Em 1999, em consequência do grande sucesso de sua videoinstalação, Shirin Neshat conquistou a celebridade imediata como grande artista contemporânea. Esse lugar foi reforçado por Fervor, um dos pontos altos da bienal de Whitney em 2000. Esses dois trabalhos, junto com o ligeiramente anterior Turbulent, compõem uma trilogia sobre identidade humana, moldada por diferenças de gênero e cultura, o que situa o trabalho no centro das preocupações atuais do mundo da arte. Um quarto filme, Soliloquy, retrata uma mulher dividida entre duas formas de vida, moderna e tradicional, ocidental e do oriente médio, nenhumas das quais ela consegue compreender por completo. Todos os quatro filmes encenam esses conflitos e tensões nos termos simbólicos de uma arte muito elevada e de uma maneira que, além da contemporaneidade das questões, toca em nossa humanidade essencial.
A urgência com a qual essas questões são apresentadas em seus filmes implica que elas são sentidas com uma urgência proporcional pela própria artista, de modo que seu sucesso é uma oportunidade de perseguir uma missão que envolva sua arte juntamente com sua vida, o que implica decisões reais sobre onde e como viver e trabalhar. Há um par de monitores na mesa, abaixo de algumas estantes. É uma atmosfera muito tranquila, embora a secretária eletrônica estivesse ocupada durante toda a nossa conversa. A artista estava vestida com roupas pretas, uma afinidade com o vestuário que as mulheres usam em seus filmes, e ela falava fluidamente, com um sotaque suave. Shirin Neshat é uma pessoa modesta, totalmente sem presunção, mas compartilha uma determinação feroz com as mulheres que retrata.
ARTHUR C. DANTO: Os últimos três anos foram extremamente produtivos para você; você fez quatro filmes. O que você estava fazendo antes dos filmes?
SHIRIN NESHAT: Eu me graduei na UC-Berkeley em 1983, e me mudei logo após para a cidade de Nova York, onde rapidamente cheguei à conclusão de que produzir arte não seria minha profissão. Senti que o que eu estava produzindo não era suficientemente substancial – e eu estava intimidada pela cena artística de Nova York. Então trabalhei para ganhar dinheiro e fiz cursos sobre diversos temas. Logo após conheci meu futuro marido, que administrava o Storefront for Art and Architecture, um espaço alternativo em Manhattan. Dediquei-me os dez anos seguintes trabalhando intensamente com ele no Storefront, e essa se tornou minha verdadeira educação. Storefront funcionava como um laboratório cultural, o programa era bem transdisciplinar; eu estava constantemente trabalhando com artistas, arquitetas/os, críticas/os culturais, escritoras/es e filósofas/os. Essa exposição acabou me levando a pensar sobre mim mesma como artista e eu quis fazer trabalhos de arte novamente. Durante esses dez anos eu praticamente não produzi nada em arte e o pouco que produzi me deixou insatisfeita, de forma que, finalmente, acabei destruindo. Então foi apenas em 1993 que comecei a trabalhar seriamente com arte outra vez.
ARTHUR C. DANTO: E foi com fotografias?
SHIRIN NESHAT: Sim, achei que a fotografia era o meio mais apropriado para o meu tema, já que possuía o realismo que eu precisava. Nos anos de 1990, finalmente comecei a voltar para o Irã. Eu tinha estado fora por mais de dez anos – desde a revolução islâmica. Enquanto eu viajava para lá e para cá, muitas coisas começaram a passar pela minha cabeça, o que afinal me levou a desenvolver o trabalho que eu tenho. Meu foco desde o início foi o tema da mulher em relação com a sociedade iraniana e a revolução, então produzi uma série de imagens fotográficas que explorava esse tópico.
ARTHUR C. DANTO: Eu estava na semana passada com Susan Sontag que disse que, nessa entrevista que eu estava fazendo com ela, o movimento do cinema iraniano é o mais admirável do cinema contemporâneo. Essa é uma afirmação bem extraordinária. Como você considera isso?
SHIRIN NESHAT: Concordo com ela. Sou muito inspirada pela nova tendência do cinema iraniano. Na minha opinião, houve um aspecto positivo na revolução, já que esta, de alguma forma, purificou a cultura iraniana artisticamente por eliminar as influências ocidentais que haviam se infiltrado em nossa cultura profundamente. Antes da revolução, os filmes iranianos seguiam padrões similares ao de qualquer filme ocidental; muitos deles estavam cheios de superficialidade, violência e sexo. Após a revolução, o governo impôs códigos severos; cineastas tiveram que reformular suas ideias e, como resultado, uma nova forma de cinema nasceu e prosperou em meio a toda a censura governamental. Esses filmes tiveram êxito por sua abordagem humanística, simples e universal. Eles revelam muito sobre a cultura iraniana sem ser críticos demais. O pioneiro dessa geração de cineastas, Abbas Kiarostami, está exibindo seu filme mais recente, The Wind Will Carry Us [O Vento Irá Nos Carregar], em Nova York, estreando em julho.
ARTHUR C. DANTO: Deixe-me perguntar sobre seus primeiros filmes. Quando você começou a exibi-los aqui eles eram mais convencionais, lineares e com uma única tela… ou você começou com o formato de dupla tela imediatamente?
SHIRIN NESHAT: Turbulent foi o meu primeiro filme cinematográfico. Antes, eu tinha feito alguns vídeos que considero muito diferentes; eles eram videoinstalações, bem esculturais, sem nenhuma narrativa específica, início ou fim.
ARTHUR C. DANTO: Isso era o vídeo como era compreendido na época: alguma coisa projetada na parede, imagens não narrativas e livres. Você tinha som?
SHIRIN NESHAT: Sim, o som sempre foi uma parte importante do meu trabalho.
ARTHUR C. DANTO: E sempre tinha música?
SHIRIN NESHAT: Bom, eu tinha alguns sons rítmicos bem simples e minha própria voz. Por exemplo, uma das peças que fiz em Istambul era uma mulher – eu, na verdade – correndo em quatro tipos de espaços projetados em quatro telas simultaneamente. E num trabalho chamado The Shadow Under the Web [A Sombra Embaixo da Teia], fiz um som com minha própria voz, algo entre canto e respiração, repetido em diferentes compassos. Improvisei enquanto gravávamos. Em Anchorage, que era uma projeção única, havia uma combinação de mantra e uma canção bem simples, e novamente improvisei.
ARTHUR C. DANTO: Você compôs essas canções espontaneamente?
SHIRIN NESHAT: Sim, in loco, no estúdio de gravação.
ARTHUR C. DANTO: Deve ter havido um momento em que as ideias que começaram a ser expressadas em Turbulent tornaram-se conscientes. Você fez uma mudança, uma mudança de direção; você se sentiu no início de algo diferente? Eu me lembro de ver algumas fotografias suas com o que parecia ser um tipo antigo de rifle. Aonde essas se encaixam?
SHIRIN NESHAT: O primeiro grupo de trabalho fotográfico que produzi em 1993 certamente refletiu o ponto de vista de uma iraniana vivendo no exterior, olhando para o passado e tentando analisar e compreender as mudanças que haviam ocorrido no Irã desde a revolução. Era a abordagem de uma artista que tinha ficado longe por muito tempo, e era um ponto de virada importante para mim, artística e pessoalmente, já que se tornou mais que uma produção artística, um tipo de jornada de volta para o meu país de origem. Eu estava profundamente empenhada em compreender as concepções ideológicas e filosóficas por trás do islamismo contemporâneo, acima de tudo, a origem da revolução e como ela mudou meu país. Eu sabia que o tema era muito complexo e amplo, então minimizei meu foco para algo tangível e específico. Escolhi me concentrar nos significados por trás de “martírio”, um conceito que se tornou o centro da missão do governo islâmico na época, particularmente durante a guerra entre Irã e Iraque. Ela promovia a fé, o autossacrifício, a rejeição ao mundo material e, por fim, a vida após a morte. Eu estava principalmente interessada em como suas ideias de espiritualidade, política e violência eram e ainda são tão interconectadas e inseparáveis uma da outra. Mas, após alguns anos, senti que tinha esgotado o tema e precisava seguir em frente. Eu não queria mais fazer um trabalho que lidasse tão diretamente com questões da política. Queria fazer um trabalho que fosse mais lírico, filosófico e poético.
ARTHUR C. DANTO: Ele surgiu, de modo transversal, como didático e, de certa forma, retórico.
SHIRIN NESHAT: Houve vários problemas lá com a questão da tradução, literalmente em termos da escrita que registrei nas fotos e uma má interpretação cultural. Devo admitir que, quando fiz esse grupo de trabalhos, eu não tinha um público em mente. Nunca tinha feito uma exposição antes e não tinha planos para isso. Eventualmente, quando tive um público, me senti em conflito sobre como poderia sair traduzindo ideias que eram inteiramente baseadas em uma racionalidade não ocidental sem comprometer sua autenticidade e significado. Olhando para trás, para esse trabalho, vejo problemas, mas foi uma tentativa honesta de reconectar e levantar questões em relação à minha cultura. Eu reduzi minhas referências para lidar com o tema do martírio, mas talvez tenha me perdido entre os dois. Senti que devia seguir em frente, fazendo trabalhos que, embora etnicamente específicos, poderiam permitir interpretações mais amplas.
ARTHUR C. DANTO: Algo que toca no que pode ser chamado de natureza humana universal.
SHIRIN NESHAT: Exatamente.
ARTHUR C. DANTO: É esse o sentimento que tenho com esses trabalhos.
SHIRIN NESHAT: Nesse período, você tem que entender, meu relacionamento com o assunto, minha compreensão e sentimentos a respeito da revolução tinham mudado. Quando cheguei primeiramente no Irã eu estava muito movida por tudo e queria desesperadamente pertencer de novo à comunidade iraniana. Foi quase um retorno romântico ao Irã. Turbulent foi o primeiro trabalho que não tinha mais a perspectiva de uma artista distanciada de sua cultura; ele lidava com uma questão que pertencia ao presente e revelava um novo senso de intimidade e familiaridade entre eu e o tema. Nesse período, eu tinha um bom entendimento da forma como a sociedade iraniana funcionava. Tinha viajado ao Irã frequentemente e estava trabalhando com uma equipe quase toda iraniana.
ARTHUR C. DANTO: Quando você começou a trabalhar em Turbulent, você pensava nele como parte de uma trilogia – que é o que, evidentemente, os três filmes constituem – ou você pensava nele como uma afirmação individual, que acabou por levar a outros dois filmes?
SHIRIN NESHAT: Não pensei como uma trilogia a princípio. É só aquele único tema – um projeto levou ao outro. O tópico do feminino e masculino em relação à estrutura social do Irã começou em Turbulent. Ao terminá-lo, imediatamente segui em frente para a execução de Rapture, que, embora bem diferente, levantava questões similares. Finalmente Fervor foi realizado, o que, em minha opinião, encerrou o capítulo nessa série. O que me inspirou para fazer Turbulent foi uma experiência estranha que tive nas ruas de Istanbul, vendo uma mulher jovem e cega cantando para ganhar um pouco de dinheiro. Sua música era extraordinária e o público se reunia incontrolavelmente à sua volta. Eu me apaixonei pela música dela, comprei uma fita cassete. Mais tarde mandei traduzir suas músicas e me tornei obcecada com o quanto sua cegueira – não tendo um público visível – afetava sua música.
ARTHUR C. DANTO: Essa é uma das coisas que me atingiu em Turbulent. O cantor está em uma tela, e está cantando com um bocado de paixão, mas de costas para o público. A câmera está no fundo do palco, então vemos ele cantando, e vemos o público atrás dele. A cantora está na outra tela, e de frente para um auditório vazio. Você a vê apenas de costas; ela é bem misteriosa. Na verdade, ela se parece com uma figura de morte da inquisição. Por todo o canto do homem, você só a vê de costas. E você não compreende o que tudo isso quer dizer. O público do homem é extremamente participativo; eles aplaudem. Como me lembro, ele se vira, faz uma reverência para o público e então se vira de costas, e a mulher, que está na outra tela, começa a cantar. Seu canto é muito diferente do dele; parece eletrônico. É modificado, não é um canto convencional. E então pouco a pouco seu rosto começa a emergir e você pode ver ela cantando. A câmera se move de um lado para o outro sobre o auditório vazio. E, na outra tela, o homem está encarando-a. Então ele é de alguma forma um membro de sua audiência, embora você não esteja muito certo de como isso aconteceu. Então essa foi a justaposição.
SHIRIN NESHAT: Turbulent é similar a Rapture no que diz respeito a ambos os filmes serem baseados na ideia de opostos, visual e conceitualmente. O cantor representa o ideal de homem da sociedade; ele se prende às regras em sua forma de se vestir e em sua atuação de uma apaixonada canção de amor escrita pelo poeta Sufi do século XIII, Rumi. Em oposição a ele, a cantora é um tanto rebelde. Ela não devia estar no teatro, e a música que ela canta quebra todas as regras da música islâmica tradicional. Sua música é livre de forma, improvisada, não amarrada à língua e imprevisível, quase primitiva.
ARTHUR C. DANTO: Quando você diz que ela não devia…
SHIRIN NESHAT: Um importante aspecto de Turbulent é que as mulheres no Irã são proibidas de cantar em público, e não há gravações de mulheres musicistas. A peça decolou em várias direções e trouxe outras importantes questões sobre o contraste entre masculino e feminino na relação com a estrutura social. A questão final foi como cada um alcançaria um nível de expressão mística inerente à música Sufi.
ARTHUR C. DANTO: Mas a música dela não é uma canção tradicional.
SHIRIN NESHAT: Não. É a música de Sussan Deyhim; ela é uma talentosa cantora iraniana contemporânea que vive em Nova York. Embora sua música seja baseada nas melodias islâmicas tradicionais, é bem radical também, por isso ela quase não lembra nenhuma música em particular.
ARTHUR C. DANTO: Era a voz dela em Turbulent, e era ela que você estava fotografando?
SHIRIN NESHAT: Sim. Passamos bastante tempo juntas discutindo a escolha da música e sua presença no filme e como eram absolutamente críticos para o significado do trabalho.
ARTHUR C. DANTO: Bem percussivo.
SHIRIN NESHAT: Ao final, queríamos que o cantor estivesse aturdido, em um estado de descrença, e a cantora deveria estar liberta – livre. Ela, claro, não teve problema em fazer isso.
ARTHUR C. DANTO: Bom, ela não teve problema com a música. Mas esse efeito, de estar livre e o homem aturdido – você acha que isso foi registrado visualmente no filme?
SHIRIN NESHAT: Eu acho que sim. Discutimos amplamente com Shoja, o cantor, sobre como eram importantes suas expressões, seu olhar de compaixão, mas quase invejoso.
ARTHUR C. DANTO: Alguém que desejaria, de certa forma, poder ser mais livre, como ela é.
SHIRIN NESHAT: Exatamente. E essa hierarquia sexual está inevitavelmente fora do controle dele. Talvez ele mesmo seja um tipo de prisioneiro.
ARTHUR C. DANTO: Assim como os homens em Rapture.
SHIRIN NESHAT: Rapture seguiu o mesmo quadro. Mais uma vez as mulheres são a força imprevisível, elas são as que se libertam. Os homens, do início ao fim, permanecem no confinamento da fortaleza. Isso tudo se relaciona com o que eu acredito ser um tipo de feminismo que vem de tal cultura; cotidianamente, a resistência que você sente das mulheres é maior que a dos homens. Por quê? Porque as mulheres são as que estão sobre extrema pressão; elas são reprimidas e, por isso, é mais provável que resistam e, afinal, que se libertem.
ARTHUR C. DANTO: Formalmente falando, isso não soa totalmente diferente do discurso feminista no Ocidente. A diferença como você representa isso nos filmes é que os homens parecem condenados a uma vida de futilidades, e são incapazes de se libertar. Enquanto aqui, a vida dos homens é concebida como sendo uma vida significante, que supera obstáculos, tem carreiras etc. E, de certa forma, a liberdade de uma mulher estadunidense é moldada a partir da ideia do que é ser um homem livre. Ao passo que o que você transmite é que as mulheres se movem para um espaço bem desestruturado, para o qual homens não são mais os modelos. Na verdade, se o homem deve ser genuinamente livre, ele quase deveria se modelar pelo feminino. É claro que você não pode ser terrivelmente explícita sobre isso porque ninguém sabe como isso vai se resolver. Uma das coisas que adoro em Rapture é a incerteza dele. Com aquelas mulheres partindo de barco, você encontrou, eu pensei, uma maravilhosa imagem mítica.
SHIRIN NESHAT: Obrigada. Mas discordo de você quando diz que a nossa ideia de feminismo é similar à do ocidente. Do meu ponto de vista, o feminismo ocidental tem a ver com alcançar certo nível de igualdade entre homens e mulheres…
ARTHUR C. DANTO: Sim, é justamente o que eu quero dizer.
SHIRIN NESHAT: Mas não acredito que almejamos a mesma coisa. Mulheres iranianas, por exemplo, sentem que homens e mulheres têm seus próprios e distintos papéis e lugares; eles não são competitivos.
ARTHUR C. DANTO: E isso continuará sendo verdade?
SHIRIN NESHAT: Eu acho que sim. Acredito que a luta deles é para alcançar um equilíbrio necessário em uma sociedade justa e saudável. Elas querem a responsabilidade doméstica – que na verdade lhes dá muito poder. Onde elas sofrem é na incapacidade de manter seus direitos como mulheres, por exemplo, nas áreas do divórcio, custódia dos filhos, voto etc.
ARTHUR C. DANTO: Não quero me envolver muito nas diferenças e semelhanças. Concordo bastante com você que igualdade e liberdade são ideias do século XVIII bem centrais na consciência estadunidense – mas teóricas feministas já disseram que a libertação das mulheres também significa a libertação dos homens. É nesse sentido que eu quis dizer que há uma semelhança, há uma libertação mútua quando o futuro e destino de homens e mulheres é bastante aberto.
SHIRIN NESHAT: Seria uma generalização falar do Islã como um todo, mas sei que mulheres iranianas são bem poderosas, ao contrário de sua imagem clichê. O que tento transmitir através do meu trabalho é esse poder, que é bem cândido. Em Rapture, o centro da história é a jornada da mulher partindo do deserto até chegar ao mar; por fim, algumas partem em um pequeno barco. Essa jornada, a tentativa de se libertar, para mim simboliza bravura, e, se essa partida é para o propósito de cometer suicídio ou alcançar a liberdade, isso não importa. Aquelas mulheres que ficam para trás simbolizam para mim a ideia de sacrifício. O filme questiona a natureza feminina como oposta à masculina, e mostra o quão frequente mulheres nos surpreendem com sua força de propósito, particularmente em momentos de crise.
ARTHUR C. DANTO: Vou te contar que essa tem sido minha experiência com as mulheres. (risos) Eu queria te perguntar uma coisa sobre os títulos. Você empregou um vocabulário extremamente romântico: turbulent [turbulento], rapture [rapto/arrebatamento/êxtase], fervor [idem] – todos termos psicológicos referentes a estados de extrema agitação. Achei que Fervor foi um pouco irônico. Foi o comportamento da plateia – aquele era o fervor que ele, o orador, tinha despertado. Mas Rapture, não tive certeza; Rapture normalmente tem uma conotação erótica.
SHIRIN NESHAT: Ah, sério?
ARTHUR C. DANTO: Ao menos em inglês. “What rapture, divine…” [que êxtase, divino…] e turbulento é um estado de perturbação, distúrbio e assim por diante, agitação de algum tipo.
SHIRIN NESHAT: Os títulos são a parte mais difícil. Um título mal compreendido pode levar o projeto todo para o caminho errado, banalizar ou reduzir seu significado. O que eu procuro num título é sua sugestividade, referências que permitam aos observadores fazerem suas próprias interpretações. Pensei que Turbulent, por exemplo, fosse sobre o estado de espírito da mulher; ela claramente não estava tranquila. Em Rapture, vi o significado do termo como um estado de êxtase.
ARTHUR C. DANTO: Está certo, é êxtase. É só que a cultura estadunidense não é particularmente mística; êxtase aqui tem conotação erótica. Há analogias entre o transporte místico e erótico, e certamente os poetas persas sabiam dessa conotação. Eles tendem, caracteristicamente, como me lembro, a falar do êxtase religioso em termos de metáforas eróticas.
SHIRIN NESHAT: É o mesmo com Fervor, porque tem suas conotações religiosas mas, ao mesmo tempo, pode ser sexual. Mais uma vez eu apontava para o choque entre desejo sexual e carnal versus controle social.
ARTHUR C. DANTO: Fervor é o filme em que você conta mais com a fala que com a música. Música realmente supera as barreiras linguísticas. Mas em Fervor o homem fala longamente, e tentamos inferir o que ele está dizendo. E ele aponta para uma pintura que é mostrada de forma proeminente atrás dele.
SHIRIN NESHAT: Desde o início pensei em ter legendas. Na verdade, tive um trecho da fala traduzida, e foram criadas legendas. No entanto, muitos amigos que falam inglês vieram me visitar enquanto eu editava e todos sentiram que as legendas tornavam o trabalho muito literal, muito óbvio, e que distraía da clareza da imagem. Eu me arrependi de não ter uma tradução na parede da exposição para que as pessoas interessadas pudessem se remeter a ele.
ARTHUR C. DANTO: Hmm… estou dividido quanto a isso. Eu realmente não sei qual é a verdade ali.
SHIRIN NESHAT: A fala se torna bem musical aqui.
ARTHUR C. DANTO: Sim, fica.
SHIRIN NESHAT: Ela quase funciona como uma ópera, você não escuta realmente as palavras, você imagina o que foi dito pelas qualidades musicais. Mas recebi algumas críticas pela falta de legendas; algumas pessoas não ficaram satisfeitas com adivinhar o que estava sendo dito. Deixe-me contar o significado da fala e um pouco sobre o orador, cujo personagem é bem dúbio. Ele surgiu como algo entre um político, um mullah [1] e um ator. O evento também foi projetado para aparentar um evento político, uma cerimônia religiosa e uma história teatral. Eu fui inspirada pelas orações públicas de sexta-feira no Irã, em que massas de homens e mulheres se juntam, mas sentam separadamente. Normalmente, um mullah notável lidera a oração e profere um discurso moral, cada vez enfocando um tópico particular. Então em Fervor esse homem vem ao palco e oferece seu discurso moral, que acaba por ser o problema do pecado, particularmente pecado que surge do comportamento sexual – desejo carnal. Ele usa a história de Joseph (Youssef) e Zuleica do Alcorão para exemplificar o destino daqueles que não podem controlar sua sexualidade. No Alcorão, Zuleica, a personagem feminina, seduz Joseph. A pintura no fundo do filme ilustra a história. Esse tipo de teatro é, na verdade, uma forma tradicional no Irã, onde um orador fica na frente de uma pintura para contar a história. Ele normalmente acontece em cafés.
ARTHUR C. DANTO: Então o orador usa a pintura como base para a narrativa.
SHIRIN NESHAT: Exatamente.
ARTHUR C. DANTO: Que fascinante.
SHIRIN NESHAT: Eu acho que Fervor, diferentemente de Rapture e Turbulent, não foi tão facilmente compreendido por ocidentais.
ARTHUR C. DANTO: O suficiente dessa narrativa é compreensível. Para citar algo, você sente que qualquer que fosse a mensagem, o homem e a mulher se sentiam além ou acima disso, que eles estavam realmente interessados em suas visões mais fundamentais, isto é, de um ao outro.
SHIRIN NESHAT: Exatamente.
ARTHUR C. DANTO: Adorei que eles não se veem, mas, no momento em que o homem começa a olhar para ela, a mulher começa a olhar para ele. Independente de quem comece, talvez seja simultâneo – isso é que é extremamente romântico nisso tudo. E aí eles saem simultaneamente, e eles se veem entre si. E ainda há uma longa estrada à frente deles – literalmente.
SHIRIN NESHAT: O tipo de sedução proibida que alguém experimenta naquela parte do mundo é, obviamente, muito diferente do que se experimenta aqui no ocidente. Você não deve fazer contato visual com o sexo oposto. Todo homem e mulher iranianos entende o dilema, a problemática, e ainda há a alegria de uma simples troca na contemplação. Esse tipo de controle social e religioso tende a aumentar o desejo e atmosfera sexual. Por isso, quando há uma troca modesta é a mais mágica experiência sexual.
ARTHUR C. DANTO: Eu estava lendo um artigo sobre o Afeganistão e o grande vestuário fechado, a burca, que as mulheres são obrigadas a usar. A suposição é de que os olhos das mulheres são extremamente perigosos. Eles não deveriam ser vistos.
SHIRIN NESHAT: E o véu é um ícone incrivelmente poderoso na forma como empodera as mulheres sexualmente. Ele deveria fazer o oposto, mas como você pode perceber, através de um mero olhar uma mulher pode excitar um homem. Essas são as questões que esse projeto explorou. Eu não tenho certeza de que foi compreendido no Ocidente.
ARTHUR C. DANTO: Eu achei que foi bem universal. É uma história que é contada de novo e de novo. Como homens e mulheres superam as distâncias que são impostas entre os gêneros?
SHIRIN NESHAT: Eu abordei Fervor como uma forma de um capítulo nesse tipo de curiosidade sobre gêneros que eu tive. Finalmente, em Fervor, as questões não são sobre oposições, mas sobre o que há de comum entre homens e mulheres. O tabu acerca da sexualidade interessa tanto a homens quanto a mulheres, mas claro que é a mulher que toma a maior parte da exaltação.
ARTHUR C. DANTO: Então Zuleica é a sedutora?
SHIRIN NESHAT: Sim, ela é a princesa e Joseph é um escravo.
ARTHUR C. DANTO: É a história bíblica de Joseph e a esposa de Potifar. É a mesma história!
SHIRIN NESHAT: Exatamente.
ARTHUR C. DANTO: Ela é bem traiçoeira, ao que parece. Se ele não fizer o que ela quer, então ela vai dizer que ele a estuprou. Bem, a Bíblia é cheia de sabedoria humana. Neste outro filme, Soliloquy, que eu pude ver…
SHIRIN NESHAT: Então você viu esse!
ARTHUR C. DANTO: Sim, Barbara Gladstone me deixou vê-lo na galeria. E pareceu uma partida. Você participa nele como atriz?
SHIRIN NESHAT: Sim.
ARTHUR C. DANTO: Eu achei que sim. É colorido. Há uma qualidade mítica no preto e branco, mas foi importante, para o que você estava tentando fazer, o uso da cor. Esteticamente foi bem sucedido. Eu senti que era uma conversa de uma mulher consigo mesma. As duas telas funcionam um pouco como em Turbulent; ela se vê e é como se visse uma imagem, um sonho ou uma memória – você não consegue descobrir direito. Embora haja o que eu penso ser um cenário mais tradicional: há uma criança e alguma tragédia implícita. Considerando que a pior coisa parece estar acontecendo com a mulher no outro, o cenário ocidental é a solidão. Isso é para dizer que ela está lá e as multidões passam rapidamente, e ela sobe as escadas. Me lembrou um dos primeiros filmes surrealistas de Maya Deren. Eu achei maravilhoso, a propósito, mas senti ao mesmo tempo que era experimental.
SHIRIN NESHAT: Muita gente, incluindo críticos e curadores, têm comparado os últimos trabalhos que fiz, tanto uns me dizendo que acreditam ser bem sucedidos como outros que acreditam não funcionar tão bem. Penso que o mais importante é o processo de desenvolvimento, e vejo como cada trabalho leva as ideias visualmente e conceitualmente adiante. Soliloquy quase não tem relação com a trilogia de que temos falado, mas é um tópico sobre o qual tinha vontade de fazer um filme há bastante tempo; e talvez seja o trabalho mais pessoal que eu já fiz. É sobre imaginar o estado emocional de uma mulher situada no limite entre dois mundos diferentes. Ela está constantemente negociando entre duas culturas que, não apenas são diferentes uma da outra, como estão em completo conflito. Então mais uma vez a ideia de opostos se aplica, mas de forma diferente. A locação do Oriente [Turquia], onde foi filmado, é seu país de origem. É antigo, tradicional e comunal, mas também uma sociedade de controle, às vezes sufocante, já que não há espaço pessoal – individual. A locação do Ocidente [Estados Unidos] é uma sociedade moderna, livre, extremamente individualista, onde sentimos grande isolamento pessoal e solidão. Ao final descobrimos que a mulher nunca se sente exatamente em paz, em nenhum dos lugares.
ARTHUR C. DANTO: Você sente que no final os dois estados da mulher, ou estágios, avançam para se encontrar? Como você poderia mostrar que eles se encontram? Claro que seria impossível, mas…
SHIRIN NESHAT: Essa é a ambiguidade que eu queria manter; não é muito claro de onde ou para onde ela estava correndo. Uma vez que você sai do seu local de nascimento, não há nunca um senso completo de centro: você está sempre num estado entre, e lugar nenhum parece completamente um lar.
ARTHUR C. DANTO: Entendo que você filmou Soliloquy na Turquia, mas você tem planos de trabalhar no Irã?
SHIRIN NESHAT: Tem sido um sonho para mim finalmente trabalhar no meu país. Aos poucos estou avançando nessa direção, embora o país ainda esteja em estado de mudança, então ninguém sabe realmente quando é completamente seguro trabalhar e quando não é. Mas recentemente tive um grande avanço. Fui contatada pelo ministro da cultura, o diretor de artes visuais, que também é o diretor do Museu de Arte Contemporânea em Teerã! Ele oficialmente me convidou para ir ao Irã trabalhar, expor e me encontrar com artistas locais. De acordo com esse cavalheiro, não deve haver problemas, mas fui aconselhada a tomar cuidado. No entanto, se as coisas não funcionarem no Irã, eu volto para outro país islâmico, Marrocos, Turquia, como já estive. Em todo meu trabalho tenho lidado com questões que apontam para ideias históricas, culturais e sociopolíticas; mas no fim, eu quero que meu trabalho transcenda isso e funcione num nível mais essencial e emotivo. Eu acho que a música intensifica a qualidade emotiva. Música se torna a alma, o pessoal, o intuitivo e neutraliza os aspectos sociopolíticos do trabalho. Essa combinação de imagem e música é para criar uma experiência que mova o público. É uma expectativa que tenho como artista e quero essa intensidade de qualquer obra de arte; eu quero ser profundamente afetada, quase como que pedindo para ter uma experiência religiosa. Beleza é importante em relação ao meu trabalho. É um conceito que, na maioria das vezes, é universal, ele vai além das diferenças culturais.
ARTHUR C. DANTO: Acredito nisso. Tem havido um tipo de cinismo em relação à beleza, que diz que ela é inteiramente relativa. De qualquer maneira, eu mesmo tenho pensado um bocado sobre isso, filosoficamente. Estou tentando escrever um livro a respeito disso.
SHIRIN NESHAT: Isso é particularmente importante em relação ao meu tema, já que no Islã a beleza é crítica, uma vez que amarra as ideias de espiritualidade e amor de Deus.
NOTA
[1] Nota do Tradutor: “Mullah” – palavra derivada do árabe “mawla”, que significa “mestre”. É usada como título de respeito por figuras religiosas e juristas, no Irã e em outras partes da Ásia.
PARA CITAR ESTA ENTREVISTA
DANTO, Arthur C. “Entrevista com Shirin Neshat”. eRevista Performatus,
Inhumas, ano 3, n. 13, jan. 2015. ISSN: 2316-8102.
Tradução de Tauana M.
Revisão da tradução de Julia Pelison
Revisão ortográfica de Marcio Honorio de Godoy
© 2015 eRevista Performatus e o autor
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