Carta Aberta ao Musée d’Orsay

 

Caro senhor,

 

Este é um direito de resposta. Gostaria de escrever mais, porém a queixa que o Musée d’Orsay registrou contra mim incutiu-me um sentimento de inércia: como posso pedir permissão a uma instituição que oficialmente se recusou a considerar a minha performance diante de A Origem do Mundo, de Courbet, como um ato político? Nunca correria o risco de ter o meu acesso ao museu negado. Seria uma autocensura. Mediante a apresentação de uma queixa por atentado ao pudor em 29 de maio de 2014, você enviou uma dramática mensagem ao mundo: a minha performance em A Origem do Mundo, de Gustave Courbet, não seria reconhecida como um gesto artístico pelo Musée d’Orsay. Ao reduzir a minha narrativa em abismo a um ato sexual vulgar de exibicionismo, você enviou uma mensagem bastante violenta para artistas e ativistas que, como eu, utilizam seus corpos como instrumento de reflexão para quebrar limites.

Embora não haja consequências jurídicas, o significado de sua queixa é extremamente grave, e os mecanismos distorcidos que ela revela devem ser abordados. Acusando-me por atentado ao pudor, você influencia o debate público e me deixa na desconfortável posição de defender aquilo que não necessita de defesa. Fui obrigada a responder perguntas humilhantes que nunca deveriam ter sido feitas – que não fazem parte do meu trabalho como artista. Mediante a apresentação de uma queixa por atentado ao pudor, é você que inventa uma transgressão que nunca existiu.

Sua queixa remonta uma séria posição intelectual e artística como algo vulgar e superficial. Acusar-me de atentado ao pudor equivale a censurar-me intencionalmente, fechando a minha boca como se você mesmo a estivesse cobrindo com a sua mão. Em outras palavras, você está a me considerar um objeto.

A exposição intitulada Esplendor e Miséria chegou ao fim. No entanto, ela não poderia ter acabado sem que se desse voz às modelos exibidas. Eu não poderia deixar que essas pinturas fossem novamente penduradas sem deixar que as modelos retratadas recompusessem o modo como o público as vê. O meu ato não é apenas o de deitar-me nua, mas sim o de inverter o ponto de vista da modelo nua. Esta é uma nuance fundamental que lhe peço que reconheça.

Em 2016, a Olympia não é mais simplesmente uma modelo nua posicionada de frente para o espectador: seu olhar é metálico; seu olhar é contemporâneo; é um tipo de lente-olho registrando o olhar do espectador, do guarda, do diretor. Basta abrir os olhos para reconhecer que algo significativo mudou no mundo sobre a questão da nudez, e eu não vou esperar mais para que isso seja reconhecido na arte. Portanto, a Olympia é autora de seu próprio ponto de vista hoje, não amanhã. Colocado em termos simples, em 2016 Olympia possui seus próprios direitos autorais. Em relação à propriedade intelectual, atualmente é proibido tirar fotografias ou filmar dentro do museu. No entanto, para que a modelo seja capaz de manter seu próprio ponto de vista, essas imagens são cruciais. Por isso, peço-lhe deixe isso acontecer.

Na exposição de 2015, finalmente foi levantada a questão: “Quem tem medo das mulheres fotógrafas?” Será que agora ignoramos a implicação óbvia de sua queixa oficial? Parece que alguém está com medo da lente de Olympia.

Olympia são todas as prostitutas penduradas nas paredes de sua exposição. Eu sou Olympia. Acusando-me por atentado ao pudor, você publicamente nega o ponto de vista das mesmas modelos nuas que você expõe, reduzindo-as a meros objetos.

Além disso, ao proibir filmagens, você está deliberadamente impedindo que o ponto de vista delas exista. Este é o motivo pelo qual tive que fazer uma segunda tentativa. Eu queria lhe oferecer a oportunidade de ganhar onde você anteriormente perdeu, de obter êxito onde você falhou, ou seja, queria lhe dar a oportunidade de reconhecer a validade do ponto de vista que eu estava representando: aquele da própria Olympia. Repito e insisto que, quando reencarno a pintura, não exponho a minha nudez; eu exponho a posição de uma modelo nua que olha para o público de hoje e desafia o olhar moderno, inclusive o seu. A sua instituição deve levar em consideração o olhar de Olympia e assim se tornar um exemplo para outras instituições de arte. Exigir que as autoridades apliquem uma lei inadequada é um ato de censura e covardia.

Paradoxalmente, você está rompendo com os princípios das mesmas exposições que você organiza, negando assim, conscientemente, o que as(os) artistas defendem e impedindo mudanças essenciais.

Este é o motivo pelo qual eu não pedi, não peço e certamente não pedirei a sua permissão.

O estado de emergência que enfrentamos no momento não exige o silêncio dos artistas e de ativistas que tentam mudar o mundo. Não é uma época para sermos dóceis e calmos. É preciso ação ou, então, qual é o propósito deles? O que realmente defendemos? E você está conosco?

Por isso, estou lhe pedindo hoje, em 16 de janeiro de 2016, que simbólica e literalmente me permita reverter o ponto de vista de Olympia. Se as suas regras estão ultrapassadas, aproveite a oportunidade para mudá-las. Em outras palavras, Olympia e todas aquelas que ela representa vêm lhe pedir que proteja este olhar ainda invisível. Em vez de chamar as autoridades para me prenderem, seria melhor que elas zelassem pelo meu corpo nu da mesma forma que protegem a Olympia de Manet.

Eu, Olympia, seguro agora um ramo de flores. Por favor, aceite-as e sua aceitação será uma prova de sua vontade em abraçar este olhar.

 

Deborah de Robertis

 

 

PARA CITAR ESTE TEXTO

ROBERTIS, Deborah de. “Carta Aberta ao Musée d’Orsay”. eRevista Performatus, Inhumas, ano 5, n. 17, jan. 2017. ISSN: 2316-8102.

 

Tradução do inglês para o português de Leonardo Soares

Revisão ortográfica de Marcio Honorio de Godoy

Edição de Da Mata

© 2017 eRevista Performatus e a autora

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