Carta à Shirin Neshat

 

Tradução de Ana Ban.

A carta original encontra-se no livro Shirin Neshat, editado por Arthur C. Danto e Marina Abramović, publicado pela Rizzoli International Publications, Inc., em 2010, e foi gentilmente cedida pela artista Marina Abramović para a eRevista Performatus.

 

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Shirin Neshat, Speechless, 1996. Impressão RC. © 1996 Shirin Neshat. Fotografia de Larry Barns. Cortesia de Barbara Gladstone Gallery, Nova York

 

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Cara Shirin,

 

Pareceu estranho para mim compor um texto formal sobre você e o seu trabalho – principalmente porque nos conhecemos e nos admiramos há tanto tempo –, por isso, pensei em escrever uma carta. Como nós duas observamos com frequência, há muitas semelhanças entre o nosso histórico e a nossa persona artística. Ambas viemos para Nova York de terras distantes, abaladas por conflitos e injustiças e maculadas por diferenças sociais e políticas. Não somos apenas emigrantes, mas também nômades de um tipo de caráter peculiar moderno ou pós-moderno. E ambas exibimos, acredito, uma espécie de fragilidade, apesar de tirarmos força dela. Uma carta, então, parecia inteiramente apropriada.

Olhando para o seu trabalho tão marcante em primeira mão, e levando-o em consideração mais uma vez por meio deste livro, sou lembrada de quanta energia é necessária para traduzir experiência pessoal em significado universal. As imagens que você produz colocam perguntas difíceis e fundamentais, ainda ao mesmo tempo em que nos mergulham em histórias que podem parecer estranhamente familiares. Elas abrem uma janela para um mundo que é compreendido de maneira incompleta e nos incentiva a repensar aquilo que tomamos como ponto pacífico. E há muito tempo ressoam com a minha própria prática, no aspecto que ambos exibem um fascínio pelo poder de comunicação do corpo humano, especialmente quando estão em questão relações entre homens e mulheres – ou as narrativas e metáforas que essas interações implicam.

Ao passo que continuo explorando este tema por meio de performances em que me esforço para identificar e estender meus próprios limites físicos e mentais, você formou um corpo de fotografia e vídeo rico e interconectado em que vários personagens representam situações derivadas em parte de experiência pessoal e em parte de mitologia compartilhada. O que chama a minha atenção em especial é o imaginário de oposição binária que você emprega com tanta frequência (e de maneira tão interrogativa), usando-o como parte de uma busca por verdades comuns embaladas em convenção social e religiosa. Os personagens nos seus dramas são ao mesmo tempo personalidades redondas e peões definidos por cores em um jogo antiquíssimo, mas perpetuamente volátil.

Como descobri por meio do meu trabalho de colaboração com Ulay, a interação de um casal pode representar uma variedade de relacionamentos além do romântico, incluindo o político, o espiritual e o societário, de modo mais amplo. Os papéis que homens e mulheres exercem no seu trabalho carregam um peso de história, mas mantêm tanto uma acessibilidade extraordinária quanto um peso emocional raro e inesquecível. Apesar dos locais em que estes dramas se desdobram – lugares remotos e com frequência proibitivos para a maior parte dos espectadores –, você revela continuamente seus temas como sendo próximos de todos, de modo surpreendente e desarmado. E, ao refletir sobre as maneiras como os espectadores se relacionam com seus trabalhos do ponto de vista físico, você os envolve e os implica em um caráter direto absoluto (de fato inevitável) que eu admiro imensamente.

A sua relação com seu país natal, o Irã, é altamente complexa. Mas também é algo que você usa para expressar circunstâncias familiares a muitos. Já faz um tempo que você não vive lá, mas essa mudança emprestou a seu trabalho uma perspectiva importante. Uma nação se define, em parte, por meio de suas diferenças e semelhanças a outra, e isto parece verdadeiro em particular em relação a países em que revoluções ocorreram na memória viva. A Revolução Iraniana reestruturou o país em linhas islâmicas tradicionais, uma mudança que transformou a vida e o trabalho tanto para você quanto para sua família. A sua série fundamental As mulheres de Alá foi uma reação à discrepância entre a cultura em que você foi criada e a que experimentou depois de 1979. No entanto, ao passo que você resiste a representações estereotipadas do Irã e do islã de maneira consciente e consistente, nunca pensei no seu trabalho como dogmático nem exclusivista. Em vez disso, ele reconhece toda a complexidade da identidade muçulmana, especificamente como é percebida por olhos femininos, e toda a riqueza da cultura persa.

Isto não quer dizer que falta uma vertente crítica àquilo que você faz. Muito longe disso. Ao passo que seus primeiros trabalhos pareciam adotar posição neutra em relação à justiça da doutrina islâmica, já faz muito tempo que passaram a ser caracterizados por um tom sabidamente mais subversivo ou até abertamente crítico. De modo semelhante, o seu exame de vidas femininas sob o regime atual jamais poderia ser caracterizado como desinteressado ou desapaixonado. Nós duas somos mulheres do Leste, você e eu, e, como tal, lutamos para revelar e reavaliar atitudes herdadas em relação ao nosso gênero sexual. A sua prática em geral pode ser caracterizada como tentativa de revelar as maneiras como antigas ideias influem em novas circunstâncias, de modo que um encontro de forma e pensamento mais relevante ou sincero parece praticamente inimaginável.

 

Com amor,

Marina

 

 

© 2013 eRevista Performatus e o autor

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