O texto “Restos” escrito pela artista Bea Fernández e traduzido para a língua portuguesa por Carolina Bonfim, foi originalmente publicado em língua castelhana no livro A veces me pregunto por qué sigo bailando – Prácticas de la intimidad, coordenado por Óscar Conargo e publicado pela editora Continta me tienes, coleção Escénicas, em outubro de 2011.
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Restos
Bea Fernández
Corpo em cena ou os sonhos (não) têm título
um estar aqui e agora
um estar muito aberta com sorriso interior
o movimento está aberto
aberto no espaço sem ter que capturá-lo
atenção no abandono
e abandono na ação
o espaço está vazio como uma página em branco
como despertar nesse espaço onde tudo pode acontecer?
crio brechas e nelas tenho a oportunidade de pensar, de observar, nem sempre posso fazê-lo…
O IMPREVISÍVEL
capacidade de ver as brechas entre as coisas, os espaços entre os espaços
praticar a velocidade cotidiana
não deixar que o pensamento me pegue desprevenida
a necessidade
o jogo como possibilidade
o silêncio como ação
um corpo que aciona, que transita pela forma mas que não fica presa a ela. Princípios esboçados em que aparece a surpresa, o estranho, o alheio.
qualquer decisão com o corpo é possível se estou no lugar
DO CADERNO DE NOTAS
As coisas não se impõem, conectar com o necessário com o que agora mesmo penso.
O abandono como entrega e não como morte. O que significa isso?
Um estar de corpo tranquilo e sem objetivos claros mas muito presente, experimentando a perda e a não perda como o mesmo, e mostrando tudo isso.
Olga me dá dentro e me dá fora, quanto mais escrevo sobre seu trabalho, mais falo dela, e quanto mais falo dela, mais entendo seu trabalho.
Questões como o lugar que ocupa o intérprete na cena, como se constrói uma presença em tempo real e com o público.
Me interessa sua necessidade de questionar o porquê de entrar em cima de um palco.
Esse processo supõe um passo mais, uma amplificação da minha experiência, ou do meu entendimento sobre o que é uma presença cênica, como e por que o corpo age e se mostra.
Uma aproximação a um corpo mais cotidiano, menos abstrato, mais concreto?
RESTOS DE MINHAS SÉRIES
Não sou Anne Teresa de Keersmaeker
nem Ivana Müller
Não tenho 30 nem peso 50
Não vivo nem trabalho em Bruxelas
Não estudei em PARTS nem em SNDO
Não dancei com Meg Stuart
Não li nem a Derrida nem a Deleuze
Não domino nem inglês nem francês
Talvez não tenha uma linguagem própria
Não me mantenho em forma ultimamente
Não tenho filhos
Não vivo sozinha
Não trabalho com o meu marido porque isso poderia ser prejudicial para a relação
Meu marido não é Cesc Gelabert
Cesc Gelabert, Cesc Gelabert
Não vivo exclusivamente do trabalho de sair à cena
E ultimamente não saio à cena com frequência
Não vivo no campo não tenho jardim
Nem sempre foi fácil nem exitoso
Nem fui uma estudante rebelde
Nem uma adolescente conflituosa
Le chambre le lamp lalala human steps
A técnica sempre foi o de menos
Margarita Cabero, Gilberto Ruiz-Lang
Na verdade eu não sabia quem era Trisha Brown
Le chambre le lamp lalala human steps
Le chambre le lamp lalala human steps
Cesc Gelabert, Cesc Gelabert
Na pausa, na espera
Eu o vivi
Eu o vivi
…MEU NOME É BEA FERNÁNDEZ, e isto que vão ver hoje aqui talvez não seja um espetáculo… (isto é uma versão de algo que já disse em outra peça no ano 2000)
vou tentar lembrar com todos vocês o dia em que os olhei nos olhos pela primeira vez: Mil aguas, Sala Beckett… eu estava no fundo do palco à direita e tinha que atravessar todo o espaço em diagonal até chegar ao foco que tinha diante de mim como referência…tudo isso quase nua e de quatro…a partir desse momento sempre os busco na escuridão… MEU NOME É BEA FERNÁNDEZ…alguém me disse uma vez que o olhar é isso que faz desaparecer o espaço vazio entre os corpos, como se meu corpo estivesse aqui e os meus olhos contigo… MEU NOME É BEA FERNÁNDEZ e isto que estão vendo…talvez…não seja um espetáculo…e mesmo que hoje não estejamos em um teatro…isto…é um corpo em cena, Cuerpo em cena é o título de um solo que interpretei em 2006 dirigido por Olga Mesa…um dia durante os ensaios Olga me perguntou POR QUE CONTINUA TE INTERESSANDO SAIR À CENA?
a primeira vez que pus o meu corpo em um palco profissional, o espetáculo se chamava Bajo cantos rodados hay una salamandra…tinha 21 anos…quase a metade do que tenho hoje… E VOCÊ?
em outra ocasião me disseram que os intérpretes sobem ao palco porque querem que o público lhes queira.
o que eu gostaria neste momento é ser o suficientemente valente para fazer em cada momento aquilo que imagino…como agora, por exemplo, que estou imaginando que isto poderia ser o final desta peça, isto significaria que estaríamos começando pelo final, não? …todos os finais dos espetáculos que vi têm algo em comum e esse algo é a separação entre ficção e realidade…
esse algo é o A P L A U S O
então vamos imaginar que esta peça chegou ao fim e que felizmente vocês gostaram muitíssimo.
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Bea Fernández é coreógrafa e intérprete. Em 2001 forma, junto com Mónica Muntaner e Silvia Sant Funk, o coletivo Las Santas; naquele mesmo ano abrem, em Barcelona, o espaço La Poderosa. Cuerpo en escena o los sueños (no) tienen título é um solo feito em colaboração com Olga Mesa como parte do projeto 3encuentros (2006). Restos de mis series, apresentado no CCCB de Barcelona no LP’11, forma parte de Tres personas todos los cuerpos, um projeto desenvolvido por Mauricio González e Montse Penela.
PARA CITAR ESTE TEXTO
FERNÁNDEZ, Bea. “Restos”. eRevista Performatus,
Inhumas, ano 3, n. 13, jan. 2015. ISSN: 2316-8102.
Tradução de Carolina Bonfim
Revisão ortográfica de Marcio Honorio de Godoy
© 2015 eRevista Performatus e a autora
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