciplinas e até mesmo dos movimentos sociais. Curiosamente, as formulações críticas mais recentes, que partem da análise do espaço público, conferem especial importância ao papel do discurso na construção das diferentes dimensões, concretas ou simbólicas, que compõe esse mesmo espaço.
No caso concreto do contexto europeu pós-guerra (Primeira e Segunda Guerra Mundial), a dimensão discursiva das cidades foi alvo de profundas reflexões, grande parte delas associadas às manifestações arquitetônicas e artísticas que reificavam discursos violentos e opressores, validados materialmente através de símbolos, monumentos e marcos visíveis na paisagem urbana. Também a produção artística, de um modo geral, tornou-se alvo de questionamento sob essa perspectiva de discurso/dialética de reificação, tal como abordado por Theodor W. Adorno, em 1949, no seu ensaio Crítica da Cultura e da Sociedade.
Contextualizando os desenvolvimentos destas reflexões dentro do enquadramento feminista que temos vindo a traçar, torna-se possível compreender como discurso, reificação e opressão patriarcal surgem articulados na exclusão e/ou no condicionamento da presença das mulheres no espaço urbano. O caso da cidade do Porto, em Portugal, é, nesse contexto, extremamente exemplificativo. Como se lê em trechos do prefácio do livro Toponímia Feminina Portuense:
O Porto faz parte do grupo muito restrito de cidades “no masculino”. Nascemos “no” Porto. Vamos “ao” Porto. Aquilo é “do” Porto… E quando se concebeu uma estátua que representasse a cidade, a figura escolhida foi, obviamente, masculina: a do guerreiro “o Porto” […] Todavia, e não obstante esta sua particularidade “masculina”, a verdade é que a cidade sempre foi fortemente marcada pelo eterno feminino. Desde logo, e já em época longínqua (ou lendária, se aceitarmos a explicação da fantasiosa reconquista da cidade por uma armada de gascões em 988), o Porto foi consagrado à entidade feminina mais importante na devoção e religiosidade católicas: a Virgem.
[…]
A presença e a incontornável influência feminina na cidade não se limita, contudo, à dimensão lendária. São múltiplos os exemplos do seu protagonismo ao longo da história do Porto. A lista seria fastidiosa. […] Chegados ao século XIX, e de um modo evidente ao longo do XX, as mulheres e o seu papel activo em múltiplas frentes da sociedade começam a ganhar nome e rosto. E o Porto foi, não raras vezes, e apesar das resistências e dos convencionalismos, uma cidade protagonista nessa afirmação e emancipação. Médicas, engenheiras, artistas, políticas, investigadoras, professoras, beneméritas… um número muito significativo de mulheres irá evidenciar-se e, por isso, muito justamente, ser recordado na toponímia da cidade.
[…]
É de tudo isto, e muito, muito mais, que nos fala o livro que tem entre mãos [Toponímia Feminina Portuense]. Ao longo das páginas seguintes deixe-se, pois, conduzir pela mão e mestria do César Santos Silva, pelas ruas, vielas, congostas, praças e escadas da cidade. Profundo conhecedor da história do Porto e da sua toponímia, o autor é um guia esclarecido e esclarecedor. De A (que o mesmo é dizer da Rua Adelaide Estrada) a Z (que neste caso é V, relativo à Rua das Virtudes), César Santos Silva revela-nos 146 topónimos femininos do Porto. Uma cidade escrita no masculino, mas que não renega a sua faceta feminina. [16] (Joel Cleto em Silva, 2012)
É certo, como apontado por Foucault, que em uma sociedade como a nossa, o discurso não é só aquilo que “traduz as lutas ou os sistemas de dominação, mas aquilo por que, pelo que se luta, o poder do qual nos queremos apoderar” e, como tal, esse poder está sujeito ao que o autor chama de “sistemas de exclusão” (Foucault, [1971] 1996, p. 9-10). As relações de poder são, em sua essência, estruturais, e nas relações entre gêneros, não é diferente. Isso significa que o poder pode ser expresso em diversas esferas, como na política, na economia, na esfera da representação visual e escrita, nas relações trabalhistas, sociais, íntimas (Medeiros, 2016). Nesse segmento, chamamos a atenção para a esfera do espaço público, onde a relação de poder entre os gêneros dá-se, também, através de elementos da paisagem urbana, tal como as indicações toponímicas e determinadas obras de arte/monumentos públicos que reificam discursos de exclusão, silenciamento e objetificação feminina.
Embora alguns autores se esforcem para defender o reconhecimento público da presença histórica das mulheres na cidade do Porto, como faz César Santos Silva – autor do livro Toponímia Feminina Portuense –, a percepção de quem caminha atentamente pela cidade à procura desses indícios se depara com o clássico cenário de apagamento e silenciamento histórico, quando não o da fetichização e erotização das figuras femininas. Sobre a publicação em questão, a surpresa do título sonante é rapidamente substituída pela desilusão face ao seu conteúdo. É bem verdade que o autor nos oferece uma lista com 146 entradas toponímicas “femininas”, MAS, considerando o binarismo de gênero presente na língua portuguesa, que assume como femininas palavras que não correspondem a pessoas, a lista vê-se reduzida a uma série de figuras religiosas e uma minoria, pouco expressiva, de personagens históricas reais. As tais 146 entradas femininas correspondem ainda a cerca de 5% da toponímia total da cidade. O mesmo acontece se considerarmos as manifestações de arte pública, salvo raras exceções (Busto de Virgínia de Moura, Placa Comemorativa na casa de Carolina Michaelis, antigo busto de Sophia de Mello Breyner Andresen…), deparamo-nos com figuras femininas anônimas, alegorias (da juventude, da fertilidade, da agricultura, da justiça…) de feições idealizadas e corpos extremamente erotizados (veja-se a estátua de Rosalía de Castro, da autoria de Barata Feyo, inaugurada em 1954 ou, um exemplo mais recente, a escultura Amores de Camilo, de Francisco Simões, inaugurada em 2012).
Registro do Primeiro Tour Feminista do Porto, em maio de 2019. Fotografia de Aida Suárez Gutierrez. Arquivo Coletivo MAAD
Foi a partir desse duplo contexto – histórico e alargado/contemporâneo e situado na cidade do Porto – que desenvolvemos a proposta do Tour Feminista. Retomando as estratégias utilizadas pelas mulheres do século XVIII, que viram na escrita uma possibilidade de dissolução das fronteiras de acesso ao espaço público, partimos das nossas vivências partilhadas (mulheres, imigrantes, feministas) e das nossas ferramentas individuais (formação acadêmica, prática artística, investigação), para elaborar uma proposta de ação que transitasse do pessoal para o político. Essa abordagem surge também pela consciência e reconhecimento do nosso privilégio de mulheres com acesso à educação e formação acadêmica. Assim, foi sob o enquadramento de combate feminista alargado e interseccional que construímos o Tour Feminista do Porto, através de uma prática poética e política [17], que trata a problemática da presença da mulher no espaço público através de ações concretas desenvolvidas coletivamente na cidade.
[PESQUISA]
Intervenção em giz com trechos do texto Eu Gisberta (2015) de Mãe Paulo, em frente ao edifício Pão de Açúcar, durante o primeiro Tour Feminista do Porto (2019). Fotografia de Tiago Barbosa. Arquivo Coletivo MAAD
O processo de pesquisa foi constantemente atravessado pela própria problemática do silenciamento e apagamento histórico. Devido à tradição historiográfica patriarcal, são poucos os documentos e estudos publicados dedicados à vida e obra de mulheres. Todavia, nos arquivos municipais (museus, bibliotecas), nos repositórios abertos das universidades portuguesas e nas plataformas de ativismo político, encontramos informações que, apesar de fragmentárias na maioria dos casos, nos permitiram criar a base para a elaboração de um roteiro. Apoiamo-nos ainda na obra de algumas mulheres que chegaram até nós e que integram o percurso do tour, tal como a publicação Luz Coada Por Ferros, de Ana Plácido, e alguns ensaios de Carolina Michaelis. A literatura, tal como o livro de A. J. Duarte Júnior sobre Henriqueta da Conceição (Júnior, 2016) e o arquivo da imprensa de época foram também utilizados por nós. O tratamento de todo o conteúdo recolhido foi então trabalhado por nós de modo a criar uma narrativa crítica e alternativa, articulado a um discurso que se propõe como prática de historiografia informal e radical.
Roteiro Tour Feminista do Porto. Fotomontagem de Alícia Medeiros (Coletivo MAAD)
– Ana Plácido (1831-1895);
– Carolina Michaelis (1851-1925);
– Gisberta Salce (1961-2006);
– Henriqueta Emília da Conceição e Sousa (1840-1874);
– Virgínia de Moura (1915-1998).
[O FORMATO DE TOUR]
Para os errantes, a cidade deixa de ser uma simples mercadoria imagética no momento em que ela é vivida e essa experiência inscreve-se no seu corpo. Dessa forma, a cidade sobrevive e resiste à espetacularização no próprio corpo de quem a pratica, nas corpografias resultantes de sua experimentação, uma vez que essas corporalidades, por sua simples presença e existência, denunciam a domesticação, a pacificação dos espaços luminosos e espetaculares. (Jacques, 2012, p. 303)
Cada pessoa cria uma imagem mental diferente do espaço que ocupamos. Segundo o geógrafo Yi-Fu Tuan, grande parte da percepção que temos do espaço é dada pela capacidade de nos movimentarmos. Assim, a nossa locomoção pelo espaço urbano acaba sendo um aspecto fundamental no âmbito da arte para o espaço público citadino (Tuan, 1983).
Para além do já mencionado flanêur, outro conceito muito visitado, no que diz respeito às errâncias urbanas, é a deriva, uma prática levantada pelo movimento Internacional Situacionista (IS). A criação desse movimento se deu com a aproximação de diferentes coletivos artísticos, que estavam a trabalhar aspectos que envolviam o estudo das relações entre a arte e a vida cotidiana, sendo essa uma das principais razões que faz os membros da IS se interessarem pelos ambientes citadinos e o processo pelo qual as cidades eram construídas e utilizadas (Jacques, 2003).
A IS via nas cidades um espaço de ação, através da qual poderia ser feita uma verdadeira “revolução da vida cotidiana” (Jacques, 2003, p. 19), na tentativa de criar assim uma conexão mais direta entre a vida rotineira e a arte, a que chamavam de uma “arte integral”. Nesse processo de discussão da cidade como espaço de ação, os situacionistas perceberam que o monopólio urbanista dos planejadores urbanos, arquitetos e governantes, favorecia o fortalecimento da cidade implantada pelo capital, ou uma “espetacularização da cidade”, que tratava o espaço urbano como uma commodity, uma ferramenta de alienação e controle da população. Assim, os situacionistas propunham que, através da “criação de situações” no ambiente citadino, poderia se desencadear acontecimentos que despertariam diferentes comportamentos afetivos dos cidadãos, incentivando-os a um maior sentimento de apropriação e participação na construção desse espaço, que seria justamente oposta ao “espetáculo”, definido por Guy Debord, um dos mais notórios membros da IS (Medeiros, 2015).
as melhores pesquisas revolucionárias na cultura tentaram romper a identificação psicológica do espectador com o herói, a fim de estimular esse espectador a agir, instigando suas capacidades para mudar a própria vida. A situação é feita de modo a ser vivida por seus construtores. O papel do “público”, se não passivo pelo menos de mero figurante, deve ir diminuindo, enquanto aumenta o número dos que já não serão chamados atores mas, num sentido novo do termo, vivenciadores. (Debord, 1957 em Jacques, 2003, p. 21)
Para atingir seus objetivos de uma revolução da rotina diária urbana, o grupo utilizou e desenvolveu diversas metodologias e conceitos como base de trabalho. O conceito de psicogeografia, definido como um estudo de como o meio geográfico “age sobre o comportamento afetivo dos indivíduos”, era constantemente exercitado através da experiência da deriva, que seria a “técnica da passagem brusca através de ambientes variados […] a duração de um exercício contínuo desta experiência” (Jacques, 2003, p. 22). Através de suas derivas, os situacionistas desenhavam mapas que ilustravam suas percepções subjetivas dos espaços urbanos.
É importante, no entanto, destacar que, segundo a arquiteta Paola Berenstein Jacques (2003), apesar de os situacionistas seguirem uma tradição artística como forma de apreensão da cidade, o grupo não via a experiência da deriva como uma manifestação artística por si só, enfatizando que se trataria mais de uma ferramenta urbanística de percepção para a experimentação prática da psicogeografia. Ela ainda destaca que, no campo artístico, práticas parecidas com a deriva e outras ideias de errância foram exploradas como atos artísticos pelo grupo Fluxus ou pelo artista brasileiro Hélio Oiticica, que chamava suas experimentações erráticas pela cidade do Rio de Janeiro de “delirium ambulatorium”.
Em seu livro Walkscapes: O Caminhar Como Prática Estética, o arquiteto e professor Francesco Careri traça uma linha histórica do uso do caminhar desde as civilizações nômades até o seu uso como prática artística. Além de narrar as experiências do grupo Stalker [18], do qual é cofundador, Careri, assim como Jacques, também fala da deriva Situacionista e do grupo Fluxus e sua organização de visitas a lugares banais do bairro de Soho com as Free Flux-Tours (1976).
Em um contexto de objetificação massivo das cidades através do turismo [19], podemos questionar: “Como mais uma atividade em formato de tour pode vir a contribuir para uma desconstrução e apropriação do espaço público urbano?”
É verdade, como já era defendido pelo movimento IS, que desde a revolução industrial e eventual globalização cultural, as cidades têm passado por um processo de comoditização, sendo, pouco a pouco, extirpadas de suas características intrínsecas. Ao mesmo tempo, a massificação e mercantilização do turismo em determinadas cidades tenta, através de performances sociais [20], “recriar” [21] tais peculiaridades urbanas, potencializando ainda mais o que Guy Debord chamava de “espetacularização das cidades”. Nesse sentido, a maioria das experiências turísticas guiadas acabam por performar uma ode às figuras históricas, ao enfatizar pontos “positivos” da cidade ou, pelo menos, enquadrar a história daquele espaço do ponto de vista dos “vencedores”. Assim, colonizadores, violadores e assassinos se tornam “heróis”, “bravos guerreiros” e “distintos representantes” da história e da cultura de muitas cidades. Essas práticas acabam por reproduzir discursos históricos que muitas vezes são elementos base de discriminações e desigualdades (econômicas, raciais, étnicas, de gênero etc.), e servem, muitas vezes, à manutenção do mercado e do capital.
No entanto, a apropriação e subversão de ferramentas de opressão acaba por ser uma estratégia artística comum e eficaz, que procura se apropriar de canais de difusão/comunicação que a princípio não fazem parte do “mundo da arte”, muitas vezes criticando a própria ferramenta da qual se apropriou durante esse processo [22].
Intervenções feitas durante a walking tour Por um Porto Feminista, parte do projeto “The Misguided Tours”, durante a Porto Design Biennale de 2019 (Porto, Portugal). Fotografia de Porto Design Biennale. Arquivo Coletivo MAAD
O coletivo Fluxus acabou por se apropriar do formato walking tour, de forma cômica e irônica, a criticar essas abordagens turísticas na cidade de Nova York. Em 1970, as Flux Tours convidavam o público a visitar um teatro chinês, prédios abandonados, lugares desolados, shows miseráveis, esquinas, lugares desconhecidos e lugares distantes, além de um passeio a pé de oito horas pela cidade de Nova York, liderado por George Maciunas (Waxman, 2010).
a ideia dos tours do coletivo Fluxus é recorrente e, como a visita proto-surrealista de 1921 ao cemitério de Saint-Julien-le-Pauvre e a agência de viagens falsa do situacionista Jacques Fillou, discorda da abordagem turística típica da cidade, em que apenas monumentos importantes e lugares bonitos são visitados, ignorando vistas mais cotidianas e problemáticas. Se o Flux Tours de 1970 levantou essa crítica no nível de sugestão cômica, o “Free Flux-Tours” de 1976 levou-o ao nível de humor e ação interativa […] (Waxman, 2010, p. 247, trad. livre)
Os Free Flux-Tours foram organizados por George Maciunas e eram separados em quinze eventos, incluindo uma excursão franco-americana de Alison Knowles e Robert Filliou, uma excursão para visitantes estrangeiros por George Brecht, becos, pátios e becos sem saída por Maciunas, uma excursão aleatória de Jonas Mekas, uma excursão subterrânea de Geoffrey Hendricks e uma excursão para avistar as guias (meio-fio) de Soho, por Peter Van Ripper.
Na cidade do Porto, em Portugal, o projeto The Worst Tours [23] faz desde 2012 algo parecido. Formado por três arquitetxs [24], organizados informalmente, o Worst Tours leva os participantes a espaços pouco visitados na cidade do Porto, espaços não turísticos, contando a história de um Porto abandonado, invisível, mas ainda vivo.
Com o Tour Feminista do Porto, tentamos também contar histórias invisíveis, retomar um espaço que sempre foi (e continua sendo) hostil para mulheres e outros corpos que estão fora do padrão “homem/branco/hétero/europeu”. O público que nos visita, tanto estrangeiro quanto local, não só anseia por ouvir essas histórias, mas por descobrir um Porto no qual se sintam segurxs. Nesse tour, por mais que sigamos um roteiro, a experiência sempre é diferente, pois o público nos dá dicas sobre que informações precisam, ou sobre o que sentem mais curiosidades. O público LGBTQIA+, por exemplo, costuma tentar perceber que lugares são mais seguros para frequentar, e onde podem encontrar essa comunidade local, já as mulheres heterossexuais perguntam por bares e discotecas seguras. Com os/as/xs nossxs visitantes, também aprendemos sobre outros lugares, ouvimos sobre histórias ou personagens de suas cidades natais, comparamos e discutimos as diferenças entre lutas feministas ao redor do mundo. Com o público local, aprendemos detalhes e histórias pessoais que se relacionam com os espaços que visitamos. Tudo isso nos permite não só melhorar a nossa prática, como também conhecer ainda mais o espaço que habitamos.
Durante o Tour, incentivamos o público a se apropriar do espaço em que transitam e ocupam. Ao visitar o local do assassinato de Gisberta Salce, por exemplo, pedimos para que deixem uma mensagem no local, em forma de escrita, desenho ou o que lhes pareça mais apropriado. Assim, construímos coletivamente memórias visuais (e uma história) em um espaço esquecido e abandonado.
Interação do público com a cidade, na Avenida de Fernão de Magalhães, durante o primeiro Tour Feminista do Porto. Fotografia de Tiago Barbosa. Arquivo Coletivo MAAD
– PONTO DE CHEGADA –
Ao longo do tour trabalhamos ativamente na desconstrução das dinâmicas patriarcais estruturais. Ao falar sobre as nossas histórias, ouvir o relato dx outrx, questionar os marcos visíveis e invisíveis, intervindo assim no espaço público seja pelo discurso ou pela ação, fazemos desse espaço o nosso espaço. Ao recuperar a memória de Ana, Carolina, Gisberta, Henriqueta, Teresa Maria, Virgínia…, reescrevemos também a nossa presença, retomando um lugar de fala e de ação que historicamente sempre nos foi negado. Isso, sobretudo, porque o formato do tour, atravessado pela performance, pela poética, pela historiografia, mas também pela intervenção, permite que todxs e cada um(x) possa se autonomizar no espaço e nos discursos da cidade; transitando do lugar de espectadorxs ao de atorxs urbanxs ou, como colocado por Guy Debord, vivenciadorxs.
E isso também é uma prática poética, desobediência epistemológica, reescrita histórica – RADICAL. E isso também é descolonizar espaço, mentes e corpos. Sororidade.
E sabendo que esses são alguns pontos de chegada, anima-nos pensar que são novos pontos de partida para a construção de uma cidade de todxs. Tal como as companheiras do outro lado do oceano, acreditamos que “Há mais futuro do que passado”.
Intervenções feitas durante a walking tour Por um Porto Feminista, parte do projeto “The Misguided Tours”, durante a Porto Design Biennale de 2019 (Porto, Portugal). Fotografia de Isabeli Santiago. Arquivo Coletivo MAAD
Registro coletivo do primeiro Tour Feminista do Porto (2019). Fotografia de Tiago Barbosa. Arquivo Coletivo MAAD
NOTAS
[1] Feminista interseccional, decolonial, antirracista, antifascista e anticapitalista.
[2] É importante considerar as desigualdades existentes entre homens e mulheres (baseadas no gênero), mas também aquelas existentes entre pessoas do mesmo sexo estabelecidas de acordo com a classe, raça, etnia, religião e orientação sexual.
[3] Sabemos que apesar de reduzida e marginalizada, a presença da mulher nos espaços públicos dava-se em contexto de trabalho, tal como as mulheres de classes mais baixas que ocupavam cargos precários e, ainda, as trabalhadoras sexuais.
[4] Michelle Perrot (França, 1928) é uma historiadora francesa. Considerada uma das precursoras do estudo da história das mulheres no ocidente, dedicou a sua carreira ao estudo acadêmico e produção historiográfica sob uma perspectiva social e feminista. Dentre a sua produção editorial, destaca-se a colaboração na série enciclopédica História das Mulheres no Ocidente. Em 2014, recebeu o Prêmio Simone de Beauvoir, condecoração internacional associada à liberdade das mulheres.
[5] A assimetria de adjetivos e palavras, justamente porque a presença urbana das mulheres esteve historicamente também ligada à prostituição e ao trabalho precário.
[6] Segundo o sociólogo e historiador estadunidense, Richard Sennett, em Atenas, por exemplo, o espaço da cidade democrática era incentivado aos que possuíam cidadania, o que apenas incluía homens atenienses (filhos de mãe e pai atenienses), acima de dezoito anos, o que constituía uma minoria da população (nunca mais de 15% a 20%, considerando que apenas 5% a 10% tinham riquezas suficientes que os permitia abdicar do trabalho e se encontrarem com a disponibilidade necessária que envolvia os debates na ágora). Estrangeiros, mulheres e escravos eram excluídos da representação democrática efetiva, alguns tendo acesso ao espaço da ágora, mas não às cerimonias, debates e decisões políticas. (Sennett, [1994] 2008, p. 31). Nota retirada de (Medeiros, 2020).
[7] Próprio para o calor do debate político na ágora. O corpo masculino, quente, seria (no pensamento grego) o único capaz de gerar “calor” em um debate, em um momento no qual o discurso é essencial na vida política.
[8] Para além das mulheres cisgênero e escravxs, os gregos também distinguiam como “corpos frios” os homens que eram considerados “afeminados”, denominando-os como corpos masculinos “frágeis” (malthakoi), que “agiam como mulheres e ‘desejavam intensamente ser submetidos por outros homens a um papel <feminino> (isto é, receptivo) na relação sexual’. Segundo a cultura grega, esses homens pertenciam às zonas de calor intermediário, entre os (que eram) muito masculinos e as (que eram) muito femininas (…)” (Sennett, [1994] 2008, p. 47). Nota retirada de (Medeiros, 2020).
[9] Na contemporaneidade, esse argumento surge incorporado na lógica de opressão capitalista.
[10] Não podemos ignorar o recorte de classe; é preciso compreender que as mulheres que tinham acesso a determinadas ferramentas, como a escrita e a pintura, eram provenientes de uma classe social elevada (o que ainda hoje se verifica).
[11] Olympe de Gouges, Madame de Staël, Flora Tristan, Georges Sand, Ana Plácido…
[12] Assim, “a posição da flâneur feminina ou flâneuse continua a ser uma questão controversa, mesmo em tempos contemporâneos, em que as mulheres, em princípio, são percebidas como sendo livres de discriminação” (Elfriede Dreyer & McDowall, 2012, p. 33, trad. livre). Nota retirada de (Medeiros, 2019).
[13] A imagem do flâneur tem, ao longo dos anos, evoluído para a imagem de um personagem que não só se sente atraído pelo urbano e pela vida citadina, mas também passa a ser visto como produto tanto como consumidor desse espaço social, um consumidor crítico e consciente. O ato de flânerie, enfim, se transforma em uma tentativa ideológica de pessoalizar o espaço social urbano e de assegurar que a observação passiva do indivíduo é adequada para o conhecimento da realidade social. (Buck-Morss em Elfriede Dreyer & McDowall, 2012, p. 32). É o ato inevitável de estudo da metrópole e da sociedade que a habita. Talvez se o flâneur também por acaso for um artista ou escritor, ele possa registrar esses pensamentos em imagens ou palavras (Wolff, [2003] 2008, p.18). Nota retirada de (Medeiros, 2019).
[14] Feminismo ocidental europeu.
[15] É importante ter consciência de que esses direitos não são alargados a TODAS as pessoas que se identificam como mulheres, e que determinados direitos são criminalizados em alguns países (aborto, por exemplo).
[16] Trecho do livro retirado de: <https://www.bertrand.pt/livro/toponimia-feminina-portuense-cesar-santos-silva/13044435>. Consultado no dia 7 de junho de 2020.
[17] Coletiva, performativa e plástica.
[18] Ver em: <http://www.osservatorionomade.net/tarkowsky/tarko.html>. Consultado no dia 13 de março de 2015.
[19] A discussão da massificação turística em Portugal tem sido um assunto em voga, assim como suas consequências econômicas e sociais, como a gentrificação dos grandes centros urbanos.
[20] Para saber mais sobre performances sociais no turismo, consulte: EDENSOR, Tim. “Performing Tourism, Staging Tourism: (Re)producing Tourist Space and Practice”. Tourist Studies Sage Journals, vol. 1(1), p. 59-81.
[21] Podemos ver isso em cidades que quase “teatralizam” os centros urbanos, com restaurantes, hotéis e até feiras públicas “temáticas”.
[22] Artistas como Aram Bartholl (https://arambartholl.com/archive/) ou Pilvi Takala (https://frieze.com/article/focus-pilvi-takala) são dois exemplos dessa prática.
[23] Ver em: <https://theworsttours.weebly.com/>.
[24] Gui Castro Felga, Pedro Figueiredo e Isabel Pimenta.
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ZARVOS, Clarice; SMALL, Daniele Avila; BARCELOS, Mariana. Há Mais Futuro Que Passado – Um Documentário de Ficção. Belo Horizonte: Editora Javali, 2018.
SOBRE AS AUTORAS
COLETIVO MAAD – Mulheres, Arte, Arquitetura e Design
Somos um coletivo de mulheres imigrantes, artistas, arquitetas e designers apaixonadas por cidades e suas histórias. Juntas criamos o Coletivo MAAD – uma plataforma que articula as nossas práticas individuais (investigação e produção artística) projetando-as no espaço público através de ações e propostas coletivas.
A nossa abordagem, sustentada em um enquadramento crítico-feminista (de vertente feminista interseccional, decolonial, antirracista, antifascista e anticapitalista), tem como foco o combate às dinâmicas patriarcais de opressão presentes na cultura urbana que se manifestam no espaço público de formas distintas, seja através de marcos visíveis, monumentos, estatuária, à sinalética toponímica, elementos de comunicação/merchandising, à própria arquitetura e o desenho urbano, e, ainda, pelo comportamento e interação das pessoas nesses mesmos espaços.
Sabendo que as dinâmicas de violência podem também traduzir-se em silêncio e invisibilidade, cada um dos nossos projetos nasce de uma proposta de contra-narrativa, revertendo o apagamento histórico através do resgate de figuras invisibilizadas, cujo legado e contributo têm sido constantemente negligenciados nas narrativas oficiais das Histórias da Cultura e das Artes. Considerando ainda que o “pessoal é político”, nos esforçamos para que as vivências e os testemunhos individuais sirvam para informar as nossas práticas de forma coletiva e interseccional.
O Coletivo MAAD foi fundado por Alícia Medeiros e Isabeli Santiago em 2016, na cidade do Porto, em Portugal. Desde então tem participado em diferentes propostas culturais na cidade do Porto, de forma autônoma ou em formato colaborativo com artistas individuais e/ou coletivos independentes.
SOBRE ALÍCIA & ISABELI
Alícia Medeiros, brasileira, vive e trabalha na cidade do Porto, em Portugal. É licenciada em Arquitetura e Urbanismo pela Universidade Estadual Paulista em Bauru-SP (Brasil) e é mestra em Arte e Design Para o Espaço Público pela Faculdade de Belas Artes da Universidade do Porto (Portugal). Trabalha ao nível das mídias móveis e do caminhar como prática artística/performance desde 2010, intensificando o trabalho nessa área desde 2013. Atualmente cursa o doutoramento em Artes Plásticas na Faculdade de Belas Artes da Universidade do Porto (Portugal), onde investiga sobre como o caminhar no espaço público citadino se configura como prática artística sob o recorte de gênero e como essa prática pode se transformar com o uso das mídias móveis.
Isabeli Santiago, brasileira, vive e trabalha em Portugal desde 2008. É licenciada em História da Arte pela Faculdade de Letras (2016) e mestra em Estudos Artísticos pela Faculdade de Belas Artes (2018), ambos cursos pela Universidade do Porto em Portugal. Dedica-se à curadoria, produção e investigação independente nos campos da Historiografia da Arte, Arquitetura e Urbanismo, Literatura Feminista e Estudos Decoloniais.
PARA CITAR ESTA PUBLICAÇÃO
MEDEIROS, Alícia; SANTIAGO, Isabeli. “O Tour Feminista da Cidade do Porto Como Uma Prática Poética de Resistência Urbana e Historiografia Radical”. eRevista Performatus, Inhumas, ano 8, n. 21, jul. 2020. ISSN: 2316-8102.
Revisão ortográfica de Marcio Honorio de Godoy
Edição de Mãe Paulo
© 2020 eRevista Performatus e as autoras
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