Performer

 

Fotografia de Torben Huss. A foto foi tirada em 1996, no Museu de Arte Moderna de Louisiana, Dinamarca, durante um simpósio organizado por Eugenio Barba e ligado à ISTA (International School of Theatre Anthropology) de Copenhague

 

O Performer, com letra maiúscula, é um homem de ação. Ele não é um homem que faz o papel de outro. É o atuante, o sacerdote, o guerreiro: está fora dos gêneros estéticos. O ritual é performance, uma ação realizada, um ato. O ritual degenerado é um espetáculo. Não quero descobrir algo novo, mas algo que foi esquecido. Algo tão antigo que todas as distinções entre gêneros estéticos deixam de ser válidas.

Eu sou teacher of Performer (Falo no singular: of Performer). Teacher – como em qualquer ofício – é uma pessoa por meio da qual o ensinamento passa; o ensinamento deve ser recebido, mas a maneira de o aprendiz redescobri-lo só pode ser pessoal. E como é que o teacher, por sua vez, conheceu o ensinamento? Pela iniciação, ou pelo furto. O Performer é um estado do ser. O homem de conhecimento, podemos pensá-lo relacionando-o aos romances de Castañeda, se gostarmos do romantismo. Eu prefiro pensar em Pierre de Combas. Ou até nesse Don Juan descrito por Nietzsche: um rebelde diante do qual o conhecimento é tido como um dever; ainda que os outros não o amaldiçoem, ele sente que é diferente, um outsider. Na tradição hindu, fala-se dos vratias (hordas de rebeldes). Um vratia é alguém que está no caminho para conquistar o conhecimento. O homem de conhecimento [czlowiek poznania] tem à sua disposição o fazer, o doing, e não ideias ou teorias. O verdadeiro teacher – o que ele faz pelo aprendiz? Ele diz: faça isso. O aprendiz luta para entender, para reduzir o desconhecido ao conhecido, para evitar fazer. Pelo simples fato de querer entender, ele resiste. Ele só pode entender depois de fazer. Ele faz ou não faz. O conhecimento é uma questão de fazer.

 

O perigo e a chance

Quando uso o termo guerreiro, talvez você o relacione a Castañeda, mas todas as escrituras falam do guerreiro. É possível encontrá-lo tanto na tradição hindu quanto na tradição africana. É alguém que é consciente da própria mortalidade. Se é necessário enfrentar cadáveres, ele os enfrenta, mas se não é necessário matar, ele não mata. Entre os índios do Novo Mundo, costumava-se dizer que, entre uma batalha e outra, o guerreiro tem um coração tenro, como uma jovem menina. Para conquistar o conhecimento, ele luta, porque a pulsação da vida se torna mais forte e mais articulada em momentos de grande intensidade, de perigo. O perigo e a chance andam juntos. Não se tem classe se não se está diante do perigo. No momento do desafio aparece a ritmização dos impulsos humanos. O ritual é um momento de grande intensidade, de intensidade provocada. A vida se torna, então, ritmo. O Performer sabe ligar os impulsos corporais ao canto. (O fluxo da vida deve se articular em formas). Então as testemunhas entram em estados de intensidade, porque, por assim dizer, elas sentem uma presença. E isso graças ao Performer, que é uma ponte entre a testemunha e este algo. Neste sentido, o Performer é pontifex, fazedor de pontes.

Essência: etimologicamente, é uma questão do ser, da seridade. A essência me interessa porque nada é sociológico nela. É o que você não recebeu dos outros, o que não veio de fora, o que não é aprendido. A consciência, por exemplo, é algo que pertence à essência; é diferente do código moral que pertence à sociedade. Se você infringe o código moral, você se sente culpado, e é a sociedade que fala em você. Mas se faz um ato contra a consciência, você sente remorso – isso é entre você e você mesmo, e não entre você e a sociedade. Como quase tudo o que possuímos é sociológico, a essência parece uma coisa pequena, mas é nossa. Nos anos 1970, no Sudão, ainda havia jovens guerreiros nas aldeias Kau. No guerreiro com organicidade plena, o corpo e a essência podem entrar em osmose e parece impossível dissociá-los. Mas esse não é um estado permanente, não dura muito. Usando as palavras de Zeami, é a flor da juventude. No entanto, com a idade, é possível passar do corpo-e-essência para o corpo da essência. E isso é resultado de uma difícil evolução, de uma transmutação pessoal que é, de alguma forma, a tarefa de cada um. A questão-chave é: Qual é o seu processo? Você é fiel ao seu processo ou luta contra ele? O processo é como o destino de cada um, o próprio destino que se desenvolve no tempo (ou que simplesmente se desdobra – e isso é tudo). Então: Qual é a qualidade da submissão ao seu próprio destino? Pode-se captar o processo se o que se faz está em relação com nós mesmos, se não se odeia o que se faz. O processo está ligado à essência e, virtualmente, conduz ao corpo da essência. Quando o guerreiro está no breve tempo da osmose corpo-e-essência, ele deveria captar o próprio processo. Ajustado ao processo, o corpo se torna não-resistente, quase transparente. Tudo é leve, tudo é evidente. No Performer, o performing pode se tornar bem próximo ao processo.

 

O Eu-Eu

Nos textos antigos é possível ler: Nós somos dois. O pássaro que bica e o pássaro que olha. Um vai morrer, um vai viver. Preocupados em bicar, e embriagados com a vida dentro do tempo, esquecemos de fazer viver aquela parte de nós que olha. Então, há o perigo de existir apenas dentro do tempo e, de modo algum, fora do tempo. Sentir-se olhado por essa outra parte de si (aquela que parece estar fora do tempo) traz outra dimensão. Existe um Eu-Eu. O segundo Eu é quase virtual; não é – dentro de você – o olhar dos outros ou qualquer tipo de julgamento. É como um olhar imóvel: presença silenciosa, como o sol que ilumina as coisas – e isso é tudo. O processo só pode ser realizado no contexto dessa presença imóvel. Eu-Eu: na experiência, a dupla não aparece como separada, mas como plena, única.

No caminho do Performer, ele percebe a essência quando ela está em osmose com o corpo, só depois ele trabalha o processo; ele desenvolve o Eu-Eu. Às vezes, o olhar do teacher pode funcionar como um espelho da conexão Eu-Eu (esta junção ainda não tendo sido traçada). Depois que o canal Eu-Eu já foi traçado, o teacher pode desaparecer e o Performer seguir rumo ao corpo da essência; que, para alguns, pode ser como percebido na fotografia de Gurdjieff, velho, sentado num banco em Paris. Da foto do jovem guerreiro de Kau a esta foto de Gurdjieff está a passagem do corpo-e-essência ao corpo da essência.

Eu-Eu não significa estar cortado em dois, mas ser duplo. Trata-se de ser passivo ao agir e ativo ao olhar (ao contrário do habitual). Passivo: ser receptivo. Ativo: ser presente. Para nutrir a vida do Eu-Eu, o Performer não deve desenvolver um organismo-massa, um organismo de músculos ou atlético, e sim um organismo-canal através do qual as energias circulam, as energias se transformam, o sutil é tocado.

O Performer deve ancorar seu trabalho em uma estrutura precisa – fazendo esforços, pois a persistência e o respeito pelos detalhes são o rigor que permite tornar o Eu-Eu presente. As coisas a serem feitas devem ser precisas. Don’t improvise, please! É necessário encontrar ações simples, mas tomando cuidado para que se tenha domínio sobre elas e para que durem. Caso contrário, não serão simples, mas banais.

 

Do que eu me lembro

Um dos acessos à via criativa consiste em descobrir em si mesmo uma antiga corporalidade à qual se está ligado por uma forte relação ancestral. Então não se está nem no personagem nem no não-personagem. A partir dos detalhes, é possível descobrir em si mesmo uma outra pessoa – seu avô, sua mãe. Uma foto, a lembrança das rugas, o eco distante de uma cor da voz permitem reconstruir uma corporalidade. Primeiro, a corporalidade de alguém conhecido, depois, cada vez mais distante, a corporalidade do desconhecido, do antepassado. Será literalmente a mesma? Talvez não literalmente, mas como poderia ter sido. É possível chegar lá atrás, como se a sua memória despertasse. É um fenômeno de reminiscência, como se nos lembrássemos do Performer do ritual primário. Toda vez que descubro algo, tenho a sensação de que é algo de que eu me lembro. As descobertas estão atrás de nós, e, para alcançá-las, temos que fazer uma viagem para atrás. Com o irromper – como no retorno de um exilado – será que se pode tocar algo que não está mais ligado às origens, mas – se ouso dizer – à origem? Acredito que sim. Será que a essência é o fundo oculto da memória? Eu realmente não sei. Quando trabalho próximo à essência, tenho a impressão de que a memória se atualiza. Quando a essência é ativada, é como se fortes potencialidades se ativassem. Talvez a reminiscência seja uma dessas potencialidades.

 

O homem interior

Cito:

 

Entre o homem interior e o homem exterior existe a mesma diferença infinita que há entre o céu e a terra.

Quando estava na minha causa primeira, eu não tinha Deus, eu era causa de mim. Lá, ninguém me perguntava para onde eu tendia, nem o que eu fazia: ninguém estava lá para me questionar. O que eu queria, eu era, e o que eu era, eu queria; eu estava livre de Deus e de qualquer outra coisa.

Quando saí dali (fluí dali), todas as criaturas falaram de Deus. Se alguém tivesse me perguntado: – Irmão Eckhart, quando foi que você saiu da casa? – Eu estava lá ainda há pouco, eu era eu mesmo, eu me queria a mim mesmo e me conhecia a mim mesmo, para fazer o homem (que aqui embaixo eu sou). Por isso sou não-nascido, e por meu modo não-nascido, não posso morrer. O que sou conforme meu nascimento vai morrer e desaparecer, porque se deve ao tempo e vai apodrecer com o tempo. Mas no meu nascimento também nasceram todas as criaturas. Todas sentem a necessidade de ascender de sua vida à sua essência.

Quando retorno, esse irromper é bem mais nobre do que minha saída. No irromper – lá – estou acima de todas as criaturas, nem Deus, nem criatura; mas sou aquilo que eu era, o que devo continuar a ser hoje e sempre. Quando eu chego – lá – ninguém me pergunta de onde eu venho nem onde estive. Lá eu sou o que eu fui, não aumento nem diminuo, porque sou – lá – uma causa imóvel, que faz todas as coisas moverem.

 

Nota: Uma versão desse texto – baseada em uma conferência de Grotowski – foi publicada em maio de 1987 pela revista Art-Press de Paris, com o seguinte comentário de Georges Banu: “O que eu proponho aqui não é nem um registro nem um resumo, mas uma transcrição de anotações feitas com todo cuidado, o mais próximas possível da linguagem de Grotowski. Deve ser lido como a indicação de uma trajetória, e não como um programa ou um documento finalizado, escrito, fechado”. O texto foi revisto e ampliado por Grotowski para ser publicado numa brochura do Workcenter of Jerzy Grotowki (Pontedera, 1988); em seguida, foi definitivamente revisto para sua publicação no The Grotowski Sourcebook (org.: Richard Schechner e Lisa Wolford, Routledge, Londres-Nova York, 1997). Identificar o Performer com os participantes do Workcenter seria abusivo. A questão é mais ligada ao caso da aprendizagem que, em toda a atividade do “teacher of Performer”, acontece muito raramente.

 

Tradução realizada por Patricia Furtado de Mendonça a partir da versão final do texto em inglês publicado em The Grotowski Sourcebook. A tradução foi revisada conjuntamente por Carla Pollastrelli e Thomas Richards. Também contou com a colaboração de Tatiana Motta Lima e François Khan.

 

 

PARA CITAR ESTE TEXTO

GROTOWSKI, Jerzy. “Performer”. Trad. de Patricia Furtado de Mendonça. eRevista PerformatusInhumas, ano 3, n. 14, jul. 2015. ISSN: 2316-8102.

 

Tradução do inglês para o português de Patricia Furtado de Mendonça

Revisão ortográfica de Marcio Honorio de Godoy

Edição de Mãe Paulo

© 2015 eRevista Performatus, Jerzy Grotowski, 1987, 1990 e The Jerzy Grotowski Estate, 2005

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