Haicai Performativo: A Amarração do Amor Idealizado com a Arte da Performance

 

Francis O’Shaughnessy, A Sobremesa, 2012. Eco de um Rio, Montreal, Canadá. Fotografia de Felix Bowles

 

O neologismo “haicai performativo” é uma visão singular de um processo de criação cujo sentido poético desenvolvi para descrever proposições que associam a arte ao amor idealizado. No contexto da arte da performance, o haicai performativo se baseia no princípio da transposição de um curto poema lírico para o presente, por meio de um corpo em atividade. Ele é o resultado de uma extensa pesquisa-criação [1] e do movimento de ideias (um processo mental). Imaginei um modo de expressar que fale das “ressonâncias interiores” (DÉCIMO, 2005, p 34.) que motivam o artista a interrogar dois objetos dignos de interesse: a arte e o amor.

O fundamento do haicai performativo repousa sobre uma métrica de três imagens consecutivas (três quadros performativos) que exprimem a essência das experiências interiores, ou de uma ideia: o amor. Essa métrica é inspirada na notação de três linhas (adaptação ocidental) e na generalidade filosófica do haicai literário. A adoção dessa métrica fornece uma estrutura rítmica clara, representada por vias tortuosas – impressões deslumbrantes; isto é, um fino desenvolvimento técnico no plano do pensamento e da ação. O haicai performativo se baseia em “um pensamento que mede e esculpe o tempo” (BARBA, 2004, p. 113). Ele revela um princípio evocando a energia: um ritmo do pensamento. Em outras palavras, o espírito do haicai performativo está continuamente em movimento. Ele trabalha profundamente sobre “algo invisível: a energia ou, dito de outra forma, o pensamento” (Ibidem, p. 87). O que importa no haicai performativo não é tanto a imagem do corpo em movimento (a manifestação), mas sim o espírito em movimento (a atividade de pensar). O haicai performativo se apoia sobre um método sucinto que condensa “o fato de pensá-lo grande e de torná-lo miniatura na execução” (Ibidem, p. 94). O haicaísta da performance [2] é então forçado a produzir sua intenção por um caminho breve, mas rico. Nesse sentido, gosto de pensar que o haicai performativo é guiado por “uma lei da economia das forças criativas” (economia de forças mentais) (CHKLOVSKI, 2008, p. 15), que quer dizer alojar uma quantidade máxima de pensamento em uma quantidade mínima de imagens (uma influência da poesia japonesa). O haicai performativo, por sua extrema concisão, evoca muito mais imagens do que as que são ditas de verdade. As imagens empregadas para descrevê-lo podem parecer um pouco desfocadas, pois a visão interior é criadora. O objetivo das imagens desenvolvidas pelo haicai performativo não é o de aproximar de nossa compreensão sua significação (o porquê da experiência interior, do desconhecido, do amor), mas sim “criar uma percepção particular do objeto (o amor), de criar uma ‘visão’, e não uma ‘re-identificação’” (Ibidem, p. 35).

Contrariamente ao poema breve literário, o haicai performativo não tem uma temporalidade precisa. A brevidade de um haicai performativo não é medida em segundos ou minutos, mas em imagens. Essa temporalidade é calculável de acordo com o desenvolvimento das imagens do artista. A noção de brevidade temporal pertence a cada artista, pois “a duração é determinada por nada mais que sua intenção” (RICHARD, 1990, p. 1). Cada artista tem seu próprio ritmo e cada haicai performativo secreta seu próprio tempo e obedece às suas próprias regras.

Nessa forma de arte, dependendo da construção metódica e semântica do artista, as imagens são rigorosamente codificadas e se agenciam na notação, segundo um cenário aberto (o que subentende que o artista pode recorrer à improvisação). Na execução de um haicai performativo, as projeções intencionais do artista não passam de uma possibilidade de execução no tempo. Em princípio, sua filosofia é de se adaptar “às diferentes dinâmicas e às oportunidades de encontros e de sinergias do momento presente” (WEN LEE, 2011, p. 7). Recorrer ao aleatório ou ao acaso pode fazer surgir uma poesia não intencional que permita viver uma “reunião indecisa” (SIVAN, 2006, p. 19).

Os haicaístas da performance tentam especificamente destacar um procedimento: conceber uma arte que é do pensamento, por meio de imagens. De acordo com Victor Chklovski, um teórico russo da literatura, “sem imagem não há arte ou poesia possíveis” (CHKLOVSKI, 2008, p. 7). Não devemos perder de vista que considero o haicai performativo como um ato para transformar experiências interiores e ideias em conceitos visuais. Assim, seguindo esse processo particular, a performance ligada ao amor idealizado torna-se o resultado poético de uma maneira de perceber a imagem ou a ideia fragmentada do amor.

O haicai performativo não preconiza proezas técnicas na execução de suas imagens, mas sim a qualidade de seu encadeamento, de seu fraseado criativo. O haicai literário é composto por uma estética do instante, por uma pontualidade e por uma estética linear. Estamos falando de uma poesia que se define por uma intensidade, uma velocidade e uma fragmentação. O haicai performativo se inspira na estética do instante e da pontualidade, mas se desdobra em uma fina discursividade e narratividade. No poema literário breve é possível separar a discursividade e a narratividade (a história), como entendido pelo poeta francês Jean-Marie Gleize (1991), já que tal poema é representado com uma notação simples ou uma fragmentação linear. No entanto, fazer tal transposição para o haicai performativo seria impossível, pois trata-se de uma arte em atividade. Edificando uma escritura corporal, e não literária, o artista que gesticula necessariamente constrói sentido e significado no presente. O haicai performativo coloca em movimento uma narratividade, pois amalgama gestos e ações em tempo real. Esses atos são, para o espectador e para o artista, os elos essenciais para estabelecer uma narrativa. Para apreciar um haicai performativo ele deve ser lido em seu conjunto, em seu todo (esquema barthesiano de Deleuze). Enquanto o espectador não tiver desenrolado a paisagem (fragmentada em três imagens) que o haicai performativo envelopa, a história está incompleta. O haicai performativo, portanto, ganha todo seu sentido dentro de seu conjunto. É por essas razões que, mesmo em sua essência e em sua pequenez, a narrativa é incontornável no haicai performativo.

 

A Essência de um Pensamento de Amor

 

Francis O’Shaughnessy, A Sobremesa, 2013. Tehdas Teatteri, Turku, Finlândia. Fotografia de Sara Létourneau

 

Como consequência de pesquisas sobre a superação da carta de amor, foi possível formular a particularidade do haicai performativo. É uma estratégia artística que busca a essência de um pensamento de amor sublimado em uma arte de atividade. Hoje, o haicai performativo se apresenta como um ensaio de uma prática em transformação, se distinguindo por suas motivações de criação a partir do conceito de amor. O amor é visto como uma atividade de pensamento ou ainda como movimento de uma intenção: um ato de fé do amor.

O haicai performativo tenta destacar imagens que refletem uma experiência interior que se traduz por estar em êxtase com um objeto amado. O uso do termo “objeto amado” é frequente na gramática do haicaísta da performance. Ele designa o desconhecido como “objeto” (o amor) que se comunica com o “amado”, ou seja, a projeção de uma mulher, substituída em “outro” ideal (prodigioso, sedutor). Querendo comunicar o êxtase de um não saber, o artista pretende que o amor exista, e concretiza, pela arte da performance, sua ilusão poética. A proposição artística resultante não pode ser imitada, pois emerge, evidentemente, das experiências pessoais. Então, no meu caso, o haicai performativo é muitas vezes ligado a um sonho, a uma lembrança e à qualidade pessoal da sensação.. 

O objeto amado ideal que tento construir em meus haicais performativos se aproxima da paisagem de Proust (1987) e de Deleuze (1964). Eu gosto da ideia proustiana de comparar a preciosidade de uma mulher à de uma flor, de árvores floridas e de jardins. No meu caso, a musa da minha vida é a projeção de uma paisagem humana que tem pouca extensão em nossa existência. As imagens do haicai performativo vêm a ser “uma miragem do desejo” (PROUST, 1987, p. 45), um objeto de mistério que parece propício para a criação de um ideal. Os haicaístas performativos parecem correr atrás da “sombra” das mulheres (sombras de sonho). Querer reter uma sombra, não seria procurar ligações invisíveis, objetos impalpáveis? Parece-me impossível possuir uma silhueta fugidia (uma sombra fantasma), ou ainda a sombra de uma presença de amor. No entanto, para o sujeito apaixonado, essas sombras parecem mais reais (o outro ideal) do que o ser amado em pessoa.

Assim, em um haicai performativo, a predominância da métrica de três imagens consecutivas é a base de seu estilo e tornou-se a marca de sua identidade. O haicaísta da performance se esforça para desenvolver uma estrutura rítmica clara através do entremeio de impressões deslumbrantes que expressam a essência de uma ideia (o amor), quer dizer, um método sucinto evocando uma energia e seus itinerários. Como acabamos de ver, a temporalidade do haicai performativo é determinada apenas pela intenção do artista e pelo desenvolvimento de suas imagens. Sua força reside na sua sequência performativa e em sua capacidade de abertura ao desconhecido. Mesmo que ele seja extremamente conciso, o haicai performativo não pode se furtar da discursividade e da narratividade (a história), porque trata-se de uma arte em atividade. O haicai performativo pretende justificar um apaixonado no trabalho de reivindicar o intransigente do amor – o desconhecido poético que nos esmaga com a sua grande autoridade.

 

NOTAS

[1] Nota da Tradução: Pesquisa-criação, do francês recherche-création, uma das modalidades de tese de doutorado possíveis no programa de Doutorado de Estudos e Práticas de Artes da Universidade do Quebec, em Montreal.

[2] Eu chamo de “haicaísta da performance” poetas e artistas que tentam expandir os limites da linguagem escrevendo sua poesia na forma de expressão corporal das artes da cena e das artes visuais.

 

BIBLIOGRAFIA

BARBA, Eugenio. Le Canoë de Papier, Traité d’Anthropologie Théâtrale. Saussan: L’Entre temps, 2004.

BARTHES, Roland. Le Discours Amoureux. Paris: Éd. du Seuil, 2007.

CHKLOVSKI, Victor. L’Art Comme Procédé. Paris: Éd. Allias, 2008.

DÉCIMO, Marc. Le Duchamp Facile. Dijon: Les presses du réel, 2005.

DELEUZE, Gilles. Proust et Les Signes. Paris: PUF, 1964.

DELTEIL, André (sous la dir.). Le Haïku et la Forme Brève en Poésie Française. Aix-en-Provence: Publications de l’Université de Provence, 1991.

WEN LEE. Future Of Imagination 7, International Performance Art Event Singapore. Singapour, Éd. d’auteur: Lee Wen, 2011.

PROUST, Marcel. Proust, à l’Ombre des Jeunes Filles en Fleurs I. Paris: Éd. Flammarion, 1987.

RICHARD, A. M. Matériau Manœuvre, Inter, Art Actuel, Éd. Intervention (47), 1990, Primavera, p. 1-2.

SIVAN, Jacques. Marcel Duchamp, 2 Temps 1 Mouvement. Dijon: Les presses du réel, 2006.

WRIGHT, Stephen. Vers un Art sans Oeuvre, sans Auteur, et sans Spectateur, 2007. Disponível em: <http://www.archives.biennaledeparis.org/fr/2006-2008/index.htm>. Acessado em: 22 de junho de 2014.

 

 

PARA CITAR ESTE TEXTO

O’SHAUGHNESSY, Francis. “Haicai Performativo: A Amarração do Amor Idealizado com a Arte da Performance”. eRevista Performatus, Inhumas, ano 2, n. 11, jul. 2014. ISSN: 2316-8102.

 

Tradução de Marília Clemente Gomes Carneiro

Revisão ortográfica de Marcio Honorio de Godoy

© 2014 eRevista Performatus e o autor

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