A Onipresença do Tempo no Lugar na Performance Australiana que tem por Base um Local

 

O presente ensaio visa discutir o uso do tempo na performance contemporânea do lugar na Austrália, essencialmente através de duas das obras recentes de Jill Orr, mas, também, através da apresentação da minha própria prática baseada num local. Estas obras representam, de forma não cronológica, vários aspectos do passado de um local como coexistentes com o presente de uma forma muito parecida ao sentido que os indígenas australianos têm do tempo como duradouro e onipresente (Stephen Muecke, Ancient and Modern, 2004). A aclamada praxis performática de Orr, desenvolvida ao longo de mais de 30 anos, deriva das Belas Artes, ao passo que a minha prática, relativamente emergente, se baseia na dança, pelo que não pretendo comparar o nosso trabalho de mais nenhuma forma que não seja discutir as nossas representações do tempo na performance. Partilhamos a convicção de que o reconhecimento da aboriginalidade inerente dos lugares australianos reveste-se de uma importância crucial para a prática artística australiana atual baseada num lugar e, por isso, procurámos incluir pessoas indígenas autóctones, bem como referências à história colonial nas nossas obras performáticas recentes. Contudo, em vez de construir narrativas históricas lineares, os diversos passados de um determinado lugar são entrelaçados na contextura do trabalho, criando uma oscilação entre as histórias aborígenes, colônias e outras, práticas contemporâneas neste local e a imediatidade do momento atuado.

A artista performática australiana Jill Orr cria poderosas obras baseadas em imagens, nas quais se incluem performances físicas ao vivo, vídeo, fotografia, pintura e instalação. O trabalho da artista procura “a humanidade refletida em diferentes lugares e assuntos, com relevância pessoal e universal” (www.jillorr.com.au/CV.html consultado em 10/06/2008). As imagens, a solo, de Orr, nos anos 70 e 80 do séc. XX, usavam o seu corpo como o lugar e foram orientadas para revisões feministas do corpo, bem como temas ambientais (por exemplo, a famosa Bleeding Trees de 1979). Algumas das suas obras têm sido performances duracionais, como The Sleep of Reason Produces Monsters-Goya (2002 e 2003), onde Orr povoou um espaço de galeria e criou esculturas com uma tonelada de ossos ao longo de mais de oito horas. Essa obra envolveu o tempo de forma particular, mas aqui abordarei as obras recentes da artista que se centram num lugar e se referem à história. Tanto The Crossing (Lock Island, Mildura, 2007) como From the Sea (Warrnambool, 2003-2004) revelam a multiplicidade de relações culturais com o lugar, incluindo experiências aborígenes, australianas brancas e da nova imigração. Atuei em esses ambos trabalhos, pelo que testemunhei e contribuí para o próprio processo de execução. A reflexão sobre o papel do tempo na obra de Orr deriva essencialmente dessas experiências na primeira pessoa e de uma entrevista que fiz a Jill Orr em junho de 2009.

Tanto em The Crossing como em From the Sea, Jill convidou grupos indígenas e outros membros ou grupos das comunidades locais, bem como artistas performáticos profissionais representando várias culturas, para darem um contributo para a obra. Os grupos indígenas, em particular, foram incentivados a executarem as suas danças, escolhidas por si, nos seus próprios termos, no seu espaço. Jill entendeu ser esta a melhor forma de reconhecer a história do povo indígena e a presença indígena contemporânea sem reiterar paradigmas colonizadores mediante “dizer-lhes o que fazer ou ter alguém a tentar contar a história deste povo por ele” (Orr, 29/06/2009). Deste modo, Orr convida os grupos aborígenes a representarem-se a si mesmos, entendendo, simultaneamente, que o seu contributo faz parte de uma obra mais abrangente. Atendendo a que nós (colonizadores) “ficamos com todo o espaço”, o mínimo que podemos fazer, segundo Jill crê, é abrir um espaço nas nossas estruturas performáticas para que os povos aborígenes contem a sua própria história. De forma semelhante, ao convidar por exemplo Tony Yap, um bailarino malaio, a contribuir para The Crossing, dançando a sua relação com o lugar de Lock Island, Jill permitiu-lhe “ter uma voz”: criar a própria dança. Como fazedora/diretora performática, Jill acredita não conseguir representar perspectivas alheias; apenas pode criar espaço(s) para que outros se representem neles. Obviamente, esta abertura tem algumas limitações: desde o princípio, Jill é seletiva ao convidar determinados indivíduos e grupos para o local por si escolhido; a artista intui que esses convidados criarão cumulativamente uma transversalidade de “personagens” que representem diversas relações com o lugar em questão. O objetivo da artista, na composição dessa “sobreposição” num espaço, é a criação de uma “obra inclusiva a partir de diferentes perspectivas reais”.

Sempre rotulando o seu trabalho como uma “resposta poética”, Orr não tenciona documentar e representar uma história fatual nem sequer verdadeiramente “contar uma estória”, pois considera que outras pessoas (historiadores, acadêmicos) estarão bem melhor equipadas para elaborar um documentário fatual devidamente explanado. Jill prefere evocar um fato, que ela crê proporcionar mais possibilidades, uma ligação mais lateral de inter-relações de passado, presente e futuro pelos lugares. As imagens visuais, que ela cria, partem da história real (documentada ou recontada pelos autóctones) e da sua resposta intuitiva/ criativa ao lugar. Muitas vezes, a resposta intuitiva inicial de Jill, que o próprio lugar gera, é depois apoiada por pesquisas, naquilo que ela apelida de um “processo invertido”. Defendendo que as personagens “já lá estão” no lugar, preparadas para ela, ela tem então de “verificar que são reais”, analisando os fatos. Das pesquisas que realiza, Jill Orr fica ciente da enorme quantidade de histórias para lá do que ela efetivamente inclui nos trabalhos. A artista acredita que “saber aquilo que fica de fora confere mais peso ao que é incluído”. Os seus trabalhos são, então, uma destilação e, a partir deste momento destilado, acredita que a leitura do público “voltará a alargá-lo”. Orr descreve o seu trabalho como uma “história falsa” que “paira nos limiares do espaço”.

A costa litoral sul de Warrnambool inspirou Orr para a sua instalação de vídeo de múltipla projeção From the Sea [cujo título em português poderia ser “Vindos do Mar”]. Esse trabalho evocou aspectos da história e mitologia locais, como os “fantasmas” dos vinte e oito navios naufragados ao longo daquele trecho da costa. Inclui ainda referências sutis a refugiados atuais que procuram asilo na Austrália. A imaginação de Jill de From the Sea deriva da sua consciência do mistério/ mito da nau de mogno portuguesa que se julga ter naufragado nos rochedos em Warrnambool (“The Mahogany Ship”), cerca de duzentos anos antes da alegada “descoberta” do continente por Cook. Jill soube pelo povo nativo Gunditjmara que, nos tempos que antecederam a implantação europeia, devido à relação de direções num cerimonial fúnebre tradicional dos Gunditjmara, este povo tinha a crença de que as almas, corpos ou sobreviventes vindos do ocidente eram seres santos; os que vinham do oriente não eram considerados importantes. Essa informação confirmou a propensão de Jill para criar uma obra no lugar de onde se observavam os seres que vinham “do mar” [From the Sea, o nome da obra], como se fossem observados da perspectiva (indígena) da terra firme.

 

From the Sea, Warrnambool, 2003. Fotografias de Sharp Edge Photography para Jill Orr

 

A dimensão política de From the Sea residia no estabelecimento de paralelos entre imagens representando tempos históricos muito díspares e, assim, diferentes ramificações legais e valores culturais. Uma imagem fugaz mostrava duas personagens iraquianas andando pela praia: uma alusão ao furor em torno dos imigrantes ilegais que chegam de barco e a histeria nacionalista em torno do “controle fronteiriço” no momento atual de 2002-2003. Essa imagem foi incluída na sequência de vídeo não linear, entre outras imagens de diversas pessoas/ fantasmas de aspecto europeu/ britânico chegando via mar de uma era anterior. Da perspectiva da terra (e respectivos habitantes indígenas), esses seres chegados do mar são considerados como equivalentes, ao contrário do aparente esquecimento da Austrália branca dominante, de que originalmente todos viemos de outro local e presumimos o direito de reclamar esta terra como nossa.

Em vez de formarem uma cronologia lógica, o contemporâneo e o antigo entrelaçam-se nesses trabalhos. Os tempos e as culturas atravessam caminhos, com lucidez, na exploração da natureza do lugar, criando um patchwork de imagens, que apresenta cumulativamente perspectivas sobre o lugar específico e o ambiente sociopolítico envolvente. Em From the Sea havia outra “cena” envolta no estrépito e no fragor das ondas na costa, de homens brancos envergando fatos a arrancar crianças aborígenes aos respectivos pais. Essa foi uma seção que Jill fez “diretamente”, perguntando primeiro às crianças e seus pais se quereriam encenar esta parte horrífica da sua história. Num estranho entrecruzamento de material cultural e dos tempos, as crianças pequenas não tinham consciência das “Gerações roubadas” e, em vez disso, julgavam que os homens de fato escuro (contemporâneo) e óculos de sol eram os Homens de Negro do recente filme e achavam-nos legais! Por isso, as crianças ficaram absolutamente imperturbáveis ao verem o seu cerimonial de dança em volta da fogueira interrompido por esses homens, que os levavam embora pelas dunas de areia.

A obra The Crossing [que poderia chamar-se, em português, A Travessia], de Jill Orr, foi descrita em material publicitário do Festival Mildura de 2007 como “uma expressão contemporânea do espírito do lugar que tece e reconhece, simbolicamente, histórias que se sobrepõem”. A reunião de histórias indígenas, as perspectivas coloniais britânicas e outras histórias (de) imigrantes, essa performance ao vivo in situ explorou os múltiplos extratos culturais e procurou representar as histórias sub-representadas passadas e presentes de Lock Island, no rio Murray junto à cidade de Mildura. As personagens coloniais que Jill identificou para esse trabalho (a enfermeira, o padre missionário e a freira) terão todas, historicamente, tido contato próximo com o povo aborígene. Jill imaginou a personagem do missionário verborreico, no processo inicial de responder ao lugar de Lock Island. Depois, nas pesquisas, descobriu haver histórias significativas de missionários na região de Mildura, confirmando o seu “processo invertido”. Pelo contrário, a personagem da enfermeira (bush nurse) foi despoletada através da documentação da presença colonial em Mildura. Estas enfermeiras (que, tanto quanto Jill sabia, nunca tinham sido representadas em performance) foram pioneiras no trabalho em proximidade com os aborígenes, no cuidado dos doentes (muitas vezes com doenças trazidas pelos colonizadores) e como parteiras. Os Latje Latje mais velhos contam histórias dos seus nascimentos, e dos das mães e avós, nos chãos térreos das cabanas.

Nesse trabalho, as temporalidades voltam a ser apresentadas em sobreposição: o homem malaio imediatamente abaixo do missionário colonial expressa uma história hodierna de imigração e dissociação do lugar, a mulher colonial (eu) e os filhos são transportados pelo rio num barco a motor. Os jovens Latje Latje executaram danças “tradicionais”, bem como uma versão hip-hop da sua história do rio, representando a atual relação contemporânea com esse lugar. Essas anomalias quebram as expectativas do público duma narrativa historicamente precisa e sugerem que esses múltiplos passados continuam a invadir o presente.

 

Tony Yap em The Crossing, 2007. Fotografia de Naomi Herzog e Malcolm Cross para Jill Orr

 

Ao trazer um público a um lugar, a experiência incorporada dos membros do público naquele momento coexistem igualmente com as histórias que a performance evoca. Em The Crossing, Jill previu que o processo físico dos membros do público de andarem pela ponte para Lock Island, depois, de lugar em lugar à volta da ilha, poderia encorajá-los a “despirem algumas das suas capas sociais”, a centrarem-se calmamente naquele momento, de modo a entrarem percentualmente naquele lugar e abrirem-se para receber a teatralidade da performance. Uma grande parte da obra consistia na caminhada física efetuada pelo público, uma negociação corpórea do terreno, sentado na areia junto ao rio, etc. A forma (tanto geográfica como temporal) entre os atores convidados/ as cenas permitiam a observação pública do local. O público, quase completamente Koori, na última noite, incluindo mulheres mais velhas para quem andar já envolvia algum esforço, conferiram uma abertura, silêncio e atenção muito particulares à performance e à experiência de andarem entre lugares, sem retorno ao modo social. Os artistas executantes sentiram essa atenção e o lugar parece quase fazer eco com este enfoque auditivo onde Jill recorda uma “partilha vibratória”.

Nesta última noite de The Crossing, aconteceu algo não ensaiado. Na cena final apoteótica, todos os executantes convergem numa grande praia junto ao rio: uma cerimônia dançante dos Latje Latje é interrompida pelo missionário palavroso, o imigrante asiático perdido irrompe na cena, um espírito europeu da terra dança entre as crianças Koori, entra a freira e atira um balde de água sobre o padre, para o calar, e a enfermeira e a mãe empurram uma cadeira de rodas vazia pelo caos adentro. Até aqui foi ensaiado. Depois, Peter Peterson, o caçador Latje Latje, que tinha estado escondido a observar nas sombras junto ao rio durante a atuação, atormentado pela retórica insistente e ruidosa do missionário, saiu para a luz e “lancetou” o missionário e, de seguida, com um gesto e um som, parou a freira e as outras personagens coloniais nos seus papéis. Peterson, com essa ação, paralisou efetivamente o tempo, reclamando o momento e o lugar para seu povo, como se ele nos fizesse “desaparecer” a nós, os tipos brancos, decapitando simbolicamente todos os intrusos institucionais da colonização. Ao parar o tempo, é como se ele pudesse rescrever a história: “se vocês não estivessem aqui, o que poderíamos ter feito, enquanto povo indígena, neste lugar?”

Paradoxalmente, a ação violenta improvisada de Peterson pareceu trazer paz à cena, não apenas em termos de encenação, mas em termos “reais”, como se todos tivéssemos participado num ritual de reconhecimento e/ou reclamação e, assim, curando de certa forma o passado, assentando algo que estava por resolver, uma restituição há muito devida. Pouco depois, fez um gesto curativo sobre o corpo do missionário com folhas fumegantes de eucalipto da fogueira e todos continuámos as nossas trajetórias. Depois de o público ter avançado para um último local, onde os jovens executavam uma espécie de coda: a dança do rio, na qual cada totem é executado em conjunto como aspectos unificados do rio, Peter ficou para trás e completou o seu ritual de defumação da praia com os ramos, limpando e acalmando toda a zona.

 

Peter Peterson em The Crossing, 2007. Fotografia de Naomi Herzog e Malcolm Cross para Jill Orr

 

Alegadamente, Peter Peterson terá dito antes a Jill que iria “matar” o missionário na performance e que ela (Jill, no papel de enfermeira) também deveria paralisar depois de atirar o balde de água. Jill entendeu ser como se Peterson tivesse de a testar: para ver se ela era genuína nos seus gestos de convite ao contributo do povo Latje Latje para a obra; se ela queria mesmo afetar mudanças nas relações entre pessoas e lugar.

O potencial do elemento ritual (a possibilidade da mudança ou transcendência) está inscrito na estrutura da obra de Jill. Os artistas que ela convidou para colaborarem em The Crossing foram todos eles pessoas que ela considerava estarem envolvidas em práticas que “se ligam à terra” e abraçam a potencialidade da transcendência (cerimoniais/ danças indígenas, Butoh, improvisação, atuação e trabalho vocal que leva a áreas desconhecidas). Esses artistas foram selecionados pelo interesse que partilhavam pela ampliação para lá dos aspectos técnicos físicos da execução do movimento/ som vocal, etc., para lutar por estados de “ser para lá do material” ou estados de ser que “não estão sujeitos às limitações do universo material” (que é como o dicionário australiano Australian Concise Oxford Dictionary descreve “transcendência”), abrindo caminho ao espírito que se move através do corpo. Dentro da estrutura da performance, que Jill compara a um ritual e que possibilita o momento de transcendência, tem de estar a combinação de lugar/ Local, povo/ artista(s) e a eventualidade de algo desconhecido acontecer à medida que a performance “se liga” ou está em curso. Nas palavras de Jill:

 

A estrutura tem de ser suficientemente definida para que exista um fluxo evidente de ações, mas tem de ser suficientemente aberta para (me) ser algo assustador [risos] e para que algo desconhecido surja dessa interação entre lugar e estrutura ou ritual da performance. É isso que confere poder ao momento performático transcendente ao vivo. Ou, para usar outra palavra, é aí que reside a comunicação.

 

Pergunto a Jill: “Então é essa a razão para se fazer uma obra com base num lugar?”

Ela responde:

 

A razão está em permitir que várias perspectivas diferentes sejam vistas num mesmo lugar, nas mesmas perspectivas temporais e culturais que se desenvolveram a partir da história e que continuam a ser encenadas no presente. São essas coisas que impedem ou permitem que as pessoas vivam respeitando-se mutuamente.

 

A minha própria prática na dança, a que eu chamo locating (localização), visa o relacionamento com um lugar através da percepção e da improvisação, para articular uma relação entre o meu corpo e aquele determinado local. As obras performáticas que executo neste processo de interligar o empenho em representar o meu desejo de me “enquadrar” num ambiente e de, simultaneamente, expressar o meu constrangimento pelo fato corpóreo de ter pele branca neste país. Perceber que a minha presença neste país se deve à exploração do colonialismo e é responsável pela expropriação e injustiças constantes contra os povos indígenas, perturba-me profundamente [Nota da Tradução: a artista usa o termo unsettle, que, por um lado, significa precisamente “perturbar, inquietar”, por outro lado, encerra em si a negação (un-) de settle, enquanto fixar-se, estabelecer-se, colonizar], pelo que decidi não evitar esta temática nas minhas obras relativas a lugares na Austrália. As minhas representações dos vários níveis históricos de um local estão, pois, dispostas segundo esta lente pós-colonial. Abordo o lugar em termos localizados e específicos, e concebo-o como um microcosmo que sirva de referência a todo o continente australiano e às respectivas tensões sociopolíticas. As minhas obras tentam reconhecer a história colonial, já que a cor branca da minha pele faz com que eu tenha de incluir essa história como parte da minha identidade.

Qualquer que seja o lugar australiano com que esteja a trabalhar, incluindo espaços urbanos contemporâneos e/ou espaços interiores, tenho consciência e procuro atrair a atenção do público para o lugar antigo aborígene que, acredito, ainda existe por baixo, antes e “através” da arquitetura. A minha obra ao vivo Blasted Away (2005) foi executada na Queen’s Bridge, em Melbourne, onde até aos anos 80 do séc. XIX uma parede de pedra atravessava o rio Yarra, formando uma cascata. Tinha procurado um lugar no bairro empresarial de Melbourne que fosse significativo tanto para a história indígena como para a história europeia e encontrei as quedas de água na forma de um enfeite num mapa antigo de Melbourne na sala dos mapas raros na biblioteca estatal. Pesquisando mais, percebi que as quedas de água foram um importante ponto de travessia e de encontro para os clãs da nação Kulin, além de terem estado por detrás da principal motivação das decisões de Batman e de Faulkner de se estabelecerem aqui, devido à separação entre a água salgada e a água doce a montante. Contudo, menos de duas décadas depois da ocupação europeia, o rio já estava, de qualquer forma, demasiado poluído para se poder beber a água, pelo que a cascata foi rebentada [Blasted Away] com dinamite nos anos 80 do séc. XIX de modo a permitir a navegação rio acima.

 

Gretel Taylor, Blasted Away, 2004. Fotografia de Christian Alexander

 

Fiz várias performances de movimento em Queen’s Wharf, este primeiro lugar de fixação das gentes de Batman e de Faulkner, na “descoberta” do lugar que haveria de se tornar na cidade de Melbourne. Envergando um fato formal contemporâneo e saltos altos, a minha dança fazia intermitentes referências a características arquitetônicas e ocorrências incidentais do ambiente urbano atual (degraus de basalto, ancoradouros, arranha-céus do outro lado do rio, um banco de rua, semáforos, elétricos a passar e peões a falar ao celular), bem como a cascata na minha imaginação, que ali existira em tempos. Ao lado de uma placa comemorativa do significado deste lugar para a nação Kulin e os colonos europeus, em termos ofensivamente neutros, dancei a violência que eu sentia estar a faltar no memorial. A obra terminava com a projeção de uma imagem de vídeo e o som de uma cascata na ponte como a minha versão de um memorial do local que existiu e, de algum modo, ainda existe neste lugar.

Referindo arbitrariamente múltiplas histórias além de referir o momento atual, eu esperava revelar a onipresença das estórias que este lugar engloba e propor que, intencionalmente ou não, elas informam as nossas identidades personificadas atualmente. O público fica ciente do tempo como sendo fluído, transitório, ainda que incorporado no lugar. O passado está implicado no presente e no futuro; o presente está inextrincavelmente ligado ao passado e, assim, até certo ponto, o presente é responsável pelo passado. Reina Lewis e Sara Mills, editoras de Feminist Postcolonial Theory: A Reader afirmam:

 

Tem sido difícil lidar, de formas construtivas, com a ligação entre a exploração do passado e a afluência do presente e, naturalmente, os feitos dos colonos do passado e da própria pessoa… A culpa dos brancos é uma das respostas menos produtivas a esta história. (2003, p.7)

 

Questiono-me: posso admitir sentir esta culpa e usá-la “construtivamente” (ou, pelo menos, criativamente)?

 

Still Landing, videoinstalação, por James Geurts, 2006

 

Inspirando-me em relações que desenvolvi ao viajar pelo Northern Territory, consegui permissão dos proprietários para filmar um vídeo na sua região (Purtuiu, a noroeste de Yuendumu, a aproximadamente 400 km a noroeste de Alice Springs). Estas mulheres idosas não só me acolheram, como deram um contributo inestimável ao projeto, ao permitirem que as suas canções fossem gravadas e usadas na trilha sonora. Acabando por assumir a forma de uma instalação em três telas, Still Landing (2007-08) explora a relação experiencial momento a momento do meu corpo com o ambiente desértico por entre referências por via de imagem e som às histórias colonial e aborígene. Numa colagem coreografada de imagens não lineares, assumo diversas aparências: uma criatura desprezível do ramo imobiliário, em roupas modernas, dividindo e domesticando a terra, uma marionete germânica tradicional literalmente “atirada” para a terra vermelha do deserto, uma “ode a Miranda’ (a menina desaparecida de Picnic at Hanging Rock) e eu mesma, mal vestida, como Napangardi, o nome que me deram os meus amigos Warlpiri, tentando ouvir e responder a esta região e aos povos indígenas nela, no momento presente. Estas personagens, que representam aspectos da minha própria identidade, além de refletirem a história da região, são encaradas como se cada uma respondesse diferentemente às vozes das mulheres Warlpiri que emanam da terra. Contudo, as distinções entre as personagens esbatem-se no final, congregando-se numa miscelânea de disfarces imundos sobre o meu corpo fatigado, sugerindo o entrelaçamento de histórias e as contínuas implicações que englobam a minha identidade/ o meu corpo enquanto mulher australiana branca nos dias de hoje. Passado, presente e futuro entretecem-se mutuamente, estão intrinsecamente ligados, ainda que sejam irreconciliáveis. A dança reside na sua própria impossibilidade; é uma tentativa de atingir o inatingível: ficar-se completamente incorporado no momento presente, localizado, estabelecido, integrando-se, de algum modo, em tudo o que ali aconteceu antes.

 

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Still Landing cena do vídeo, por James Geurts, 2006

 

A incursão do tempo no tema do lugar, no meu trabalho, visa, sem presumir ter conseguido, uma incorporação da minha identidade como mulher australiana branca no momento atual: “um presente em devir”. Concordo com Jill Orr quando diz: “Se eu ao menos eu puder possuir as imperfeições do passado que herdei e as imperfeições das minhas próprias ações passadas e representá-las performaticamente, de alguma forma, isso terá de contribuir para um mais profundo entendimento do onde nos encontramos hoje”.

 

Bibliografia

Eidelson, Meyer, 1997, The Melbourne Dreaming: a guide to the Aboriginal places of Melbourne, Aboriginal Studies Press, Canberra.

Lewis, Reina e Mills, Sara (ed.), 2003, Feminist Postcolonial Theory: A Reader, Routledge, Nova Iorque.

Muecke, Stephen, 2004, Ancient and Modern: time, culture and Indigenous philosophy, University of New South Wales Press, Sydney.

Orr, Jill, 2009, <http://www.jiillorr.com.au/>.

Orr, Jill. Entrevista de Gretel Taylor, Melbourne, 29/6/2009.

Otto, Kristin, 2005, Yarra, Text Pub., Melbourne.

The Australian Concise Oxford Dictionary, 2004, Oxford University Press, South Melbourne, 4.ª Ed.

 

Gretel Taylor

Artista performática independente, acadêmica e investigadora. Formada em Estudos Performáticos pela Faculdade de Artes e Comunicação da Universidade de Victoria (Austrália).

 

[tradução do inglês por Susana Canhoto]

 

Link para o texto original:

<http://artsonline.monash.edu.au/performance/files/2012/09/proceedings-taylor-the-omnipresence-of-time-in-place-ttp-conference.pdf>

 

 

© 2013 eRevista Performatus e o autor

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