Teatro, Estudos Performáticos e Fotografia: Uma História de Contaminação Permanente

 

Tradicionalmente, o teatro e a fotografia são considerados dois polos opostos de um amplo espectro: o teatro sendo a derradeira encarnação da presença radicada no tempo e a fotografia representando exatamente o oposto. É suposto o teatro e a performance serem o último porto seguro da ausência de fundamento no tempo, da ação em tempo real e da representação direta. Uma das articulações mais explícitas deste ponto de vista é a noção de Peggy Phelan de “a ontologia da performance”, tal como se pode encontrar no seu influente livro Unmarked: the Politics of Performance [Sem marcação: a política da performance]. Para Phelan, a performance escapa necessariamente à repetição ou à reprodução: “a performance acontece ao longo de um tempo que não se repetirá. Poderá haver nova performance, mas esta repetição marca-a como ‘diferente’” (Phelan 1993, 146). A performance estaria, então, exclusivamente dedicada ao agora, desaparece no momento em que é executada e a sua existência apenas se prolonga na memória do espectador, sendo a respectiva integridade ontológica aquilo que lhe constitui exatamente a essência. Consequentemente, a performance deveria ser considerada como um dos últimos loci ainda não encapsulados pelo poder reprodutivo do capitalismo. Contudo, como Philip Auslander amplamente defendeu em diversos textos seminais (Auslander 1996; Auslander 2008), esta dicotomia radical entre a ontologia da performance, por um lado, e todas as formas possíveis de reprodução, por outro lado, tornou-se progressivamente mais problemática, à medida que a mediação se tornou cada vez mais numa parte integrante da própria performance:

 

Não podemos realisticamente sugerir que a performance ao vivo pode continuar ontologicamente prístina ou que opera numa memória cultural separada da memória dos meios de comunicação das massas. A performance ao vivo incorpora atualmente uma tal mediatização que o próprio evento ao vivo é um produto das tecnologias de reprodutivas (Auslander 1996, 197).

 

Auslander mostra convincentemente como a mediação está cada vez mais arreigada na execução ao vivo, no modo como o “imediato” implica necessariamente a mediação. Assim, desafia-se intencionalmente a oposição binária tradicionalmente presente na maior parte dos estudos teóricos sobre a performance e as artes performáticas que privilegiam o imediato direto sobre o mediado. Em vez de celebrar a integridade ontológica da performance, Auslander defende que “a execução ao vivo e o mediatizado existem numa relação de imbricação e dependência mútua e não de oposição” (Auslander 1996, 198). Mais especificamente, mostra como o aparelho da representação e da reprodução tecnológica está insculpido na própria performance ao vivo, não como um mero ornamento, mas como a sua verdadeira essência, aludindo, por exemplo, ao uso do microfone na performance da música popular e ao seu peculiar estatuto num contexto ao vivo: “a própria presença do microfone e a manipulação que o executante faz dele são indicadores paradoxais do estatuto da performance como direta, ao vivo e imediata” (Auslander 1996, 199).

 

Ao analisar o possível ponto de interferência entre o teatro e a arte performática, por um lado, e a fotografia, por outro (seja fotografia analógica ou digital), rapidamente chegamos exatamente aos mesmos pontos de discussão. Quão diferentes são, onde se cruzam ou contaminam mutuamente, como (re)pensar a performance num ambiente fundamentalmente mediatizado do qual a imagem fotográfica é parte integrante? Todavia, não devemos limitar estas questões exclusivamente às formas contemporâneas da teatralidade. Como veremos, a imagem fotográfica desempenhou um importante papel no curso da história do teatro, redefinindo a verdadeira essência da própria representação teatral. Christian Biet e Christophe Triau defenderam, convincentemente, que também os historiadores do teatro deveriam adotar a estrutura teórica e conceitual fornecida pelos acadêmicos dos estudos sobre a performance, como Richard Schechner (Biet 2005, 66-71). Este emaranhamento entre performance e fotografia pode assumir diferentes formas (a lista de exemplos é tudo menos exaustiva): a imagem fotográfica é uma fonte privilegiada para qualquer historiador do teatro que se debruce sobre a história do teatro (de finais) do séc. XIX e XX (a fotografia de teatro desenvolveu-se gradualmente para uma área da prática artística quase autônoma), a própria fotografia pode influenciar (ou contaminar) a prática teatral, pode servir como matéria dramatúrgica em bruto ou pode ser absolutamente performática por direito próprio. No topo destes pontos possíveis de convergência, as artes performáticas e a fotografia partilham um aparato conceitual, no qual conceitos como teatralidade, performatividade, representação e visualidade funcionam como importantes pontos de referência. É precisamente esta história partilhada de contaminação e influência mútua que constituem o fio condutor do presente artigo. Em vez de apresentar uma visão exaustiva sobre esta história comum (isso seria um estudo em si só, ou até vários estudos, e justificados) ou um microestudo pormenorizado de um caso concreto, este artigo gostaria de oferecer uma espécie de status questionis, assumindo uma abrangente perspectiva geral (necessariamente fragmentária), na esperança que se desenvolvam novas linhas de pesquisa no futuro. Na primeira parte do artigo, dedicamos atenção ao material conceitual partilhado entre fotografia e teatro, ao passo que, na segunda parte, nos centramos no papel da fotografia enquanto fonte para a história do teatro. A parte seguinte aborda o mesmo tema por diversas linhas e descreve, a partir de um exemplo específico, como a performance está imbricada na fotografia de uma forma quase literal. Por fim, prestamos atenção aos desafios provocados por esta história partilhada, tanto a nível teórico como a um nível mais prático, a hibridização da prática performática atual enquanto perspectiva fulcral neste contexto.

 

Especificidade de meio versus contaminação medial

 

Em traços muito gerais, poderíamos analisar as práticas culturais em termos do grau da respectiva especificidade de meio. Numa das extremidades do espectro, teríamos todas as práticas que incarnam as características essenciais do meio que utilizam, enquanto, na outra extremidade do espectro, as práticas culturais híbridas conjugam alegremente diferentes características mediais, e a intermedialidade como aquilo que lhes constitui a própria essência. No quadro desta primeira lógica, a apresentação ao vivo seria a essência da performance, na medida em que essa animação faz com que a performance escape às garras da reprodução mecânica ou digital. Obviamente, este desejo de salvaguardar um meio de outras influências mediais e, assim, da “contaminação”, já não é novo. No texto, extremamente influente, Art and Objecthood (Fried 1967), Michael Fried atacou a obra de artistas (incluindo Robert Morris, Donald Judd e Carl André) que trabalhavam naquilo que é comumente conhecido como “arte minimalista”. Fried acusou, com veemência, esses artistas de traírem a arte visual por recorrerem demasiado e demasiadas vezes às chamadas técnicas teatrais. Segundo Fried, a arte minimalista traiu a arte visual e a sua potencialidade de gerar significado(s) ao recorrer apenas a meios puramente visuais. Transgrediu as convenções da especificidade de meio, partindo da assunção basilar de que a prática artística contemporânea estava organizada ao longo das linhas de uma dicotomia clara entre as artes espaciais (escultura, pintura, fotografia), por um lado, e as artes temporais (literatura, teatro, música), pelo outro. Ao passo que o primeiro tipo correspondia a uma experiência pura, não física, transcendendo o contexto específico da apresentação da obra (e estando o respectivo significado incluído na própria obra), o segundo tipo depende fundamentalmente do contexto e do tempo em que é mostrada, sendo a respectiva experiência extremamente específica e pessoal e o significado fundamentalmente dependente da interação entre a obra, o contexto e o espectador. Por outras palavras: Fried usou a noção de especificidade de meio como medida para o que se poderia apelidar de “pureza medial”, avaliando os aspectos teatrais da arte minimalista como expressamente negativos. Pese, embora não possamos subestimar a importância do ensaio de Fried, cuja repercussão para os fotógrafos contemporâneos é pormenorizadamente discutida por Hilde Van Gelder e Helen Westgeest no seu contributo para este assunto, Art and objecthood parece (voluntariamente?) negar o fato de que cada decifração de uma obra de arte, seja uma pintura ou uma representação de uma peça, é sempre uma experiência espacial e temporal imediatamente influenciada pelas circunstâncias físicas. Uma obra de arte funciona sempre num contexto específico de recepção do qual não nos podemos abstrair. As circunstâncias da decifração contaminam sempre a interpretação efetiva (e o mesmo se aplica, evidentemente, ao processo de codificação).

 

Segundo a lógica de Fried, o teatro, mais do que qualquer outra forma artística, seria uma forma bastarda da arte, por excelência, na medida em que é, voluntária e permanentemente, contaminada pelas circunstâncias sociais e técnicas que estão estritamente fora do domínio do próprio meio. Em vez de funcionarem nos termos da especificidade de meio, tanto o teatro como a fotografia funcionam por via de uma interferência permanente, já que ambos fazem uso de uma gramática visual comum, na qual a teatralidade e a performatividade são palavras-chave. Não só o impacto de uma máquina fotográfica é fundamentalmente teatral, logo a partir do momento em que seleciona um fragmento da realidade, como toda a sociedade e respectiva organização cotidiana também seguem linhas teatrais. Como Erving Goffman defendeu amplamente em The presentation of self in everyday life, onde analisa a interação social de uma perspectiva dramatúrgica, as nossas vidas cotidianas tornaram-se teatralizadas. O medo do palco deixa de ser, portanto, um privilégio dos atores profissionais. Todos vivemos as nossas vidas na plena consciência de que não somos um sujeito a olhar para um objeto, mas que somos também um objeto que é observado (celulares, reality tv, televisão regional, câmaras de vigilância, etc.) (Carels 2008). No que concerne à fotografia, esta perdeu o seu fascínio positivista fundamental (a imagem fotográfica enquanto acesso direto à realidade), à medida que foi substituído por uma sensação de suspeição medial permanente. Contudo, a partir do momento em que se reconhecem as interferências e afinidades fundamentais entre teatro e fotografia, surgem diversas novas possibilidades teóricas, historiográficas e artísticas. Em primeiro lugar, esta perspectiva mudou fundamentalmente o papel da fotografia enquanto fonte para a história do teatro.

 

A fotografia como fonte para a história do teatro

 

Embora a fotografia não seja a única fonte para os historiadores do teatro, é uma fonte importante por ser um objeto no qual se questiona a relação complexa entre a realidade e a ilusão, entre ser e representar. Numa história do teatro que visa ser mais do que uma cronologia de eventos isolados, mas que aborda o teatro como uma prática fundamentalmente social num contexto específico e que presta atenção ao ambiente discursivo do evento teatral, o fotógrafo é mais do que um mero resíduo de um evento do passado: permite que o historiador analise a relação entre o espectador e o evento, entre o sujeito e o objeto.

 

Um historiador do teatro, quando se debruça sobre a segunda metade do séc. XIX, dispõe de duas importantes fontes: os chamados tableaux vivants, nos quais os atores tentavam apreender a pressuposta essência de uma peça numa imagem fotográfica, e os retratos de atores. Embora estes retratos não forneçam ao historiador um acesso direto ao próprio evento teatral, enquanto tal, eles propiciam informação relevante sobre a natureza do evento social a que se chama teatro. Funcionam, mais especificamente, como um indicador da transformação no papel social do ator e no imaginário popular em torno dessa profissão. Além disso, estas mesmas fotografias desempenharam um papel importante na história do teatro, na medida em que foram largamente responsáveis pelo desenvolvimento do star system do teatro de finais do séc. XIX: através da representação fotográfica, o ator tornou-se posse pública, tornou-se numa estrela, a separação rigorosa entre a presença física do ator e a personagem que representa tornou-se extremamente porosa:

 

O ator intervém […] entre a autenticidade da sua vida, do seu eu e do seu passado como o próprio o conhece (e como é conhecido ou assumido, pelo menos em parte, pelo público) e a vida autenticada da personagem que está a representar (Burns 1972: 146-147).

 

A atriz francesa Elisabeth Rachel foi uma das primeiras a usar conscientemente o meio fotográfico. Em 1858, o seu admirador Jules Janin publicou Rachel et la tragédie, com fotografias de Henri de la Blanchère (Janin 1858), sendo este livro a primeira biografia ilustrada na história do teatro francês, um gênero que muito em breve se tornaria muito popular. Igualmente muito popular era o chamado portrait mosaic com fotografias de divas famosas da ópera durante as atuações, mas também nas respectivas vidas privadas, fotografadas como cidadãs da moda, exibindo os seus novos trajes informais. Em finais do séc. XIX, o star system francês tinha já assumido proporções quase astronômicas, constituindo a representação fotográfica a sua principal força motriz: a fotografia transformou as estrelas de então em monstros sagrados (monstres sacrés). Sarah Bernardt foi exímia em usar os meios de massas do seu tempo, tornando a fotografia num dos mais importantes instrumentos para expor a vida pública. Usou a fotografia para elevar a sua vida ao plano do divino, transformou a sua vida em arte, através da fotografia, e possibilitou, ao espectador do seu tempo, um rápido vislumbre da sua vida aparentemente supramundana.

 

Porém, por volta de 1870-1880, a indústria retratista passou por uma crise severa, sobretudo devido ao surgimento bombástico dos cartes de visite mais baratos em 1860. No entanto, outras funções da fotografia, que estiveram presentes desde os primórdios, tornaram-se mais relevantes, como o uso científico de imagens mecânicas na medicina. De uma perspectiva histórica mais abrangente, este desvio no foco de atenção gerou uma nova interferência interessante entre a fotografia, a ciência e o teatro. Os médicos, por exemplo, estudaram as primeiras imagens fotográficas médicas. Mas especialmente os psiquiatras estavam muito ansiosos por utilizar retratos dos seus pacientes como forma de criar um discurso científico convincente. A fotografia serviu, assim, para legitimar uma prática científica emergente, relacionando as pressuposições teóricas com evidências visuais. Porém, a análise, por exemplo, das fotografias do Hospital Salpêtrière na França (Didi-Huberman 1982) ou dos álbuns Weilmunster (Brand-Claussen 2002), revelou que a perspectiva sobre as síndromes psiquiátricas era fortemente teatral: em vez de um registro da loucura, as fotografias deviam ser consideradas uma teatralização da ideia da loucura. A imagem apresentada tinha de corresponder às expectativas de um público que não só ansiava por uma visão autêntica e direta sobre as doenças mentais como tinha também uma determinada ideia do modo como a loucura deveria parecer. Por isso, médicos e fotógrafos faziam tudo para corresponder a essas expectativas, por vezes, encenando literalmente a loucura e pedindo ao paciente que assumisse determinadas poses.

 

As fontes visuais, como estas, não são meros indicadores da busca laboriosa da legitimação de uma nova prática científica, mas mostram também como a fotografia influenciou o imaginário popular contemporâneo (e vice-versa) e a respectiva representação em palco. Coleções como a do Salpêtrière, por exemplo, tiveram uma influência clara sobre a forma como se deu uma forma discursiva e visual concreta às noções de histeria ou de neurose. Por outras palavras, a fotografia deu um importante contributo para a vulgarização da semiótica da psiquiatria, proporcionando ao público (e ao ator, ao escritor, ao realizador) um conjunto de signos nos quais se poderiam apoiar para dar forma a fenômenos psiquiátricos sobre o palco, ou seja, reencenando as doenças do foro psiquiátrico. Assim, escreveram-se novos textos, instigados pela crescente popularidade do conhecimento psiquiátrico e da respectiva representação visual. Em 1890, por exemplo, Ibsen publicou Hedda Gabler, o primeiro retrato elaborado de uma mulher histérica. Alguns optaram por escrever novos textos, outros, todavia, reinterpretaram textos de repertório existentes à luz do novo conhecimento científico e sua representação fotográfica popular.

 

Na biblioteca da Comédie-Française em Paris, pode encontrar-se uma cópia do Britannicus de Jean Racine que pertenceu à coleção de livros do famoso ator francês Mounet-Sully (Racine, 1862; para uma abordagem detalhada deste caso verificar em Vanhaesebrouck, 2007, 205-231). Entre 1872 e 1893, incarnou o papel do imperador Nero mais de setenta vezes. Com Mounet-Sully, a interpretação psicossexual, explicitamente patológica, dessa personagem assumiu um começo titubeante mas definitivo. Esta escolha interpretativa pode remeter não só para diversas fontes metalinguísticas indiretas, como comentários da imprensa, como deriva de uma outra importante fonte diretamente relacionada com a própria performance pretendida: as anotações a lápis de Mounet-Sully no seu exemplar de Britannicus. Estas anotações (umas vezes frases, outras, simples palavras) dão-nos uma imagem precisa da forma que Mounet-Sully deu à personagem Nero, ainda que seja uma representação imaginada, idealizada que não corresponda necessariamente à representação efetiva. Em várias ocasiões, Mounet-Sully acrescentou anotações como crise de joie diabolique [crise de alegria diabólica] e épileptique [epilética]: o ator francês visava, assim, uma demonstração teatral de todo o registo psicopatológico de Nero. A ambição de representar esses excessos em palco andava a par com importantes desenvolvimentos na história da psiquiatria e, além disso, apenas pode ser avaliada em estreita relação com a iconografia psiquiátrica com a qual os psiquiatras desejavam fixar síndromes em imagens fotográficas supostamente objetivas. Não se sabe se Mounet-Sully efetivamente terá visitado instituições psiquiátricas ao preparar-se para este papel. Desconhece-se igualmente se estaria familiarizado com a Iconography de la Salpêtrière. Contudo, é uma hipótese razoável que os desenvolvimentos na psiquiatria, que se sucediam rapidamente nessa altura, tenham influenciado o desempenho de Mounet-Sully neste papel. Confirma-o, aliás, o simples fato de usar, nas anotações, palavras provenientes de um conhecimento psiquiátrico vulgarizado. De uma forma quase paradoxal, ele tentou associar uma forma específica de realismo psicológico à estética espetacular (sua) contemporânea. Através das fontes fotográficas (que, por sua vez, tinham de legitimar novas formas em ascensão gradual da medicina), o teatro adquiria uma aura de exatidão realista. Afinal, os atores imitavam comportamentos, que tinham observado em diversas fontes visuais. Os meios apoiam-se mutuamente, trocam entre si contributos para um estatuto de legitimidade.

 

Tal como quaisquer outras fontes iconográficas utilizadas e analisadas por um historiador do teatro, um fotógrafo nunca fornece acesso direto ao passado teatral: não se pode considerar a fotografia de teatro (sejam representações fotografadas diretamente no evento teatral ou representações indiretas, como retratos, por exemplo) como um resíduo direto de um evento que desapareceu no momento em que foi encenado e representado. Mais especificamente, um fotógrafo revela mais a perspectiva do fotógrafo e do ambiente em que trabalha do que do próprio evento. Um documento fotográfico da história do teatro é, em primeiro lugar, uma fonte discursiva, uma fonte que permite a reconstrução do discurso sobre a arte, o teatro, a fotografia, etc. num determinado momento e num contexto específico. Uma fotografia revela o local do meio teatral dentro do sistema social mais amplo, aponta para a organização institucional do teatro durante uma determinada época (por exemplo, qual era a posição do ator, do encenador?) e mostra o modo como uma certa instituição (ator, companhia ou encenador) pretende que a sua obra seja entendida. Outra estética teatral gera outras fotografias de teatro.

 

Voltemos a Britannicus, a primeira peça romana do autor classicista francês Jean Racine, e mais especificamente à versão apresentada em 1968, no meio da agitação parisiense, no Théâtre de l’Epée de Bois, encenada pelo então jovem Michel Hermon. Este Britannicus foi um gesto iconoclasta explícito, com o qual Hermon pretendia acertar contas com a respeitosa atitude para com o panteão francês clássico, transformando a peça num ritual negro, físico, artaudiano inspirado quer pelas ideias de Grotowski sobre a presença física do ator (a ideia de um evento teatral como uma “comunhão ao vivo”) quer pelo universo erótico, decadente e quase sádico do Império Romano de Nero. O resultado foi um Racine extremamente ritualizado e sexual, no qual Hermon tentou enxertar a linguagem teatral, explicitamente física de companhias como o The Living Theatre no corpus classicista francês. Assim, Hermon distanciou-se explicitamente da forma tradicional francesa de “fazer Racine”, almejando o desenvolvimento de uma nova gramática teatral para a representação de textos canônicos. E, à medida que a gramática muda, as imagens fotográficas que a acompanham assumem formas distintivamente diferentes. Tradicionalmente, as fotografias da representação teatral de Racine insistiam sobre a grandiosidade, a solenidade do evento e sobre as qualidades retóricas do ator. Sem apontar para a própria estória (é suposto o público conhecê-la), a maior parte das fotografias centra-se num ator específico, numa pose significativamente majestosa enquanto profere uma das famosas frases de Racine. O objetivo não é a sugestão de ser ao vivo, mas a afirmação das expectativas do público sobre como deve parecer uma representação de Racine.

 

Todavia, as fotografias que acompanham o Britannicus de Hermon revestem-se de uma natureza completamente diferente. Mais do que atores semelhantes a estátuas, vemos corpos nus entrelaçados em movimentos selváticos no chão, sugerindo uma fisicalidade puramente ritual. Mais do que confirmar opiniões preconcebidas de como deveria parecer uma representação de Racine, estas ilustrações tentam cativar a animação do próprio momento, da performance efetiva em vez da performance pretendida. Estas fotografias não só remetem para um momento histórico específico, ou seja, o evento teatral do Britannicus encenado por Michel Hermon, mas revelam uma mudança fulcral no discurso em torno da representação do classicismo francês em palco, mostram uma mudança na conotação. Para um historiador do teatro, a fotografia é tanto uma fonte não completamente fidedigna como um elemento indispensável na reconstrução do ambiente discursivo de um dado evento teatral. Para além disso, a fotografia é um fator importante no próprio processo de comunicação, já que pode influenciar ou transformar o horizonte de expectativas de um público. Por outras palavras: a fotografia de teatro é parte integrante do processo de comunicação que é a performance, pois influencia tanto a codificação como a descodificação (decifração) desse mesmo processo.

 

Fotografia como performance

 

Evidentemente, o teatro e a fotografia não se encontram apenas na fotografia de teatro. Alguns fotógrafos, cujo trabalho não visa capturar a suposta essência de um determinado evento ao vivo, fazem aquilo a que talvez gostássemos de chamar “performances fotográficas”. Na definição mais simples, a performance pode ser descrita como o fazer algo na presença de alguém: “a performance é sempre para alguém, mesmo que os papéis se alterem e o observador se torne executante e vice-versa” (McAuley). Impõe-se imediatamente a questão de saber se este “outro” tem de estar presente nessa qualidade. O executante e o observador devem estar presentes em simultâneo? Para se falar de performance, a codificação e a descodificação têm de coincidir? Ou, por outras palavras: a performance tem necessariamente de ser ao vivo? Em muitos casos, uma performance (mesmo sendo uma performance no sentido estrito da palavra, nomeadamente da arte performática) é mediada por filme ou fotografia. I like America and America likes me, a famosa performance de Joseph Beuys (1974), não só consistiu na performance efetiva na galeria nova-iorquina René Block (durante a qual Beuys passou alguns dias numa gaiola, acompanhado por um coiote), como incluiu os preparativos, a viagem para Nova Iorque e o regresso, um transporte de ambulância do aeroporto para a galeria, etc. Na maior parte de todas estas atividades, os espectadores não tinham consciência de estar a assistir a uma performance. Além disso, a maioria da arte performática é produzida com a possibilidade da reprodução mecânica arreigada no evento ao vivo desde a sua gênese. Mais do que a ideia da representação ao vivo, deveria considerar-se uma certa metaconsciência como cerne da performance: as performances culturais, desde o carnaval a competições esportivas internacionais, são todas “ocasiões onde a cultura se enuncia” (Diamond 1996: 6). Como tal, a fotografia é verdadeiramente um meio performático. Segundo as famosas frases de Judith Butler, a performatividade implica que “o gênero, a sexualidade, a raça e a etnia são entendidos como construções sociais, exibidas transgressoramente ou impostas normativamente” (Butler 1993, citação em McAuley). A fotografia contribui para estas construções, na medida em que as pressupõe implicitamente e, assim, influencia o horizonte de expectativas do público, ou explicitamente, por exibição ou transgressão, como sucede por exemplo na obra de Cindy Sherman. Deste modo, a performance torna-se numa ação consciente (e, nessa perspectiva, diverge do “fazer” ou da própria ação) (Schechner 2006, 28). Como tal, a fotografia podia e devia ser considerada uma prática verdadeiramente performática, se explicita o estatuto contingente da realidade representada, se mostra ou expõe esse estatuto.

 

Além disso, a fotografia pode ter laços ainda mais estreitos com a performance. As fotografias do fotógrafo de performances Manuel Vason (1974-), por exemplo, apresentam performances no sentido estrito do termo, a sua única razão de ser é o fato de serem fotografadas: “Os projetos aqui apresentados diferem, em princípio, da documentação convencional da performance na medida em que Vason, de máquina em punho, é sempre o único espectador do singular evento ao vivo, que acontece num espaço extra-teatro à escolha do artista” (Johnson 2007, 10). Ou, por outras palavras: as performances encenadas por Vason e seus colaboradores não têm um objetivo próprio, apenas existem através da sua mediação e reprodução. Na lógica de Peggy Phelan, esta seria uma anomalia irreconciliável com a própria essência da performance: “A única vida da performance é no presente. […] O documento da performance […] não passa de um vestígio para a memória, um incentivo para a memória se tornar presente” (Phelan 1993, 146). Para Phelan, cuja “ontologia da performance” poderia, de fato, ser considerada uma renovação do manifesto de Fried pela pureza de meios, a performance é subversiva, existe apenas porque não consegue tornar-se num objeto museológico e, por isso, se torna parte de um processo econômico de comoditização. Mas, em vez de pensar a performance em termos ontológicos, que está nesse caso permanentemente sujeita ao preconceito da reprodução, a performance deve ser considerada uma estratégia cultural, que visa elevar a realidade das charneiras, por vezes de forma muito explícita (como nas colaborações de Vason com Gomez-Peña), ou de forma mais poética mas extremamente enigmática (como nas suas colaborações com Alaister MacLennon), como se pode observar no portfólio disponível no website do artista (www.manuelvason.com).

 

Alastair MacLennan e Manuel Vason, Collaboration #1, Belfast, 2006

 

Por mais variada que possa ser a obra de Vason, todas as fotografias visam uma transgressão sutil ou violenta das expectativas do espectador. A sua obra é expressamente performática: cada encontro com um espetador gera uma reativação como se fosse a performance original. Cada fotografia é uma re-performance: “Pode argumentar-se que as peças de Vason são tanto fotografia como performance, pedindo-nos que consideremos uma fotografia não apenas como o registro de uma performance, mas como a própria performance” (Schneider 2007, 35). Vason questiona, deste modo, os limites da animação, a sua obra transcende vastamente o exclusivamente documental: é a fotografia enquanto prática performática autônoma.

 

A caminho de uma prática pós-medial?

 

Os estudos sobre a performance requerem uma perspectiva abrangente que transcende a prática teatral ou as artes performáticas. Mais do que uma forma de arte específica, a performance deve ser considerada uma estratégia cultural que está sempre firmada num ambiente discursivo específico. A dicotomia tradicional entre o que é ao vivo e o que é reproduzido, conforme defendido quer por Michael Fried quer por Peggy Phelan (embora de perspectivas opostas), e, mais especificamente, entre teatro/performance e fotografia foi progressivamente questionada, tanto na teoria como na prática. A fotografia não só está imbuída de elementos performáticos, como o próprio teatro parece colocar em questão o seu modo de olhar, os códigos mediais, tentando recalibrar a relação entre obra de arte e espectador, tanto ao nível da codificação como da descodificação. No início do séc. XXI, as artes performáticas parecem questionar a própria essência pressuposta, o serem ao vivo. Não só o teatro se tornou progressivamente visual (as peças do encenador italiano Romeo Castellucci, por exemplo, consistem sobretudo numa sucessão justaposta de imagens enigmáticas aparentemente sem relação), a fotografia assumiu um lugar cada vez mais proeminente no palco do teatro, proporcionando ao espectador metacomentários sobre a tensão entre realidade e ilusão, ou permitindo ao encenador fazer experiências com os diferentes impactos de diversas linguagens visuais (por exemplo, o recurso a close-ups manipulados ao vivo). Muito embora esta fusão entre o performático e o visual não seja nova (o teatro do séc. XVIII, por exemplo, assentava fortemente no uso dos tableaux, intermezzi visuais nos quais as imagens eram literalmente encenadas) (Frantz 1998), nesta era pós-medial já não é possível trabalhar uma dicotomia evidente entre atuação ao vivo e reprodução. “A mediação está arreigada na atuação ao vivo” (Auslander 1996, 199), tal como o performático faz parte integrante da fotografia.

 

Bibliografia

Auslander, Philip. 1996. Liveness. Performance and the anxiety of simulation. In Performance and Cultural Politicsm, editado por Elin Diamond. Londres: Routledge.

Auslander, Philip. 2008. Liveness. Performance in a mediatized culture. 2.ª edição. Londres: Routledge.

Biet, Christian, Christophe Triau 2005. Qu’est-ce que le théâtre? Paris: Gallimard.

Brand-Claussen, Bettina, Thomas Röske. 2002. Anonyme Fotografien aus der Anstalt Weilmünster 1905-1914. Heidelberga: Psychiatrische Universitätsklinik Heidelberg.

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Goffman, Erving. 1952. The presentation of self in everyday life. Nova Iorque: Anchor Books.

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Racine, Jean. 1862. Oeuvres completes, vol. I. Paris: Editions de ch. Lahure.

Schechner, Richard. 2006. Performance Studies. an introduction. 2.ª edição. Londres: Routledge.

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Vanhaesebrouck, Karel. 2007. Le mythe de l’authenticité. Lectures, dramaturgies, représentations de Britannicus de Jean Racine en France (1996-2004). Dissertação de doutoramento, Universidade de Paris X – Nanterre.

 

Karel Vanhaesebrouck concluiu um doutoramento em Teatro e Literatura nas universidades de Paris X – Nanterre (França) e Lovaina (Bélgica) com uma tese sobre a história da representação da tragédia Britannicus, de Jean Racine, na França. É professor universitário de história cultural e teoria cultural na Faculdade de Letras e Ciências Sociais da Universidade de Maastricht (Países Baixos). Também leciona e investiga, no âmbito de pós-doutoramento, na escola de cinema e teatro Rits, em Bruxelas (Bélgica), onde trabalha sobre os regimes visuais barroco e neobarroco.

 

[tradução do inglês por Susana Canhoto]

 

 

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