Do Perigo à Ascendência: Notas Relativas a Carolee Schneemann

 

Carolee Schneemann, Fuses [Pavios], 1964-67. Cortesia de Carolee Schneemann

 

Recentemente, depois de passar vários dias seguidos de cama, com gripe, fui ficando cada vez mais absorvida em pensamentos que, devido a seu caráter aleatório e a sua qualidade de desconexão, pareceram mais reveladores e significativos do que os da minha vida de ação.

Em 1967, quando eu estava nascendo, Carolee Schneemann finalizou Fuses [Pavios], um filme a respeito da troca erótica entre a artista e seu amante de longa data, o compositor James Tenney. Em seu espaço autorreflexivo e indeterminado, Fuses é semelhante à minha cama de doente. A cineasta diz, um quarto de século mais tarde: “Eu queria ver se a experiência do que eu via teria qualquer correspondência com o que eu sentia – a intimidade do ato de fazer amor” [1].

Não há operador de câmera; em vez disso, um gato empoleirado no peitoril da janela praticamente registra a “ação”. [2] Fuses mostra o toque da artista em lugares múltiplos, incluindo o do material do filme em si: furando, arranhando, colorindo a mão. Fuses é o sonho máximo, o hiper-real, o totalmente etéreo que é cheio demais de claridade para não existir de modo concreto. É o ato da linguagem da evolução própria, o espaço da arquitetura própria e a ausência de fronteiras do próprio clímax.

Quanto mais compartilho a euforia de Fuses, mais animado o filme se torna: desferindo estocadas, arfando, passando por cima da superfície e atravessando a massa, respirando, genitalizando, olhando com olho de gato. Porque Fuses existe em dobras, escondendo, revelando e se repetindo; é fácil para mim perder o pé ao lembrar-me dele. Assim como a minha cama de doente, é mais o sentido do filme que está comigo, em vez de uma sequência de causa e efeito. Fico imaginando se a cena da bunda – câmera de frente para a bunda, bunda conectada a pau, pau, xota, transa, Carolee do outro lado da bunda, não a dela, a dela – na verdade está espaçada entre os vinte e dois minutos do filme. Ou será em fantasia que os músculos da bunda mergulhada em vermelho se contraem, relaxam, lançam sombra e saciam de maneira tão infinita?

Mulheres bonitas com cabelo preto comprido: eu vejo os seus olhos, você não me enxerga, você se mexe, desliza para trás e se aprofunda com cada vez mais liberdade na sua criação. Agora, o homem da bunda lhe dá prazer com a boca e a língua. Você atinge o ponto mais distante no seu sonho. Eu experimento o nirvana do seu orgasmo nessa cunilinguística radical. Kitch, o gato, olha ao redor. [3]

Assisti a Fuses pela primeira vez no final da década de 1980; gostei do filme, mas senti que seu contexto e seu impacto eram do passado. Apesar de Fuses ser uma obra importante a ser assistida em termos de se familiarizar com histórias diferentes – cinema experimental, sexualidade e o corpo na arte e prática feminina –, não se aplicava diretamente a mim como uma jovem artista, mulher, vinte anos depois. Na época, eu estava lendo muita teoria de cinema feminista, sendo que a vasta maioria não levava em consideração séria as imagens sexuais explícitas produzidas por mulheres, assim relegando tais filmes à zona de fronteira.

No entanto, Fuses mudou com o tempo, tornando-se cada vez mais relevante para minha vida a cada exibição. Minha reação visceral intensificada me levou a acreditar que a minha capacidade de experimentar o filme de maneira mais completa estava ligada de modo intrínseco à liberdade sexual. A experiência de vida tinha me ensinado que, de fato, depois de décadas, um filme experimental da década de 1960, de uma mulher que se refestelava em seu próprio prazer erótico, podia ser subversivo, isso sem mencionar embriagante. Também aprendi que coisas que eu tomava por certas quando tinha vinte e poucos anos – como, por exemplo, partir do princípio de que papéis restritivos para mulheres eram infortúnios do passado –, na verdade eram preocupações prementes até hoje, e que eu só podia pensar assim, em primeiro lugar, devido à luta contínua de mulheres mais velhas do que eu. Como artista inspirada por questões da articulação da sexualidade no corpo, finalmente aceitei minha dívida para como Carolee Schneemann.

Em 1968, pouco depois do lançamento de Fuses, a New York Radical Women [Mulheres Radicais de Nova York] organizou a primeira grande manifestação do Movimento da Liberação Feminina no concurso de Miss América. As manifestantes jogaram fora “produtos femininos”, entre eles panos de prato, blocos de estenografia, cintas-ligas e sutiãs, em uma “Lata de Lixo da Liberdade”. Robin Morgan, uma das organizadoras, escreveu a respeito do evento histórico: “Este último foi traduzido pela mídia controlada pelos homens como o ato totalmente inventado de ‘queimar sutiã’, um não acontecimento sobre o qual eles se fixam constantemente desde então, para evitar apresentar as verdadeiras razões para o descontentamento crescente das mulheres” [4]. Apesar de as mulheres estarem na realidade fazendo uma escolha entre usar sutiã ou não, a “queima” chegou de outro lugar.

Tachar as feministas de “queimadoras de sutiã” se embrenhou tanto na memória coletiva que a falta de informação perpetuada pela mídia se transformou em “verdade histórica”. Referências, tanto laudatórias como derrogatórias, às “queimas de sutiã da década de 1960” são onipresentes na cultura popular contemporânea, vistas em jornais, revistas e na TV, no rádio e na internet [5]. Raramente são qualificadas com textos a respeito de sua origem. Por que essa imagem específica supera todas as outras? Apesar de um grupo de mulheres ao redor de uma fogueira cheia de sutiãs não ser necessariamente prejudicial e poder até ser uma cena fortalecedora, a imagem é redutora. E, em termos de qualquer imagem única que simbolize a recuperação feminista do corpo, preciso perguntar: “Por que não ler da vagina?”. As feministas eram aquelas mulheres que “desenrolavam pergaminhos da vulva quando queriam falar o que pensavam”.

Na imagem mais reproduzida de Carolee Schneemann a artista está “no meio da ação”; ela está nua, suja de tinta, meio agachada, com um braço estendido e segurando um texto, o outro braço para baixo, segurando a outra ponta do texto que vai puxando da vagina. Ela está apresentando Interior Scroll [Pergaminho Interior, 1975], um ato desencadeado pela busca de meios criativos que pudessem ser usados como resposta à rejeição de suas obras cinematográficas por uma teórica do cinema feminista de destaque. Tal “diálogo” sublinha os conflitos dentro do feminismo e como, na época, o corpo exposto representava ameaça igual a mulheres e a homens. Mas, por um lado, o debate relativo ao corpo (se este deve ser tornado visível ou não) hoje é coisa do passado; por outro, principalmente para artistas de cor, é tão vital como nunca.

 

Carolee Schneemann, Eye Body (Thirty-six Transformative Actions) [Corpo Olho (Trinta e Seis Ações Transformadoras)], 1963. Fotografia de Erró. Cortesia de Carolee Schneemann

 

“As feministas eram aquelas mulheres que se deitavam com as cobras”.

Em 1963, cinco anos antes da “queima de sutiã”, Carolee apresentou Eye Body (Thirty-six Transformative Actions) [Corpo Olho (Trinta e Seis Ações Transformadoras)] [6] na privacidade do seu estúdio. A fotografia reproduzida mostra a artista no chão, nua, com o corpo pintado, uma linha dividindo seu rosto em dois, braços erguidos sobre a cabeça, olhos semicerrados encontrando a câmera, uma cobra serpenteando logo acima de sua massa de pelos púbicos, outra entre seus seios. A artista com as cobras me maravilha desde que a vi pela primeira vez, quando adolescente. Apesar de eu nunca ter perguntado para mim mesma precisamente por que a imagem é tão poderosa, acho que é porque faz Carolee parecer muito corajosa. Não consigo me imaginar na posição dela e tenho medo de que, de algum modo, eu também seja forçada a me deitar com cobras. Ao mesmo tempo, a presença do medo, ou de algo que inspire medo, me fascina. Foi só ao escrever este texto que percebi que as cobras não são necessariamente reais, que o meu próprio medo de ter cobras serpenteando em cima de mim fez com que eu não duvidasse, nenhuma vez, de sua veracidade.

Yves Klein fez história da arte em uma galeria de Paris quando pediu a colaboração de “modelos femininas vivas” para pintarem a tela dele colocando seus corpos cobertos de pigmento azul por cima dela. [7] Jackson Pollock foi festejado por introduzir um novo nível de aspecto físico no processo da pintura, tornando-se conhecido como o artista primário da “Pintura de Ação”. No entanto, foi só em anos recentes [8] que as redefinições radicais de eu e outro, de artista e modelo, e de objeto e assunto propostas por Carolee Schneemann receberam mais do que uma nota de rodapé na história da arte ou na história do movimento feminino.

 

Carolee Schneemann, Up To And Including Her Limits [Até e inclusive os Limites Dela], 1973-76. Cortesia de Carolee Schneemann

 

Em sua performance Up To And Including Her Limits [Até e inclusive os Limites Dela], em Berkley, em 1973, Schneemann, nua, trabalhou oito horas por dia, durante quatro dias, suspensa por correias. Erguendo-se e baixando-se, a artista “pintou” a tela, que cobria as paredes e os pisos da sala, com marcas abstratas e o registro de pensamentos aleatórios. A peça consistia de resistência, força e transformação. Havia uma parede de participação para que outros escrevessem seus comentários. Carolee observa: “Uma comunidade espontânea se desenvolveu em torno da performance” [9]. Havia gente que a esperava sair para um intervalo com piqueniques em um lago próximo. Nessa e em outras obras, Schneemann desafiou com ferocidade a concepção da artista como pessoa ativa no processo artístico, e a modelo como pessoa passiva. Ela é simultaneamente a modelo nua cujo corpo exposto é o ímpeto da expressão criativa (parte de uma tradição do nu na arte) e a artista que molda este corpo em sua própria criação, assim conferindo sua vontade sobre ele.

Cada uma das “obras acabadas” de Carolee se sustenta como um objeto singular de grande intensidade, ao mesmo tempo que trava diálogo ativo com trabalhos anteriores e subsequentes. Tome como exemplo Infinity Kisses [Beijos de Infinidade, 1982-1986]. [10] Apesar de a sequência de cerca de 130 fotografias da artista e Vesper, seu gato de sete anos, “se agarrando” ser uma obra complexa de referências simultaneamente internas e externas, é primário, na experiência desse autorretrato, a consciência da vida, do trabalho e da pessoa da artista retratada. Infinity Kisses é arte-como-consciência-intensiva-das-particularidades-de-estar-viva sem ser “artística”; Vesper e Carolee compartilham suas vidas ritualísticas (em que a intimidade exige um grau de privacidade), mas nestes momentos estão contentes de garantir uma maneira em que outros podem ter acesso à sua coexistência. A sensação aqui de ter recebido a capacidade de olhar de repente lembra o filme de vinte anos antes. É precisamente um instantâneo de “a artista na vida”, ao mesmo tempo que é uma obra de arte crítica de procedimento deliberado e informado.

Há um ano, Carolee veio exibir seus filmes e se apresentar no campus onde eu estava concluindo o meu mestrado em Belas Artes. [11] Na performance, ela projetou slides, borrou o rosto e o corpo com substâncias, falou sobre suas experiências, observações e ideias, e durante tudo isso explicou teorias de gênero sexual, sexualidade e arte. Há muitos anos eu estava acostumada a olhar para Schneemann – em Fuses, um filme mudo, e em fotografias de performances –, e agora eu percebia que ouvir a artista era tão essencial. Havia uma noção de que ela, por ser uma anomalia tal, poderia colocar em questão a identidade de grupo do público e colocar as hierarquias de poder da instituição em perigo.

A ironia da presença de Schneemann na universidade foi que, apesar de ter sido recebida como convidada, diferentemente dos artistas com quem ela tinha amadurecido, que agora recebiam pacotes de aposentadoria polpudos desta e daquela instituição, ela não contava com boas-vindas de longo prazo. Apesar de ser tão claramente uma artista de ponta neste meio século, Schneemann tem sido mantida a certa distância pela maioria de seus colegas. Será que é em parte devido a este distanciamento que Carolee Schneemann tem relevância persistente e presença sustentada, que sua obra madura parece tão jovem?

Em 1968, ela escreveu: “A vida do corpo tem expressão mais variada do que uma sociedade sexualmente negativa é capaz de admitir. […] Em certo sentido, eu fiz do meu corpo um presente para outras mulheres: devolvendo o nosso corpo a nós mesmas. As imagens inesquecíveis da dançarina do touro de Creta – mulheres alegres, livres, com o peito desnudo, saltando precisamente do perigo à ascendência – guiaram a minha imaginação” [12]. A visão da artista de “mulheres com o peito desnudo, saltando precisamente do perigo à ascendência”: será que Carolee Schneemann pode ser a fonte das referências de hoje às feministas que queimam sutiãs? Ela, de todo o modo, é a fonte de sexualidades que não vamos ver “No Cinema”, mas que veremos através dos olhos do gato. Ela conhece a promessa de uma transa ou de um amasso… ou de uma revelação.

 

Trinta anos depois, Carolee Schneemann, muito obrigada!

 

 

NOTAS

[1] Schneemann, em entrevista a Andrea Juno, na publicação Re/Search: Angry Women, n. 13, organizada por Andrea Juno e V. Vale. São Francisco: Re/Search Publications, 1991, p. 70.

[2] Schneemann e Tenney se filmaram e posicionaram a câmera de mola Bolex 16mm, com operação no modo automático, para filmá-los  no “cenário”.

[3] O gato em Fuses foi figura central na vida da artista durante dezenove anos e meio.

[4] Robin Morgan, Going Too Far. Nova York: Random House, 1977, p. 65.

[5] Em um site da internet está escrito: “Claro, a década de 1960 ficou famosa por suas queimas de sutiã”. Ver em: <http://www.uselessinformation.org/brassiere/index.html>.

[6] A imagem está em Lucy R. Lippard, Overlay: Contemporary Art and the Art of Prehistory. Nova York: Pantheon Books, 1983, p. 66.

[7] A obra de 1960 é mencionada de várias maneiras: Anthropometrics of the Blue Period, Anthropometrie Performance e Blue Anthropometrics.

[8] Na retrospectiva da obra de Carolee Schneemann de 1996/1997, Carolee Schneemann: Up To and Including Her Limits, organizada por Dan Cameron para o New Museum of Contemporary Art.

[9] Carolee Schneemann em entrevista por telefone com Kate Haug, 1 de março de 1998.

[10] Carolee Schneemann: Up To and Including Her Limits, org. de Kathy Brew. Nova York: The New Museum of Contemporary Art, 1996, p. 44. Apesar de a obra estar retratada no catálogo da exposição, o grande impacto de Infinity Kisses sobre mim está ligado ao fato de ter me deparado com ela na parede do estúdio da artista.

[11] No início da década de 1990, fui assistente de Maria Beatty em diversos projetos de vídeo feitos em colaboração com Schneemann, entre eles Imaging Her Erotics e Interior Scroll: The Cave (1995). Isso me deu acesso à artista em ambientes sem dúvida não institucionais.

[12] Em Lucy R. Lippard, op. cit., p. 67. Lippard faz citação de Carolee Schneemann, More Than Meat Joy. New Paltz: Documentext, 1979, p. 164.

 

 

PARA CITAR ESTA PUBLICAÇÃO

KOEBEL, Caroline. “Do Perigo à Ascendência: Notas Relativas a Carolee Schneemann”. Trad. de Ana Ban. eRevista Performatus, Inhumas, ano 2, n. 9, mar. 2014. ISSN: 2316-8102.

 

Tradução do inglês para o português de Ana Ban

Revisão ortográfica de Marcio Honorio de Godoy

Edição de Hilda de Paulo

© 2014 eRevista Performatus e a autora

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