Como Criei a Dança Serpentina

 

Léopold Reutlinger, Loïe Fuller na Primeira Posição da Dança Serpentina, 1893

 

Em 1880, eu estava em turnê em Londres com a minha mãe. Um agente me contratou para ir aos Estados Unidos interpretar o papel principal numa nova peça que estava sendo montada, intitulada Doutor Quack [1]. Nessa peça, eu dividiria o palco com dois atores norte-americanos, Will Rising [2] e Louis de Lange [3], este último assassinado misteriosamente pouco tempo depois. 

Comprei os trajes de que precisava e levei-os comigo. Os ensaios começaram assim que chegamos em Nova York. Durante os nossos trabalhos, o autor teve a ideia de acrescentar na peça uma cena em que o doutor Quack hipnotizava uma jovem viúva. O hipnotismo estava naquele tempo muito em voga em Nova York. Para dar à cena o seu pleno efeito, era preciso uma música bem suave e uma leve iluminação. Pedimos então ao eletricista do teatro para colocar lâmpadas verdes na ribalta, e ao chefe de orquestra para tocar uma melodia em surdina. A grande questão depois foi saber qual vestido eu usaria. Não podia comprar um novo; já tinha gasto todo o dinheiro que me haviam adiantado para os trajes. Não sabendo mais o que fazer, tive de rever em detalhe todo o meu guarda-roupa, na esperança de encontrar alguma coisa utilizável.

Nada, não encontrava absolutamente nada.

De repente, vislumbrei, no fundo de uma das minhas malas, uma caixinha minúscula. Abri-a, e tirei de lá um tecido de seda leve como uma teia de aranha. Era uma saia ampla e muito larga na parte inferior.

Deixei o vestido resvalar pelos meus dedos e, diante daquele pequeno monte de tecido tão delicado, fiquei pensativa por algum tempo. O passado, um passado bem próximo mas já distante, acenava diante dos meus olhos.

Foi em Londres, alguns meses antes.

Uma amiga me pediu para acompanhá-la em um jantar de despedida a alguns oficiais que estavam de partida à Índia, onde se juntariam ao seu regimento. Todos estavam vestidos a rigor. Os oficiais, elegantes em seus belos uniformes; as mulheres, com longos decotes e lindas como só as mulheres inglesas sabem ser.

Na mesa sentei entre dois dos oficiais mais jovens. Eles tinham pescoços muito longos e colarinhos excessivamente altos. No início, fiquei bastante intimidada com a presença de vizinhos tão imponentes. Eles pareciam esnobes e pouco comunicativos. Logo descobri que eram ainda mais tímidos do que eu, e que nunca conseguiríamos nos conhecer melhor se um de nós não decidisse superar sua própria timidez e, ao mesmo tempo, a dos dois outros.

Mas os meus jovens oficiais eram tímidos apenas na presença de mulheres. Quando lhes disse que esperava que eles não viessem a participar de uma guerra, e que desejava sobretudo que nunca matassem ninguém, um deles me respondeu simplesmente:

– Acho que posso muito bem servir como alvo. E quando as pessoas começarem a atirar em mim, eles vão pensar que é realmente a guerra.

– Não seriam justamente vocês, os mais civilizados, que pensariam nisso?

– Você acha que eu teria tempo para pensar em alguma coisa? – perguntou.

E sorria ao dizer isso.

Eles eram pura e essencialmente ingleses. Nada poderia perturbá-los, ou comovê-los, ou fazê-los mudar sequer uma vírgula. Em nossa mesa pareciam tímidos; mas pertenciam a essa espécie de homens que vão ao encontro da morte como quem vai ter com um amigo encontrado do outro lado da rua.

Naquela tempo, eu ainda não conhecia os ingleses como mais tarde viria a conhecê-los.

Saí da mesa sem me lembrar de perguntar os nomes aos meus vizinhos, e quando me dei conta disso, já era tarde demais.

No entanto, lembrei-me de que um deles, durante nossa conversa, insistiu em saber o nome do hotel em que eu estava hospedada. Já tinha esquecido completamente do incidente, quando tempo depois recebi uma pequena caixa vinda da Índia.

Nela havia uma saia de seda branca muito leve, de uma forma particular, e algumas peças de seda araneiformes. A caixa não tinha mais do que cinquenta centímetros de comprimento e não era maior do que uma caixa de charutos. Não havia mais nada nela – nem carta nem bilhete. Que coisa estranha! Quem poderia tê-la enviado?

Não conhecia ninguém na Índia. Mas relembrei subitamente do jantar e dos jovens oficiais. Adorei receber um presente tão bonito; contudo, eu estava longe de suspeitar que ele continha a pequena semente da qual sairia, para mim, uma lâmpada de Aladim.

Era, naturalmente, a mesma caixa que acabava de encontrar na mala.

Absorta, abaixei-me e apanhei aquele tecido macio e sedoso. Vesti a saia, a saia enviada por meus dois oficiais, esses dois jovens que, a essa altura, já “serviram como alvo” naquelas selvas hostis, pois nunca mais ouvir falar deles.

Meu vestido – que se tornaria o vestido do triunfo – era muito longo, de pelo menos meio metro. Subi a cintura e prendi a saia, com a ajuda de um alfinete, no alto do corpete, confeccionando assim uma espécie de vestido Império. Um vestido bem original, até um pouco ridículo, e era exatamente o que convinha para a cena de hipnotismo que nós mesmos não levávamos lá muito a sério.

Para testar o sucesso da peça, fomos apresentá-la primeiro nas províncias, antes de levá-la ao público de Nova York. Fiz, portanto, minha estreia como “dançarina” no teatro de uma pequena cidade, que Nova York ignorava completamente. Aliás, acho que ninguém, salvo os moradores, se interessava pelo que acontecia naquela cidadezinha. Na noite de estreia, fizemos a cena de hipnotismo no final da peça. O cenário, representando um jardim, estava banhado por uma pálida luz verde. O doutor Quack fez uma entrada misteriosa, chamando-me em seguida. A orquestra tocou uma música lenta e langorosa, e então surgi, esforçando-me para me tornar o mais leve possível, a fim de dar a ilusão de um espírito flutuante que obedecia às ordens do doutor. 

Ele levantou os braços. Eu levantei os meus. Como se estivesse sob sugestão, em transe, meu olhar fixo no seu, seguia todos os seus movimentos. Meu vestido era tão longo que eu pisava com frequência em cima dele, e segurava-o instintivamente com as duas mãos e levantava os braços no ar, enquanto continuava a flutuar pelo palco como um espírito alado.

Súbito, um grito repercutiu na sala:

– Uma borboleta! Uma borboleta!

Comecei a rodar e a correr de um lado para o outro. Houve um segundo grito:

– Uma orquídea!

Para minha grande surpresa, os aplausos irromperam.

O doutor deslizava cada vez mais rápido pelo palco, e cada vez mais rápida eu o seguia. Por fim, transfigurada, em êxtase, deixei-me cair a seus pés completamente envolta na nuvem de seda do levíssimo tecido.

O público pediu mais da cena, e continuou a pedir… e tantas vezes que tivemos de repeti-la mais de vinte.

Continuamos a viajar por mais seis semanas. Depois, foi a vez de estrearmos nos subúrbios de Nova York, onde Oscar Hommerstein [4], hoje célebre empresário teatral, possuía um teatro.

A peça – devo dizer? – foi um fracasso, e nossa cena de hipnotismo não foi capaz de salvá-la dos ataques da crítica. Nenhum teatro de Nova York quis acolhê-la, e a companhia acabou por se dispersar.

No dia seguinte à première no teatro do sr. Hommerstein, o jornal da pequena cidade em que havíamos apresentado com sucesso fenomenal Dr. Quack, e que os diretores de Nova York ignoravam completamente, publicou um artigo extremamente elogioso sobre o que eles chamavam de “a minha atuação” na cena do hipnotismo. Mas como a peça foi um fiasco, ninguém pensou que seria possível separar uma única cena, e continuei sem contrato.

A propósito, mesmo em Nova York, e não obstante o fracasso da peça, recebi pessoalmente boas críticas da imprensa. Os jornais estavam de acordo ao afirmar que eu contava com cartas extraordinárias nas mangas… se soubesse como usá-las! Trouxe para casa o vestido a fim de reparar um pequeno rasgo. Após a leitura dessas reconfortantes linhas, pulei da cama vestindo apenas minha camisola, pus o vestido e me olhei num grande espelho, para me dar conta do que tinha feito naquela noite.

O espelho encontrava-se exatamente em face das janelas. As longas cortinas amarelas estavam fechadas, e, através do tecido, o sol derramava pelo quarto uma luz frouxa cor de âmbar que me envolvia toda, e iluminava o meu vestido, dando-lhe um efeito translúcido. Reflexos dourados brincavam nas dobras da seda cintilante, e nessa luz o meu corpo delineava-se vagamente em contornos de sombra. Foi um momento de intensa emoção. Inconscientemente, senti que estava diante de uma grande descoberta, de uma descoberta que só mais tarde tive certeza e a qual havia de abrir o caminho que até hoje percorro.

Delicadamente – quase religiosamente – agitei a seda, e vi que obtinha um mundo de ondulações ainda desconhecidas.

Ia criar uma dança! Como ainda não havia pensado nisso antes?

Duas amigas minhas, a sra. Hoffman e sua filha, a sra. Hossack, vinham de vez em quando saber como andavam as minhas descobertas. Quando eu encontrava uma postura ou movimento que parecia valer a pena, elas diziam: “Guarde isso. Faça de novo”. Cheguei finalmente à conclusão de que cada movimento do corpo provoca na dobra do tecido, nas cores dos panos, um resultado matemática e sistematicamente previsto.

O comprimento e a largura da minha saia de seda obrigavam-me a repetir várias vezes um mesmo movimento de modo a conseguir dar a esse movimento sua forma especial e definitiva. Obtinha um efeito em espiral mantendo os braços esticados para cima enquanto eu girava para a direita e para a esquerda, e recomeçava o movimento até que a forma da espiral se fixasse. A cabeça, as mãos e os pés acompanhavam as evoluções do corpo e do vestido. Mas é bem difícil descrever essa parte da minha dança. O melhor é vê-la e senti-la: é muito complicado transpô-la em palavras.

Uma outra dançarina conseguirá efeitos mais delicados com movimentos mais graciosos, mas não serão os mesmos. Para serem os mesmos, é preciso o espírito que os criou. Uma coisa original, mesmo sendo, até certo ponto, inferior à imitação, ainda assim será melhor do que a cópia.

Estudei cada um dos meus movimentos e, no final, obtive doze. Ordenei-os em dança n. 1, n. 2 etc. A primeira devia ser iluminada por uma luz azul, a segunda por uma luz vermelha, a terceira por uma luz amarela. Para iluminar minhas danças, eu queria um refletor com um vidro colorido na frente da lente; para a última dança, porém, desejava dançá-la na escuridão tendo um só raio de luz amarela a atravessar o palco.

Ao terminar o estudo das minhas danças, saí em busca de um agente. Conhecia-os todos. Durante minha carreira de atriz ou de cantora, quase todos foram meus diretores.

Contudo, não estava preparada para a recepção que me fizeram. O primeiro riu na minha cara, dizendo:

– Você, uma dançarina? Essa é boa! Quando precisar de você como atriz, vou procurá-la com prazer. Mas como dançarina, tenha paciência! Só contrato dançarinas de prestígio. As únicas que conheço são Sylvia Grey [5] e Letty Lind [6], de Londres. E, acredite, você não pode competir com elas. Passar bem, senhorita!

Ele perdera todo o respeito por mim enquanto atriz, e zombava da dançarina.

A sra. Hoffman tinha me acompanhado, e esperava por mim no saguão, onde a encontrei. Ela notou imediatamente minha palidez e agitação. Já era noite quando saímos do teatro. Caminhamos em silêncio pelas ruas cheias de sombra, sem dizermos uma única palavra. Alguns meses mais tarde, minha amiga me disse que, naquela noite, eu não parava de emitir gemidos parecidos com os de um animal ferido. E esse lamento tinha-lhe silenciado. Ela percebera o quanto eu estava devastada.

Já no dia seguinte recomecei minhas buscas, pois a necessidade me premia. A sra. Hoffman me ofereceu para ir morar com ela e sua filha, o que aceitei com gratidão, sem ter a menor ideia de quando nem como me seria possível retribuí-la.

Tempos depois, tive que me render à evidência: já que era conhecida como atriz, nada podia me prejudicar mais do que tentar me tornar dançarina.

Um diretor chegou mesmo a me dizer que, após dois anos longe dos palcos de Nova York, o público já havia esquecido completamente de mim, e que, ao tentar reavivar a sua memória, eu parecia estar lhe contando uma história muito antiga. Essa declaração me deixou furiosa, pois eu tinha, naquela altura, apenas um pouco mais de vinte anos. Pensei comigo: “Será que terei de conquistar a duras penas uma reputação e envelhecer vinte anos para demonstrar que hoje eu era jovem?”

Não resisti e disse o que pensava ao diretor.

– Não é a idade que conta – respondeu –, mas o tempo que o público conheceu você. E você se tornou muito conhecida como atriz para nos reaparecer agora como dançarina!

Em todo lugar eu recebia a mesma resposta. Fiquei desesperada. Estava ciente de ter descoberto uma coisa nova e única; mas estava longe de imaginar, mesmo em sonho, que detinha a revelação de um princípio que iria revolucionar a estética.

Fico pasma quando vejo as proporções que tomaram as formas e as cores. A preparação científica das cores quimicamente compostas, desconhecidas até aqui, enche-me de admiração; fico diante delas como um mineiro que tivesse descoberto uma jazida de ouro, e que se esquecesse de si na contemplação desinteressada do mundo que está diante dele.

Mas volto às minhas atribulações.

Um diretor, que outrora fizera de tudo para me contratar como cantora, e que se recusou categoricamente a ouvir falar de mim como dançarina, consentiu, negligentemente, e graças à intervenção de uma amiga em comum, que eu lhe fizesse uma apresentação.

Peguei meu vestido, que podia ser acomodado em um pequenino embrulho, e dirigi-me ao teatro.

A filha da sra. Hoffman me acompanhou. Utilizamos a entrada dos artistas. Um único bico de gás iluminava o palco totalmente vazio. Na sala igualmente escura, o diretor, instalado na plateia, olhava-nos com ar de enfado – quase de desprezo. Sem direito a camarim para mudar de roupa, nem piano para me acompanhar… Mas a oportunidade não deixava de ser preciosa. Não hesitei em vestir meu traje ali mesmo no palco e por cima da minha roupa. Depois, cantarolei uma melodia e comecei a dançar na penumbra, suavemente. O diretor aproximou-se, e aproximou-se cada vez mais a ponto de subir no estrado.

Seus olhos ganharam um brilho estranho.

Continuei a dançar, ocultando-me na sombra ao fundo do palco, voltando em seguida para a luz, girando freneticamente.

Por fim, suspendi uma parte do amplo vestido acima dos ombros, fazendo uma espécie de nuvem que me encobria por completo, e caí – massa palpitante de seda leve – aos pés do diretor. Depois, levantei-me e esperei, ansiosa, o que ele ia dizer.

Ele continuava calado. Visões de sucesso deviam atravessar-lhe o cérebro.

Finalmente, ele saiu do silêncio e batizou a minha dança de “A Serpentina”.

– É o nome que lhe convém – disse –, e tenho justamente a música que você precisa para esta dança. Venha ao meu escritório, vou tocá-la pra você.

Pela primeira vez escutei esta melodia que se tornaria tão popular: “Loin du bal” [7].

Uma nova companhia ensaiava Tio Celestino [8] no teatro. Essa companhia viajaria com a peça por algumas semanas antes de encená-la em Nova York. Para essa turnê, meu novo diretor ofereceu-me um contrato de apenas cinquenta dólares por semana. Aceitei, mas com a condição de ter o meu nome em destaque nos cartazes, a fim de reconquistar o prestígio que tinha perdido.

Juntei-me ao grupo poucos dias depois e fiz minha estreia longe de Nova York. Durante seis semanas, dancei pelo interior do país, contando febrilmente os dias em que, enfim, apareceria nos palcos da grande cidade.

Durante essa turnê, ao contrário das condições impostas por mim, eu não estava em destaque. Os cartazes nem sequer anunciava o meu nome entre as atrações. Apesar disso, a minha dança, apresentada somente nos intervalos e sem luz colorida, foi um sucesso desde o início.

Um mês mais tarde, no Brooklyn, o sucesso foi estrondoso. Na semana seguinte, fiz minha estreia em Nova York, em um dos teatros mais bonitos da cidade, o Casino [9].

Pude aí, pela primeira vez, realizar as minhas danças como eu as havia concebido: escuridão na sala e luzes coloridas no palco, com a primeira aparição banhada por uma luz azul. Dancei a primeira, a segunda, a terceira. Quando terminei, a sala inteira estava de pé.

Entre os espectadores, havia um dos meus amigos mais antigos, Marshal P. Wilder [10], o baixinho humorista norte-americano. Ele me reconheceu e gritou meu nome de modo que todo mundo pudesse ouvi-lo, pois tinham esquecido de colocá-lo no programa! Quando o público descobriu que a nova dançarina era a sua antiga atriz favorita, a pequena atriz de outrora, recebi uma ovação como, acho eu, jamais um ser humano havia recebido.

Gritavam: “Bravo! Viva a borboleta! Viva a orquídea!”. O entusiasmo extrapolou todos os limites. Os aplausos soaram em meus ouvidos como o badalar de sinos. Estava inebriada de felicidade e gratidão.

Acordei bem cedo no dia seguinte para ler os jornais. E todos os jornais de Nova York consagraram uma coluna, ou até uma página, à “criação maravilhosa de Loïe Fuller”. Numerosas ilustrações das minhas danças acompanhavam os artigos.

Escondi o meu rosto no travesseiro e chorei todas as lágrimas que há tempos reprimia em minha alma.

Quantos meses não esperei por esse dia! Em um desses artigos, um crítico escreveu: “Loïe Fuller renasce das cinzas.” Já no dia seguinte toda a cidade foi inundada por cartazes nos quais uma litografia, reproduzida a partir de uma das minhas fotografias, me representava em tamanho natural, com estas letras garrafais: “A Serpentina. A Serpentina. Teatro do Casino. Teatro do Casino.” Mas, de repente, percebi algo que me deixou petrificada: – meu nome não era mencionado em lugar nenhum.

Fui ao teatro e recordei ao diretor [11] que eu aceitara o cachê extremamente modesto que ele me propusera com a condição de que tivesse meu nome em destaque. Tive dificuldade para compreendê-lo quando ele afirmou, secamente, que ele não podia fazer mais nada por mim.

Perguntei-lhe se por acaso ele imaginava que eu continuaria a dançar em tais condições.

– Nada nem ninguém pode forçá-la a ficar – respondeu. – Além do mais, já tomei precauções no caso de você não querer mais continuar.

Saí do teatro desesperada, sem saber o que fazer. Minha cabeça latejava. Voltei para casa e consultei minhas amigas. Elas me aconselharam a procurar outro diretor e, se conseguisse um novo contrato, simplesmente deixar o Casino.

Fui ao teatro de Madison Square [12]. No caminho, voltei a chorar, e, quando cheguei, estava banhada em lágrimas. Pedi para ver o diretor e contei-lhe a minha história. Ele ofereceu cento e cinquenta dólares por semana. Eu devia começar de imediato e assinar o contrato no dia seguinte. Ao voltar para casa, perguntei se o Casino havia dado alguma notícia: nada!

À noite, minhas amigas foram ao teatro, onde elas puderam contemplar um cartaz anunciando a estreia no Casino, para a noite seguinte, de “A Serpentina”, da senhorita Minnie Renwood [13]. Quando elas me deram essa notícia, compreendi que minhas seis semanas de viagem tinham sido lucrativamente empregadas pelo meu agente, e que ele só esperava uma ocasião para substituir-me por uma corista. Daí o meu nome não estar nos primeiros cartazes.

Eles haviam roubado a minha dança.

Senti-me perdida, morta, ainda mais morta, pareceu-me, do que serei no dia em que a minha hora chegar. Minha vida dependia desse sucesso e agora seriam outros a colher os frutos. Como descrever o meu desespero? Era incapaz de falar, de me mover. Ainda assim, com o que me restava de forças, tentei encontrar alguma coisa que me tirasse daquilo.

No dia seguinte, quando fui assinar o meu novo contrato, o diretor recebeu-me friamente. Não queria mais assinar caso eu não lhe desse o direito de rescindir quando ele bem entendesse. Ele achava que a imitação anunciada naquele mesmo dia no Casino diminuía consideravelmente o interesse que podia representar a minha (como ele agora chamava de maneira irônica), a minha “descoberta”.

Fui obrigada a aceitar as condições impostas, mas senti a um só tempo raiva e dor ao ver com quanto descaramento roubavam a minha invenção.

Aflita, à beira do desânimo, fiz minha primeira apresentação no teatro de Madison Square. Mas para minha grande surpresa, para minha imensa alegria, vi que, logo no dia seguinte, a direção do teatro teve de recusar espectadores por falta de lugares. E continuou assim enquanto durou o meu contrato.

Quanto ao Casino, após três semanas de exibição da minha imitadora, esse estabelecimento foi obrigado a fechar as portas para ensaiar uma nova ópera…

 

 

NOTAS

[1] Doutor Quack, comédia do dramaturgo norte-americano Fred Marsden (1842-1888).

[2] Não é impossível que Loïe Fuller se refira aqui ao ator norte-americano William S. Rising (1852-1930).

[3] Ator, dramaturgo e letrista, Louis de Lange (18??-1906) foi especialmente o coautor, com Edgar Smith (1857-1938), de burlescos (como Pousse Cafe: a dramatic impossibility, 1898), da comédia musical em três atos Mother Goose (1899) e da opereta em dois atos The Little Host (1898). O jornal St. John Daily Sun do dia 15 de março de 1906 informa que ele foi encontrado assassinado em seu quarto no Hotel Mock de Nova York.

[4] Oscar Hammerstein I (1846-1919). Produtor, empresário e compositor, avô do libretista Oscar Hammerstein II.

[5] Sylvia Grey (1866-1958). Essa atriz e dançarina inglesa, apreciada por seus papéis burlescos, trabalhou em dois filmes franceses: Le secret de Rosette Lambert (1920), de Raymond Bernard, e Comment j’ai tué mon enfant (1925), de Alexandre Ryder.

[6] Letty Lind (1861-1923), pseudônimo de Letitia Elizabeth Rudge. Atriz de teatro, dançarina e acrobata inglesa, ela foi a estrela do londrino Teatro Gaiety, célebre por suas Gaiety Girls, e tornou-se uma especialista de Skirt Dance, alternativa da dança de balé particularmente popular do final do século XIX.

[7] Loin du bal (1886). Essa valsa alçou o violoncelista e compositor Ernest Vital Louis Gillet (1856-l940) para a posteridade, em que o artista lírico e autor de melodias Joseph Dieudonné Tagliafico (1821-1900) enxertou as letras. O seu sucesso foi reforçado quando o diretor do Teatro do Casino de Nova York escolheu sua melodia para acompanhar a dança serpentina.

[8] Tio Celestino, opereta em três atos criado em Paris, no Teatro dos Menus-Plaisirs, em 24 de março de 1891. Libreto de Maurice Ordonneau (1854-1916) e Henri Kéroul (1857-1921), música composta por Edmond Audran (1840-1901).

[9] Teatro do Casino, 1404 Broadway (W. 39th), Nova York, NY, Estados Unidos. Primeira sala de espetáculo dedicada especificamente a comédias musicais da Broadway, construída graças à iniciativa de Rudolph Aronson pelos arquitetos Kimball & Wisedell – Francis Hatch Kimball (1845-1919) e Thomas Wisedell (1846-1884). Aronson assumiu a direção de 1882, data de sua edificação, a 1894. Após importantes trabalhos de reconstrução, provocados por um incêndio (1905), o teatro de 875 lugares foi demolido em fevereiro de 1930.

[10] Marshall Pinckney Wilder (1859-1915). Esse comediante e ator é descrito como “pequeno” por Loïe Fuller por causa de seu nanismo – ele foi um dos primeiros artistas com um físico atípico a conhecer a glória. Familiar dos palcos, ele fez algumas aparições no cinema entre 1897 e 1913, especialmente no curta-metragem The Widow’s Might (James Young, 1913), com o roteiro escrito por ele.

[11] Rudolph Aronson (1856-1919). Empresário e compositor norte-americano.

[12] Teatro de Madison Square, 24 St. (5th e Madison), Nova York, NY, Estados Unidos. Fundado em 1865, o Teatro de Hoyt foi dirigido pelo dramaturgo John Augustin Daly (1838-1899) de 1869 a 1873, data em que foi destruído por um incêndio, e depois reconstruído em 1877. Renovado e rebatizado de Teatro de Madison Square em 1879 pelo dramaturgo e ator Steele MacKaye (1842-1894), célebre por suas invenções tanto cénicas quanto tecnológicas (bancos rebatíveis, sistema de ventilação, iluminação a gás…) e também por assumir a direção. O teatro foi demolido em 1908 para dar lugar a um edifício de escritórios.

[13] Minnie Renwood Bemis (18..-?). Dançarina norte-americana popular nos últimos anos do século XIX. Em 1892, Loïe Fuller entrou com uma ação judicial contra ela por infringir seus direitos autorais, mas o juiz do tribunal federal Emile Henry Lacombe (1846-1924) indeferiu a ação alegando ausência de conteúdo “narrativo” ou “dramático” da dança serpentina – a noção de composição dramática era, então, a única força de lei no âmbito dos Direitos Autorais.

 

 

“Como Criei a Dança Serpentina” é o terceiro capítulo da autobiografia Quinze Anos de Minha Vida de Loïe Fuller, a qual foi organizada por Paulo da Mata e Tales Frey e publicada pela eRevista Performatus e NAU Editora em 2017.

 

PARA CITAR ESTE TEXTO

FULLER, Loïe. “Como Criei a Dança Serpentina”. eRevista Performatus, Inhumas, ano 4, n. 16, jul. 2016. ISSN: 2316-8102.

 

 

Tradução do francês para o português de Fernando L. Costa

Revisão ortográfica de Marcio Honorio de Godoy

© 2016 eRevista Performatus e os organizadores

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