O Imaginário Ou A Nadificação Do Mundo Por Jean-Paul Sartre

 

Traduzido do francês para o português por Jacqueline Siano.

O texto original foi gentilmente cedido por Aurélia Dudognon para a eRevista Performatus.

 

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Jean-Paul Sartre é um escritor, romancista, filósofo e ensaísta francês, nascido em 21 de junho de 1905 e falecido em 1980. Encontra em Simone de Beauvoir alguém para dividir sua vida, a paixão pela filosofia e o engajamento político de tendência revolucionária. Sartre é célebre por ter introduzido, na França, a filosofia existencialista, a qual ele havia descoberto em sua primeira temporada na Alemanha. Suas obras passam, então, à abordagem do conceito de humanismo e ao desenvolvimento de um pensamento diretamente vinculado à fenomenologia, colocando a consciência no centro de suas análises. A náusea (1938) e O ser e o nada (1943) são, incontestavelmente, suas obras maiores. Ambas abordam, notadamente, a ideia de “nadificação do real”, e tratam dos fundamentos do existencialismo. A filosofia de Sarte evidencia a questão da existência, mais precisamente, a maneira como “um ser pode ser”, ou ainda, a liberdade do ateísmo. Com efeito, segundo o autor, o homem se constitui, por suas escolhas, numa permanente construção de si mesmo. A imaginação, publicado em 1936, marca um giro no pensamento sartriano; trata-se efetivamente de um primeiro trabalho sobre a ideia de que o imaginário é uma ruptura com o real. O autor continua sua reflexão em uma segunda obra, intitulada O imaginário, publicada em 1940, mais completa do que a anterior. Sartre mergulha, então, no âmago da consciência, procurando investigar o processo de apreensão do real, informado, ele mesmo, pela via da imaginação ou da percepção do mundo real, onde a consciência é “um reflexo reflexivo”. Sartre aborda igualmente a obra de arte, que é relativamente problemática em sua especificidade mesma. Ele se debruça, mais precisamente, sobre o fenômeno musical e, a partir de então, procura esclarecer o modo como a consciência o integra.

 

A consciência

 

As diferentes modalidades da consciência

Sartre se lança, então, ao estudo aprofundado da consciência, assim como de seu funcionamento. Ele distingue três tipos de consciência, como lugar onde podemos fazer sua experiência: a consciência perceptiva, a consciência reflexiva e a consciência imaginante. A percepção é a consciência que nos permite observar os objetos do mundo real; esta é uma primeira chegada, uma primeira apreensão do mundo e dos objetos que o constituem. O objeto tratado por nossa consciência perceptiva não é, contudo, percebido em sua totalidade, mas conforme certos pontos de vista. Assim, dessa primeira apreensão, deriva um lento aprendizado do objeto, sempre submetido à nossa consciência perceptiva. Existe uma infinidade de relações entre as coisas do mundo, ou seja, de que uma coisa pode ser percebida de múltiplas maneiras segundo diversos pontos de vista durante nossa observação. Nosso conhecimento do objeto percebido se constitui em função dessas relações. Ainda que ilimitadas, nos é impossível recorrer completamente a todas as relações que podemos manter com o objeto estudado. A coisa percebida se oferece progressivamente a nós, o que nos possibilita, a cada nova observação, a descoberta de novas características a ela concernentes. Finalmente, Sartre fala de uma forma de passividade da consciência, já que ela nada mais faz do que lidar com o objeto que lhe é dado, de uma maneira específica. A consciência reflexiva se debruça sobre “o modo como o objeto é dado” [1], e sobre a certeza das informações extraídas do objeto.

 

A consciência imaginante

A consciência imaginante é o objeto sobre o qual Sartre focaliza sua atenção, já que é ela que nos oferece a possibilidade de imaginar. Nossa consciência aplica às imagens uma forma de “afetividade” [2]. Sartre explica que o ato da imaginação é particularmente regulado por certas “reações afetivas” [3] e que ele reflete a maneira pela qual percebemos o objeto em questão. A imaginação é comum a cada um de nós, no entanto, ela se funda no âmago de nossa própria emotividade; assim que concebemos um objeto, ele é associado aos sentimentos. Sartre afirma que não podemos, todavia, “ter” realmente o objeto detido dentro de nossa consciência. O objeto percebido ou imaginado está fora de nós; unicamente a ideia do objeto é integrada à nossa consciência e não o objeto ele mesmo. Sartre explica, então, que é necessário se afastar da concepção inversa, que consiste em pensar que a ideia do objeto é sua própria realidade. Sartre considera a consciência como a primeira manifestação da liberdade: ela nos permite fazer uso de nossa imaginação como bem queremos, de fazer aparecer-nos a imagem ou o objeto que desejamos, esteja ele ausente, ou seja, mesmo, inexistente.

Sartre distingue claramente a percepção da imagem produzida por meu juízo. A imagem, produto da consciência imaginante, não é a realidade, ela não é o objeto que representa: ela não passa de uma relação constituída entre o observador e o objeto de sua experiência. O autor denuncia e revoga o estatuto que nós conferimos habitualmente à imagem da consciência. Com efeito, às vezes temos a impressão de que essas imagens guardam o ar mais real do que a natureza, embora elas sejam um produto de nossa consciência. Sartre insiste sobre a ideia de que a imaginação implica uma imagem totalmente diferente da realidade, pois não temos como fornecer qualquer informação verdadeira sobre o mundo real, consultando a imagem mental.

De acordo com Sartre, a consciência imaginante está submetida, de certa maneira, à sua essência ou à sua corrupção; os objetos de que ela se apropria podem se modificar. Inversamente, o objeto percebido não depende de nossa consciência. O intermediário entre o objeto real e o objeto imaginado é chamado por Sartre de analogon: é a matéria da imagem, é o “instrumento” que utilizo para dar conta do objeto em minha consciência. Essa “matéria”, utilizada pela consciência imaginante pode, por exemplo, ser uma tela de pintura. Sartre definiu o analogon como um “objeto material que serve para a manifestação do objeto imaginado” [4]. A função imaginante está baseada, assim, nessa matéria que Sartre chama de analogon [5]. Como mencionado anteriormente, para o autor, a consciência imaginante produz imagens associadas àquelas já conhecidas. Para formar uma imagem, a consciência extrai todo o conhecimento já adquirido, assim que se abeira dos objetos do mundo real, pelo viés da percepção. O conhecimento é o resultado de um trabalho que se opera diretamente sobre o objeto real. O ato de percepção, ou a consciência perceptiva, procura reduzir as características do objeto estudado. Esta é um procedimento que se realiza “progressivamente”: o objeto se “dá” [6] à nossa consciência e aproveitamos o máximo das informações que serão utilizadas pela consciência imaginante.

Existem dois tipos de objetos que podem ser atribuídos à consciência imaginante: os objetos ditos “intemporais” e os objetos “temporais”. Sartre explica que o objeto “intemporal” [7] concerne, particularmente, aos objetos da fantasia que não existem no mundo real. Os objetos irreais não estão submetidos a “nenhuma determinação temporal” [8], estes são os objetos com os quais não podemos vivenciar uma experiência da realidade. Em segundo lugar, vêm os objetos “temporais”, os quais correspondem aos objetos que existem na realidade e que envolvem a “temporalidade”: o passado, o presente e o futuro. Sartre afirma que é necessário, todavia, haver uma intenção, para que se efetue a representação de uma imagem. A intenção reconstitui ou, ainda mais, combina os conhecimentos necessários para a reconstituição da imagem que eu desejo que apareça em minha consciência. Isso me permite reunir os diferentes elementos ou características do objeto. Eles são postos em relação uns com os outros. A imagem mental, então, é animada por uma certa materialidade, e a função imaginante é o resultado de minha intenção de que apareça, em minha consciência, uma imagem específica.

 

A imagem

A imagem é central na obra de Sartre, visto que ela é extremamente solicitada pela consciência: ela se distingue do ato de conceber, do pensamento que não passa de uma ideia. Não existe uma presença do objeto no pensamento. Ao contrário, a imagem é a maneira pela qual um objeto de oferece à consciência: trata-se de uma certeza, eu conheço a imagem que imagino. O objeto é dado à consciência como uma ausência absoluta; é um “saber” que se dá de imediato; a imagem do objeto surge imediatamente. A imagem está associada a conhecimentos já adquiridos e concernentes ao objeto que ela representa. Ela não apreende, portanto, nada além daquilo que nós podemos extrair do objeto em questão, durante o trabalho de percepção. A imagem não se relaciona com o mundo, ela só depende de nós: não há como eu descobrir nada a mais sobre ela. Contudo, Sartre determina que existe uma possibilidade de se observar o objeto imaginado, mas que, mesmo assim, essa possibilidade não nos permite apreender nada de novo em relação ao objeto em questão. O autor explica que a imagem, ato da consciência imaginante, é um elemento, identificado como o “primeiro” e “incomunicável”, como “o produto de uma atividade consciente […] atravessada de um extremo ao outro por uma corrente de vontade criadora” [9]. Trata-se, de uma certa maneira, de dar-se ao objeto a si mesmo, de dar-lhe à sua própria consciência e não de uma maneira passiva. A consciência imaginante “recria” os objetos espontaneamente: ela é criativa.

Um dos pontos importantes abordados por Sartre é a “ilusão de imanência” [10]: trata-se da crença de que o objeto imaginado se situa dentro da imagem ela mesma. A essa afirmação ele opõe a crença comum. Para Sartre, o objeto não existe através da imagem, visto que ela não passa unicamente de uma ideia formada especialmente a partir daquilo que me aparece no mundo exterior. Ela não contém nada estritamente pertencente ao real, sendo, portanto, falso, segundo ele, pensar-se a imagem como sendo o objeto que ela representa. O objeto imaginado se coloca como uma ausência, uma irrealidade: inversamente, a consciência perceptiva coloca seu objeto como existente, já que ela opera diretamente sobre o real. Sartre refuta, assim, o fato de que a ideia, que é de natureza intrínseca, coincida com o objeto, que é extrínseco, e que ela deva possuir as mesmas características do objeto estudado. Segundo ele, a ideia de um objeto não está automaticamente ligada ao objeto do mundo real.

Existem vários tipos de objetos do mundo real que são dados à consciência. Sartre trata, entre outros, do signo: este é um objeto que possui uma significação fundamental. O signo deve passar por uma interpretação da consciência a fim de alcançar sua totalidade. Ele aparece, a princípio, tal como um traço em negro, mas que corresponde a qualquer coisa precisa; mas que para existir como tal, necessita de uma significação a ele associada. Não é o signo em si mesmo que nos interessa, mas algo que ele “contém”. Sem a atribuição de um conteúdo, o signo não passa de um signo vazio de sentidos para a consciência. Mesmo ao ignorarmos a significação de um signo, supomos que ele “deseja” dizer-nos alguma coisa, que ele visa um objeto, mesmo sem o conhecermos. Uma nota musical, por exemplo, é um signo que designa um som específico; automaticamente estabelecemos relações com ela assim que conhecemos sua significação. E isto resulta, todavia, de um conhecimento.

 

A imaginação

 

A nadificação do mundo: o imaginário em ruptura com o real

Sartre passa, então, à sua teoria de nadificação, que, etimologicamente, significa “reduzir a nada”. Segundo ele, a consciência é um nada, ou que quer dizer que o objeto não é um ser no mundo ou um ser em si, ou uma realidade exterior, mas se torna um nada. A noção de nadificação implica, portanto, num ser por si próprio, visto que o objeto é tratado pela consciência. Trata-se do próprio ato de colocar o ser como fenômeno. No entanto, seria falso confundir-se a nadificação com o aniquilamento, visto que não se trata de “destruir” o objeto, mas de retirá-lo de uma realidade de que ele não toma parte; o objeto imaginado “existe” apesar de tudo. Vários tipos de imagens são produzidos pela consciência imaginante; efetivamente existe tanto a imagem visual quanto a auditiva. Sejam quais forem suas características, essas imagens não fazem parte do campo do real, elas não existem verdadeiramente, visto que não podem aparecer na realidade. Portanto, uma imagem mental aparece num “espaço imaginário” e não real, um espaço, além disso, que não existe e que não está sujeito à temporalidade. Como afirma Sartre [11]: “Elas não são partes nulas” e “portanto o ato imaginativo é constitutivo da imagem”. [12]

Como vimos, a consciência imaginante coloca então o objeto tratado “como existente, inexistente ou ausente, ou como existente em outros lugares” [13] ou não o trata como existente. O objeto imaginado é uma espécie de “nada ser” [14], ele se apresenta como ausente e nós podemos fazê-lo aparecer em nossa mente sem que o tenhamos diante de nossos olhos. Os objetos representados via consciência imaginante não são, portanto, reais, nem reproduzidos com exatidão por nossa consciência. Ademais, não se trata de objetos do mundo real eles mesmos, mas de sua reprodução como imagem. Esta reprodução é imperfeita e irreal, literalmente pessoal, marcada pela subjetividade e também baseada na realidade. Na consciência imaginante, os objetos são representados “globalmente”, vistos grosseiramente. Isto é, são vistos sob todos os ângulos possíveis ao mesmo tempo: o objeto que eu tento representar aparece-me em todas as facetas possíveis a serem capturadas. Não podemos imaginar um objeto perfeitamente, mesmo o conhecendo, mesmo se tivermos tido todo o tempo de experimentá-lo previamente através da percepção. Por exemplo, no momento em que imagino o rosto de um amigo, encontro-me diante de uma lembrança à qual esse rosto se assemelha, mas sem qualquer precisão: eu o imagino como um “todo”. Este “todo” corresponde aos múltiplos ângulos sob os quais eu vi o rosto desse amigo e de que me lembro. As informações que colhi concernentes ao rosto se misturam entre elas. É como se eu o visse uma vez de perfil, depois de frente, etc., pois quando a minha consciência intervém para que ele me apareça, todas as lembranças que tenho de seu rosto reúnem-se em um único bloco. É o que Sartre chama de uma “multiplicação de pontos de vista”. [15].

Assim, a dificuldade reside no fato de que, depois de Sartre, o objeto irreal é ao mesmo tempo presente e ausente; inatingível, intocável e movido por nossa própria vontade de imaginar. Sartre trata da “livre espontaneidade da consciência” [16], logo, o objeto imaginado torna-se “objeto passivo” [17]. Ele é totalmente dependente de nossa consciência: é ela que lhe dá “vida” e que o faz desaparecer, se assim o desejar. Por exemplo, se escuto uma história, as imagens aparecem e desaparecem para mim durante a narração. No entanto, o objeto irreal responde a um desejo, ou seja, aquele que fazemos aparecer à consciência, visto que ele se encontra ausente, e que não nos é possível realmente fazer sua experiência neste momento específico. O desejo não é plenamente satisfeito, uma vez que ele está presente em nossa consciência, mas permanece irreal. Finalmente, o objeto irreal responde a uma falta, a uma necessidade. Uma pessoa que nos faz falta suscita em nós o desejo de rever seu rosto. A consciência imaginante se ocupa de fazer aparecer esse rosto que não podemos ver realmente. Trata-se de uma substituição: se não podemos acessar a realidade, a oferecemos a nós então mentalmente, como uma irrealidade.

O problema da irrealidade não é causado somente pela inexatidão do objeto representado mentalmente, mas igualmente por sua natureza mesma, que é “enganosa” e um tanto frustrante. São atribuições mentais, e não reais; ou o desejo se traduz pela “posse” ou pela vontade de fazer realmente a experiência do objeto em questão. Mas ao que concerne ao objeto irreal, esta é fundamentalmente impossível. Tudo aquilo que contribui para a aparição do objeto na consciência imaginante é igualmente irreal: o espaço, a matéria, a cor, as diferentes características, etc.

 

O estatuto da obra musical: sua aparição, sua irrealidade

A consciência se revela, então, capaz de nos fazer aparecer os objetos ausentes, mas Sartre vai mais longe ao tratar do estatuto da arte e do modo como ela é apreendida pela consciência. Um de seus maiores axiomas diz que a “obra de arte é irreal” [18]. Para concluir, Sartre enuncia seu mais relevante argumento. A obra de arte, seja ela uma pintura, uma escultura ou uma peça musical, é um produto da consciência imaginante; ela é real pelo viés de seu analogon, mas ao mesmo tempo é irreal porque nasce de um ato puramente imaginativo. A tomada de consciência do objeto estético se produz de modo imaginante e consiste, então, em realizar a passagem da realidade em direção à irrealidade. O objeto não se oferece pela via da percepção, já que se trata de um produto da consciência imaginante, e a percepção não é capaz de apreendê-lo como se fosse real. O objeto estético é por natureza não perceptível, irreal; ele não é o suporte, mas aquilo que é representado. Por exemplo, uma pintura não será apreciada pela tela, mas unicamente pelo objeto que representa. Eu não vejo somente o quadro, senão o objeto estético que a pintura se encarrega de “mostrar”.

Sartre trata especialmente das sensações que estão irremediavelmente vinculadas à experiência artística: a obra de arte como produtora de sensações físicas no corpo do observador. O autor explica que a matéria pode efetivamente provocar o “prazer dos sentidos” [19] seja por causa de uma cor seja pela técnica utilizada para a realização da obra de arte. No entanto, o prazer estético ele mesmo se distingue do simples prazer dos sentidos. Com efeito, Sartre esclarece que, ao adotarmos uma “atitude imaginante” [20], ao apreciarmos uma obra estética, não nos prendemos à sua materialidade. Isto consiste em considerar a obra artística como um “conjunto irreal” [21]. Por exemplo, o conjunto de um quadro em si mesmo é apreendido como sendo irreal. Não são os materiais utilizados que fazem a obra: postos de lado, eles nada significam. Assim, o objeto estético é belo unicamente em sua irrealidade. Apesar de sua irrealidade, o objeto estético, necessariamente separado de seu suporte puramente material, sobre o qual foi produzido, pode provocar um “prazer estético”[22]. Essa fruição do belo é realmente vivida, ela não resulta das qualidades físicas, que unicamente permitem ao objeto estético existir. O objeto estético deve ser entendido para além de sua realidade, para que possa ser plenamente “apanhado” pela consciência. Para “usufruir” esteticamente um quadro, não devo prender-me à matéria, assim como às cores, às pinceladas, etc., mas devo considerar o quadro como um “todo” irreal. Assim, poderei ver a obra de arte ela mesma e eventualmente experimentar o prazer artístico.

No entanto, o tipo de obra mais problemático é a peça musical. Sartre considera esse problema e afirma que a obra musical deve ser apreendida como um conjunto. Eu não a escuto “em parte alguma”, eu assisto o artista sem realmente vê-lo por si mesmo, eu capto a sequência de sons como um “todo”. Como se eu separasse o objeto estético do mundo real. A obra musical não pode ser totalmente apreendida, ela escapa ao real. Segundo Sartre, os instrumentos, os sons “físicos” não passam de análogos da peça musical. Tomados separadamente uns dos outros, os sons não dão conta da obra ela mesma, a peça não pode mais ser ouvida. Diante da obra musical, eu posso adotar uma certa atitude para melhor me “confrontar” com ela; efetivamente, Sartre afirma a necessidade “de operar uma redução imaginante” [23]. Este modo de apreender a obra implica que não nos limitamos mais às manifestações físicas da obra musical, mas que a interiorizamos de alguma forma. Não nos preocupamos mais com o evento em si mesmo, ou seja, com os músicos que interpretam a obra. Utilizamos um analogon [24] a fim de apreender plenamente a peça musical. Esse analogon manifesta a obra, ele nos permite acessá-la. Assim, quando aproveitamos o analogon que está à nossa disposição, podemos “ouvir” a obra, mas a ouvimos mentalmente, através do imaginário, portanto de maneira irreal.

Quanto ao que concerne à obra de arte musical, Sartre cita como exemplo a “Sétima Sinfonia” [25] de Beethoven. Quando ouvimos uma peça musical, desejamos “reencontrar” exatamente a mesma peça durante sua audição, sejam quais forem os músicos que a interpretam. O que esperamos dos intérpretes é que eles executem com exatidão aquela peça, assim como a imaginamos em sua totalidade. Os músicos ali se encontram apenas para reproduzir da melhor maneira possível a peça, que deverá ser “reencontrada” em sua base. Se, ao executar a “Sétima Sinfonia”, os músicos trocarem algumas de suas notas, não poderemos mais dizer que se trata verdadeiramente da “Sétima Sinfonia”; ainda mais se temos uma “ideia” prévia da peça, se conhecemos as notas que a constituem, que fazem dela a “Sétima Sinfonia”. Assim, a partir do momento em que os músicos estão a reproduzir com exatidão uma peça musical qualquer, não são os músicos que escuto, mas a peça ela mesma. Somos postos a confrontar diretamente a peça musical “Sétima Sinfonia de Beethoven”. Sartre descreve a peça musical como um “todo sintético”, ou ainda como um dos “grandes conjuntos temáticos” [26]. Sartre distingue o tempo real, necessário à execução da peça musical, de seu tempo “absoluto”, ou seja, do tempo interno da peça (desde a primeira à última nota). A obra não existe no tempo, não podemos considerar uma peça musical como um acontecimento datado e preciso no tempo, reproduzido dentro de uma duração real e determinada. Quando nos encontramos diante da interpretação de uma peça musical, podemos constatar, então, que o foco principal de nosso interesse não se encontra no acontecimento que se desenrola sob meu olhar, ou seja, o concerto em si mesmo, mas precisamente a peça que está sendo tocada. Não é, portanto, o acontecimento que está contido no tempo que tomamos em consideração, mas sim a peça musical em si mesma. O autor retoma a expressão de Revault d’Allones [27] para nomear tal fenômeno: a “reflexão com fascinação auxiliar” [28]. Isso marca, então, a passagem para dentro da irrealidade: é preciso considerar a peça musical como “absoluta” e não como parte de notas articuladas entre si. De toda maneira, retomando o exemplo da “Sétima Sinfonia”, não podemos considerá-la como alguma coisa realmente presente. Ela “escapa inteiramente ao real” [29], ao fluxo do tempo, em proveito de seu próprio tempo. Sua ausência no real faz com que ela possa “ser”, que ela possa existir e ser um “absoluto”; é impossível modificar ou agir diretamente sobre uma peça musical. O analogon permite então uma execução direta da obra, uma execução no tempo real; são os atores que produzem uma peça musical: trata-se da “execução” [30] da obra. Sartre distingue dois tipos de atitude possíveis para a consciência; com efeito, tomamos num primeiro tempo uma atitude imaginante que se define como a contemplação estética, ela opera dentro da irrealidade. Sucede então, o que o autor chama de atitude realizante: é o despertar, ou ainda, o retorno ao real; a consciência se retira da contemplação da irrealidade e retorna ao mundo real.

 

O julgamento de uma imagem: a noção de belo

Sartre aborda a seguir a noção de beleza: ele a compreende como a manifestação mesma da irrealidade. Concretamente, não podemos refletir sobre a beleza na realidade do mundo. Nosso entendimento de beleza se produz mentalmente, pela via de nossa consciência imaginante, portanto, dentro da irrealidade. Para tanto é necessário operar um recuo, a fim de que o imaginário se aproprie do objeto. A “coisa bela” é tomada pela consciência e recortada de seu entorno, ou seja, recortada do mundo real. Esta ruptura permite considerá-lo tal como é e ser apreendido pela consciência imaginante, que conferirá, dessa forma, um julgamento sobre a coisa em questão. A noção de beleza não pertence ao real, mas unicamente ao imaginário; faz-se então necessária uma passagem através da irrealidade, o que implica a ruptura com a realidade. No mais, Sartre afirma que os sentimentos associados aos objetos contribuem para o “enriquecimento” da imagem e da consciência que representa o objeto. Isso significa dizer que o objeto não aparece à consciência enquanto tal, mas dotado de “qualidades”, de novos atributos que lhe serão conferidos por nossa afetividade. O mundo real se enriquece; e a isso o autor chama de “estrutura afetiva” [31] do objeto. Finalmente, a afetividade traz uma certa riqueza aos objetos que nos afetam. Eles deixam de ser unicamente objetos e passam a ser objetos que nos afetam, percebidos especificamente por nós mesmos. Não se trata de um conhecimento intelectual, mas de algum tipo de “conhecimento emocional”. Os sentimentos integrados às imagens mentais delas fazem parte, a ponto de se tornarem suas qualidades específicas.

 

Considerações finais

 

O estatuto da consciência é então apresentado por Sartre como essencial, pois é ela que nos permite imaginar. A imaginação é um ato constitutivo e indispensável à consciência: ela nos outorga a possibilidade de nos apropriarmos do mundo real no campo da irrealidade. O autor se opõe então a muitos de seus predecessores, que haviam postulado a ideia de que o mundo só tem sentido no momento em que ele existe em nossa consciência. Ora, para Sartre, essa tese é falsa: pelo contrário, é a consciência que dá sentido ao mundo real. Sua tese é, portanto, moderna e original, já que o autor reveste a consciência de um papel relevante e primordial e particularmente no que tange à sua potência imaginativa. A liberdade que anima a consciência lhe confere a possibilidade de eclodir seu poder de imaginar: ela se torna então consciência imaginante. Sartre toma por base hipóteses empíricas a fim de tentar responder às diferentes aporias que certas imagens colocam. Definitivamente, a obra de arte é irreal e necessita de certa irrealidade para existir. No entanto, isto não significa “destruir” seu estatuto, mas que ela extrai sua existência desse “outro lugar” que não faz verdadeiramente parte do mundo real, ainda que efetivamente exista: a consciência.

 

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Notas

[1] Sarte, L’Imaginaire, p. 15.

[2] Ibid., p. 62.

[3] Idem.

[4] Ibid., p. 352.

[5] Ibid., p. 42.

[6] Ibid., p. 249.

[7] Ibid., p. 248.

[8] Ibid., p. 37.

[9] Ibid., p. 17.

[10] Ibid., p. 171.

[11] Ibid., p. 351.

[12] Idem.

[13] Ibid., p. 33.

[14] Ibid., p. 240.

[15] Ibid., p. 258.

[16] Ibid., p. 241.

[17] Ibid., p. 362.

[18] Ibid., p. 364.

[19] Idem.

[20] Idem.

[21] Ibid., p. 366.

[22] Ibid., p. 369.

[23] Ibid., p. 370.

[24] Idem.

[25] Ibid., p. 368.

[26] Ibid., p. 369.

[27] Gabriel Revault d’Allones, psiquiatra francês (1872-1949).

[28] Sarte, L’Imaginaire, p. 369.

[29] Ibid., p. 370.

[30] Idem.

[31] Ibid., p. 138.

 

Bibliografia

Livro

SARTRE, Jean-Paul, L’imaginaire (1940). Ed. por Arlette Elkaïm-Sartre. Paris: Gallimard, 1986.

 

Websites

BROOKS François, Sartre em <http://www.philo5.com/Les%20philosophes/Sartre.htm>.

Athéisme, Jean-Paul Sartre em <http://atheisme.free.fr/Biographies/Sartre.htm>.

VAN LIER Henri, L’existentialisme de Jean-Paul Sartre em <http://goo.gl/Ij09oe>.

Artigo em PDF, L’existentialisme sartrien em <http://www.colby.edu/~ampaliye/FR128/existentialisme.pdf>.

SABOT Philippe, Autour de L’Imaginaire de Sartre : présentation em <http://methodos.revues.org/2964>.

Imagem eletrônica da capa da obra L’imaginaire (1940), de Jean-Paul Sartre: <http://www.gibertjoseph.com/l-imaginaire-71469.html>.

 

 

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