A necessidade de traduzir Alive: (Ao) Vivo (que é um texto introdutório do livro Live: Art and Performance, organizado pelo autor Adrian Heathfield) deve-se ao fato de que, através dele, o leitor é acionado para todo o valoroso conteúdo das palavras e imagens presentes no restante do livro. De um evento ocorrido no museu Tate Modern de Londres em 2003, surgem inúmeras reflexões em torno das artes performativas e a sua inerente relação com o “ao vivo”, bem como sobre a arte realizada na virada do século XX para o XXI, além de motes que ainda permanecem vivos na arte da nossa atualidade.
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Estou defronte de The Pursuit of Oblivion (2004), de Damien Hirst, tentando fitar os olhos firmes de um peixe vivo enquanto desliza, com notável indiferença, sobre o cume aguçado de uma faca de trinchar. Percorre-me um frêmito. Perante essa obra de arte, o tempo vai passando devagar e eu fico preso por um sentimento estranho. A escultura em performance: o objeto está vivo.
A extraordinária escultura aquática viva de Hirst (um enorme aquário que também contém duas peças de carne a emoldurar um guarda-chuva aberto suspenso sobre uma mesa de talhante) concentra, numa única obra, várias das correntes “inquietantes” da prática contemporânea das artes visuais. The Pursuit of Oblivion parece ser mais sobre a apresentação de alguns fenômenos do que sobre a representação de alguma coisa. A brutalidade da colagem tende a obrigar os visitantes a tomar fôlego. Decomposição e beleza exótica, estase e fluidez, o elementar e o ornamental, destruição e preservação, tudo isso lado a lado nessa obra, chocando os sentidos. Ocupando um espaço difícil de categorizar entre a escultura, a instalação e a Live Art, esta é uma obra poderosamente afetiva que produz sentimentos e questões com grande carga emocional nos espectadores.
Oblivion é um habitat minúsculo, em meio a um ambiente superabundante da exposição colaborativa In-A-Gadda-Da-Vida: uma reunião eclética do trabalho de Angus Fairhurst, Sarah Lucas e Hirst. À medida que deambulo pelo espaço transformado da galeria, sinto uma urdidura vibrante do Jardim do Éden: é como se não estivesse sequer numa galeria; é mais como uma feira de diversões, um circo ou um sonho, propiciado por químicos, de um museu de uma história não natural. Pode parecer um local estranho para se experienciar uma performance ou até para servir de início a um livro subordinado ao tema da performance e da Live Art. Mas a forma como Hirst choca as sensibilidades dos espectadores, e algumas das normas culturalmente transmitidas nas quais essas sensibilidades se assentam, não constitui uma novidade. As estratégias estéticas aqui empregues (matéria corpórea, movimento no tempo, objetos vivos e ambientes complexos) têm já um vasto historial na arte da performance e o jogo presente em Oblivion, ali na fronteira entre a vida e a morte, o humano e o animal, o teatral e o elementar, soará familiar a qualquer pessoa que já tenha visto uma obra de Live Art.
Formas e ideais em constante movimento. Os solavancos para a percepção, ambiguidades formais e paradoxos vitais que constituem esse trabalho surgem de uma cena cada vez mais intrincada de práticas das artes visuais, na qual as tradições formais são inflexivelmente quebradas e recombinadas, e a influência estética, filosófica e cultural é viral. Nas artes visuais tem havido uma utilização vincada de objetos táteis e animados, do efêmero, de ambientes e instalações, lado a lado com estratégias artísticas informais, ad hoc, itinerantes e intervencionistas. Oblivion exemplifica algumas mudanças subjacentes fulcrais na arte visual contemporânea: do duradouro ao temporário, do óptico ao háptico, do distante ao próximo, da relação estática à troca fluida. A esse respeito, Oblivion é sintomática de um ímpeto profundo na cultura e arte contemporâneas no sentido da imediatidade, da imersividade e da interação: uma mudança para o (estar/ser) vivo. Nos ambientes altamente tecnologicizados e espetacularizados do ocidente, a produção cultural está presentemente obcecada com a animação, com a vida. Notícias imediatas, celulares, tecnologias de imagem, transmissões pela Web e reality-shows televisivos precipitam-nos em experiências simultâneas, na natureza sentida dos eventos, aproximando-nos das “realidades” que veiculam. As tecnologias dos meios de comunicação de massas cada vez mais aparecem para desaparecer, para negar a distância e a estruturação em que se baseiam. As raízes da tendência cultural ampla para a imediaticidade e interatividade estão indubitavelmente na natureza extremamente atomística das sociedades ocidentais, e na qualidade densamente mediada da experiência cultural nas mesmas. O impulso para reunir tudo aquilo que agora está distante de nós pode consistir num reconhecimento da nossa ligação e interdependência e numa forma de encontrar novas realidades, mas pode também consistir no modo através do qual a “ameaça” dessas realidades pode ser afastada, controlada e contida. A viragem da arte visual para a imediaticidade e interatividade oferece um espaço reflexivo no qual se podem questionar essas dinâmicas culturais, para encenar uma pesquisa perspicaz daquilo que nos é próximo, querido e atual.
Este impulso para o vivo há muito que é a preocupação crítica da performance e da Live Art, em que o evento incorporado foi empregue como força geradora: para chocar, para destruir pertença, para quebrar tradições da representação, para colocar o empírico em primeiro plano, para abrir diferentes tipos de compromisso com o significado, para estimular o público. Este livro versa sobre a vida dessas tradições no presente; sobre o “gênero” da performance e Live Art; sobre o elemento vivo da arte contemporânea, a respectiva estética, potencial filosófico e cultural. Live trata da performance em finais do século XX e inícios do século XXI. Não é uma análise exaustiva, já que tal requereria um livro com o triplo ou o quádruplo do tamanho deste. Em vez disso, procura destacar e abordar alguns dos principais artistas, obras e afirmações atuais de Live Art, explorar algumas das suas preocupações formais e temáticas recorrentes e colocar algumas questões fundamentais sobre o fenômeno da animação, da vida na arte. Como é que a Live Art se enquadra no ambiente contemporâneo da cultura e das artes visuais? Quais são as linhas de correspondência entre a performance e a prática de artes visuais mais abrangentes, entre essas áreas e a ampla ânsia cultural pelo que é (ao) vivo? O que é que a presença desse impulso nos diz sobre as condições da corporização, da identidade e do tecido social em inícios do século XXI?
Live emerge de diversos eventos ao vivo, mas foi criado a partir de energias, diálogos e experiências performáticas intensas do evento Live Culture, que ocorreu no Tate Modern em março de 2003, e cujos curadores fomos eu, Lois Keidan e Daniel Brine. Muitas das excelentes fotografias, que ilustram estas páginas, foram tiradas por Hugo Glendinning nas exibições desse evento. Os ensaios, entrevistas e estratégias que dali surgiram, tal como todos os resquícios de performance, transformaram substancialmente e prolongaram o evento, criando algo completamente novo e diferente.
Um livro com tais perspectivas plurais e ambições diversas estava condenado a ser um fracasso exemplar desde o início: uma só voz não conseguiria abarcar nem condensar o âmbito das diferenças aqui reunidas. Abraçando esse fracasso, gostaria de me delongar um pouco mais nesse espaço do esquecimento (imediato, imersivo, interativo) para traçar algumas linhas recorrentes da prática e do pensamento que, em parte, caracterizam a cena contemporânea da Live Art. Esses pensamentos requerem uma revisão da dinâmica do tempo, espaço e existência corporizada e da relação que tanto preocuparam a prática da arte da performance. Dessa forma, abordarei sumariamente as áreas dos vários contributos para este livro.
Tempo fora do tempo
Os choques causados à percepção, que são frequentemente propiciados pelos artistas Live contemporâneos, similares aos de outros artistas visuais, colocam o espectador em condições de imediaticidade em que a atenção se eleva, a relação sensorial é carregada e o mecanismo do pensamento é agitado. A obra de arte está viva. Parece, pois, que essas condições nos levam, enquanto espectadores, a uma nova relação: para dentro do agora da representação, o momento a momento do presente. Esse encontro com o tempo e no tempo tem marcado a história da arte da performance desde os seus diversos inícios nas artes visuais, no teatro e na prática social. As genealogias estéticas da performance foram admiravelmente delineadas nas obras substantivas de RoseLee Goldberg; linhas de desenvolvimento que ela cuidadosamente revê e atualiza no respectivo contributo para este livro [1]. Desde os primórdios, nos movimentos modernistas como o Futurismo, o Dadaísmo e o Situacionismo, pelo aparecimento através de Happenings e da correspondência com o Minimalismo e a arte conceitual, a performance tem substituído ou qualificado, de forma coerente, o objeto material como um ato temporal. O nascimento da performance dentro e por oposição à forma dramática está igualmente enraizado num comprometimento com o tempo da atuação e o respectivo potencial disruptivo em relação ao tempo ficcional ou narrativo. Para aqueles artistas cujo investimento na performance emerge do ou está direcionado para o estatuto enquanto ritual social, a capacidade de relacionar tempos remotos com o presente, de deslizar para uma temporalidade limiar, é um dos elementos mais vitais.
La Ribot, Panoramix. Tate Modern, Londres, 2003. Cortesia da artista e do fotógrafo Hugo Glendinning. © Hugo Glendinning
La Ribot, Panoramix. Tate Modern, Londres, 2003. Cortesia da artista e do fotógrafo Hugo Glendinning. © Hugo Glendinning
La Ribot, Panoramix. Tate Modern, Londres, 2003. Cortesia da artista e do fotógrafo Hugo Glendinning. © Hugo Glendinning
A Live Art contemporânea recorre atualmente a várias formas diferentes de experiências com o tempo: reduzindo as dinâmicas “conhecidas” e ensaiadas da performance, abrindo-a à improvisação e ao acaso; empregando ações “em espaço e tempo real”; banindo, rompendo ou urdindo a narrativa e o tempo ficcional; agendando exibições para horas “impróprias”; criando obras cuja duração é autônoma e ultrapassa a capacidade do espectador de lhes assistir; apresentando a experiência da duração pelo corpo; apresentando a estética da repetição que desfaz a fluidez e a progressão; e prolongando ou encurtando radicalmente a duração para lá de toda e qualquer convenção existente. Muitas vezes, essas táticas são combinadas entre si. Vejamos, por exemplo, Panoramix (2003), a obra de dança-performance da artista La Ribot, documentada nesta coleção. Trata-se de uma peça de longa duração que combina e repete, em imagem-ação, de forma muito breve, as várias performances da artista nos últimos dez anos. Separados dos tempos normais da programação da performance, os trabalhos individuais que compõem Panoramix parecem demasiado fragmentários e ligeiros para constituírem verdadeiramente performance, ao passo que a grande obra, que os trabalhos juntos acabam por formar, parece ser demasiado prolongada para ser suportada com um mínimo de conforto. Nesta combinação do demasiado breve e demasiado longo, La Ribot informa os espectadores de que estão sob o domínio de uma temporalidade impossível (fugaz e durável), um tempo que não tem um tempo próprio. À medida que o espectador entra no espaço sensório, denso e de progressão lenta dessa obra, o tempo ortodoxo do relógio desliza para os campos imensuráveis do tempo sensorial. As coisas levam o seu tempo e o próprio tempo é exposto como um produto de corpos, sentidos e percepções. Esse tempo, tal como é experienciado, não é o tempo normativo e progressivo da cultura, mas um tempo sempre dividido e sujeito a diversos (per)cursos e velocidades: um tempo saído do tempo.
As variegadas aplicações do tempo alterado na performance contemporânea colocam, invariavelmente, a obra de arte na condição de ela não passar de um evento. Quer surja do choque entre o tempo “real” e o “fictício”, de um ferimento físico efetivo ou da densidade excessiva de eventos encenados, a carga de atenção empregue por muitos artistas Live contemporâneos coloca o espectador dentro do momento presente em que se cria e se destrói a significação e o sentido. Essa condição é, amiúde, incontestavelmente instável e ambivalente, pois embora a “presença” do artista ou do espectador no momento possa ser um pré-requisito, a natureza transiente e elusiva dessa presença torna-se o tema da obra. Como se costuma dizer: tinhas de lá ter estado! Porém, o “lá ter estado”, no cerne das coisas, recorda-nos a impossibilidade de alguma vez se estar completamente presente para o próprio, para os outros ou para o trabalho artístico. A qualidade de ser um evento permite aos espectadores viverem um instante no paradoxo de dois desejos impossíveis: estar presente no momento, saboreá-lo, e guardar o momento, aquietar e preservar o seu poder mesmo muito depois de ser passado. Essa é uma estratégia deliberada de muitos artistas da Live Art, colocando a recepção da obra nas condições elusivas do real, em que a relação entre a experiência e o pensamento pode ser testada e rearticulada. As diversas obras-limite de Franko B são um exemplo. Recorrendo ao corpo cortado ou aberto em determinadas exposições à duração, Franko apresenta eventos performáticos simples com uma carga intensíssima, nos quais o ato de ferir é colocado dentro e em oposição a contextos relacionais específicos. A sua assombrosa peça I Miss You! de 2003, também aqui documentada, ocorre durante o breve lapso de tempo de uma perda de sangue especificamente medida. O sangramento escorre ao longo de um percurso repetitivo sobre uma tela disposta como uma passarela perante a assistência. A abjeção de Franko, silenciosamente envolvente, o sangue vermelho contra o branco, o derramamento mudo do seu interior sobre as superfícies diante dos nossos olhos, faz com que dificilmente consigamos estar fora do evento. Na servidão de eventos assim, como Tim Etchells astutamente afirmou, somos mais testemunhas do que espectadores, envolvidos num espaço vibrante entre a experiência e o pensamento, lutando num presente carregado para acomodar e resolver o imperativo de criar sentido(s) a partir daquilo que vemos. Nas palavras de Henry M. Sayre, no ensaio que escreveu para a coleção sobre a natureza da duração, esse tipo de obra de arte exige de nós que a refaçamos com a imaginação.
Forced Entertainment, 12 AM: Awake & Looking Down. Tate Modern, Londres, 2003. Cortesia dxs artistas e do fotógrafo Hugo Glendinning. © Hugo Glendinning
A ampla tendência da performance contemporânea para a imediaticidade, presente não só nas práticas que têm por base os limites físicos, a resistência ou a dor, permite aos artistas criarem obras cuja força viva é excessiva. A incompreensão popular reduz, frequentemente, as forças estéticas e as consequências culturais desses movimentos a uma noção genérica de “estratégia do choque” que supõe uma fixação e um gosto superficial exatamente por aquele momento do “trauma” de um espectador. Todavia, os interesses dos artistas Live só muito raramente residem nesse pequeno pomo de dificuldade, pois residem muito mais nas suas implicações e consequências, no curso complexo traçado pela consciência até aos valores sociais e culturais, de fora. A performance no excesso tende a evidenciar que o evento do respectivo encontro, como dizem os teóricos do trauma, é constituído pelo colapso do seu entendimento. Assim, os artistas conseguem criar fissuras ou buracos na percepção e na interpretação, desestruturando o pensamento, fazendo com que os espectadores voltem repetidamente à questão levantada e em aberto da enunciação da obra. Para muitos artistas Live, essa é uma forma de criticar normas culturais, percepções fixadas e valores sedimentados que pertencem ao corpo, à identidade e à sociedade. Expondo a criação das ideologias e crenças culturais no presente, estas ficam marcadas como dependentes de uma época: ficam com a contingência e a instabilidade abertas ao escrutínio. Veja-se, por exemplo, a obra de Forced Entertainment, 12 AM: Awake & Looking Down, de 2003, com a duração de doze horas, “capturada” nesta recolha, em que os performers pedalam, de forma incansável, através de um catálogo aparentemente infinito de nomes, fatos, posições e relações, presos numa tentativa condenada ao fracasso de encontrar uma duração prolongada da identidade. Uma consequência desse trabalho, entre muitas outras, está na exploração da nossa dependência psicológica e social, em todas as suas ramificações, da denominação e da identidade: a busca de estabilidades através das quais possamos ver a nós e aos outros e pelas quais possamos reger a nossa vida.
Contudo, esses movimentos da performance não são apenas sobre a sujeição do trabalho artístico às vicissitudes e encantos do tempo; muitas vezes eles assumem o próprio tempo como tema da sua abordagem. Essas experiências na performance e da performance consciencializam-nos de que o próprio tempo é um produto de estruturas de pensamento, que as nossas percepções e entendimentos sobre o tempo são uma construção cultural e, por isso mesmo, estão sujeitas a revisões e alterações. Ao abordar e criticar as noções de tempo, a performance consegue também enfraquecer estruturalmente algumas das narrativas e forças culturais mais resistentes do nosso tempo: o progresso da dita civilização, a acumulação de cultura. O escrutínio que a performance acarreta para a temporalidade tem, pois, um significado vital nas culturas aceleradas do capitalismo recente. Aqui o tempo tornou-se uma mercadoria extremamente regulada: a celeridade é o valor primordial e tempo desperdiçado é dinheiro perdido. Representando com frequência um gasto contemplativo e esbanjador do tempo, a performance dá continuidade à sua longa disputa com as forças do capital. Uma tática recorrente consiste em abrandar as coisas, examinar o gesto, a relação, entendendo a produção não apenas enquanto processo, mas como fenômeno muitíssimo mais lento. As obras “duracionais” da companhia de performance Goat Island, de Chicago, são exemplo disso. Suas performances elaboradas de fragmentos gestuais, textuais e sonoros são aqui documentadas através de resquícios fílmicos e pelas reflexões poéticas da diretora Lin Hixson. Como as ausências e reescritas dos textos em palimpsesto dessa companhia evidenciam, a sua estética de lentidão procura encenar uma forma alternativa de prática comemorativa, tão atenta ao silenciado e esquecido como ao que pode ser lembrado e, assim, reencenado.
Os movimentos de lentidão (slow) proporcionam uma oportunidade para desabituar e desnaturalizar percepções do tempo, para des-ligar as exigências tão predominante na cultura contemporânea de relações instantâneas entre arte e significado, intenção e realização, desejo e cumprimento. Assim, a performance pode reintroduzir maneiras de ser/estar e entendimentos menos apressados. Os poderes que constroem conhecimentos e experiências sociais do tempo tentam, inevitavelmente, esconder e naturalizar a sua força, para tornar invisível a sua operação sobre as pessoas. A performance tornou-se um meio vital através do qual se pode contestar a natureza e os valores desses poderes e aligeirar o domínio controlador. Na atenção prestada às ordens do tempo e na subversão brincalhona das mesmas, a performance abre portas a outras temporalidades: para o tempo como é sentido no corpo, tempo não apenas como progressão e acumulação, mas também como algo hesitante, não linear, multidimensional e multifacetado.
Deslocações
O fato de a performance privilegiar e analisar o tempo dentro da obra de arte e da atenção que o espectador lhe dedica tem sido frequentemente acompanhado por uma exploração da dinâmica do espaço. Embora os fenômenos do espaço e do tempo sejam inseparáveis, o discurso em torno do espaço em termos de forma, funcionamento e política tende a dominar na escrita crítica sobre a performance, bem como na encenação e na estética. Nos contextos urbanos do ocidente, o espaço público cedeu perante o espaço privatizado, onde o gregarismo é condicionado por um individualismo dominante e a ação é rigorosamente regulada e cuidadosamente observada. Cada vez são mais expostas a moldagem e a contenção do espaço cultural através das operações de lugar. Graças à expansão das novas tecnologias, emergiram novos lugares em campos virtuais, de tal forma que a nossa experiência do espaço se situa atualmente entre a proximidade e a distância, entre um espaço virtual expansivo e um real instável. Essas mudanças no espaço e no lugar têm sido o contexto e o catalisador para a performance se tornar cada vez mais migratória, desafiando as forças que procuram estabelecê-la num local, deixando os lares institucionais, levando um curso inquieto e errante para outros lugares, outras esferas da arte e da vida, “situando-se” onde o ditem as necessidades de expressão, relação e finanças. Nessa migração, a performance tornou-se num meio com o qual se testam as bases e as fronteiras da identidade, num meio para se colocar o mesmo em novas relações com os seus “exteriores” e terceiros. Tendo saído de casa, a performance provou incansavelmente a sua inigualável capacidade de gerar novas formas de relação, de colaboração e de comunidade que negociam e atravessam divisões que, em outros tempos, já foram sólidas.
Desde que os artistas de finais dos anos de 1960 e início dos anos de 1970 se apartaram das restrições associadas às galerias, dos predecessores imediatos, para passarem a outros locais de prática criativa, a arte da performance tem-se mantido coerentemente próxima de uma arte específica de determinado local na investigação do assunto, da concepção e da percepção do espaço [2]. As contínuas fugas dos artistas dos locais institucionais de produção performática, sejam galerias ou teatros, são um desafio à propriedade do local e àquilo que é operado em quem o habita. O lugar, longe de ser neutro, é encarado por muitos artistas Live como uma força que se deve abrir e à qual se deve resistir. O lugar é aqui o produto de determinadas ideologias ou bases racionais que ordenam a sua arquitetura, práticas habituais, movimentos físicos e encontros sociais que acontecem nesse lugar. Quer aconteça nas ruas, nos parques, em armazéns abandonados, estações, hotéis, escolas, em locais de trabalho ou em espaços domésticos, seja em contextos urbanos ou nesses lugares de “natureza” denominados como “outros” relativamente aos urbanos, a performance é frequentemente usada como um meio para testar e transformar o espaço. Tomemos o exemplo das diversas obras, específicas de determinado local, da performer britânica Bobby Baker, que examinam e articulam as gradações e experiências da vida cotidiana. Baker mina a vida interior, as relações de objetos e os micromundos de atividades, como cozinhar, ir às compras e cuidar dos filhos, muitas vezes nos mesmos lugares onde acontecem essas experiências. Quer a sua obra Kitchen Show (1991), realizada em sua própria casa, quer a apresentada neste livro e mais recente, Box Story (2001), desenvolvida numa igreja, examinam e reestruturam atos rituais localizados e, ao fazê-lo, encenam transformações temporárias desses lugares e das respectivas práticas associadas a eles. Cada vez mais, os locais onde esse tipo de intervenção performática pode ocorrer não se limitam a lugares materiais e podem, efetivamente, ser lugares de informação ou de discurso. Veja-se, por exemplo, a discussão de Ricardo Dominguez sobre a utilização que o Electronic Disturbance Theatre faz das táticas de performance e da pirataria em locais da Web estatais oficiais para subverter o fluxo de informação e, dessa forma, o poder estatal.
Desde obras de arte extremamente formais e empenhadas nas relações estéticas entre corpos, movimento e arquitetura, até às agitações mais tensas da arte ativista, a performance é utilizada como uma intervenção dentro do espaço social e um meio de rearticular a sua constituição. Nesse jogo de corpos no espaço, a performance é repetidamente uma inserção do impróprio ou do absurdo num determinado lugar, e ocorre um certo realinhamento e ativação através dessa intervenção, abrindo possibilidades antes invisíveis ou proibidas na realidade social. Considere-se, por exemplo, The Disciples (2000), de Brian Catling, uma série de atos rituais silenciosos realizados em vielas, sarjetas e soleiras de porta de Londres e Cambridge com estranhos manequins quebrados: performances que marcam e valoram a vida “marginal” que pulula nesses lugares. Conforme Andrew Quick refere nestas páginas, na sua análise inicial do teatral enquanto local, a performance tende a funcionar em termos de deslocação, subvertendo ou usurpando lugares, desbloqueando a formação, questionando os pensamentos, discursos e denominações pelos quais um local está solidamente constituído. A performance encena uma transgressão sentida e interrogativa de fronteiras, um processo de ruptura que coloca em questão as próprias oposições de que o local é formado. Pensemos nas diversas incursões vitais no espaço público do performer Alastair MacLennan, que revê as coordenadas e princípios do labor artístico de toda a sua vida nestas páginas. As suas “atuações” (performance/instalações) são intervenções que reordenam o espaço e a relação, muitas vezes interpondo calmamente aquilo que foi violentamente excluído ou esquecido num lugar. Aqui, como em muitos exemplos da Live Art contemporânea, pode revelar-se e desafiar-se um conjunto de associações emocionais, psicológicas e políticas que se agrupam em divisões espaciais: o presente e o ausente, o interior e o exterior, o privado e o público, o urbano e o selvagem, o refreado e o livre, o que é “nosso” e o que é “deles”.
Nos espaços estabelecidos da cultura global, as noções de lugar e as fronteiras que as constituem foram profundamente rompidas, desestabilizando as identidades que tinham sido fundadas sobre a integridade das mesmas. À medida que as fronteiras nacionais e culturais são abertas, encontram-se outras formas de ser e de pensar, diferenças assimiladas, acomodadas ou, como frequentemente acontece, agressivamente repelidas. A performance opera por meio de um sujeito performativo que testa a sua relação com um lugar; assim, é o lugar de teste da pertença. A performance permite que artistas e espectadores (tornados inseparáveis um do outro) experienciem e pensem até que ponto uma determinada identidade, ou a própria subjetividade, está ancorada num lugar físico ou nos respectivos determinantes discursivos. E isso para questionar até que ponto pode um sujeito afastar-se das amarras do lugar.
Mundos da carne
As trajetórias da performance e da Live Art em termos de experimentação com tempo e espaço envolveram, necessariamente, a exploração, uso e observação do corpo humano. Afastando-se da representação do sujeito humano que se encontra na pintura e da representação que o artista faz de si nos autorretratos, os artistas do século XX entraram progressivamente dentro da moldura, usando os próprios corpos como lugares de experimentação e de expressão. A emergência desse gesto através dos vários momentos do modernismo foi traçada, a par da manifestação como gênero forte da Body Art de finais dos anos de 1960 até aos nossos dias [3]. A correlação entre a arte da performance e o corpo em movimento da dança, enraizada na estética minimalista dos coreógrafos experimentais dos anos de 1960 e de 1970, mantém-se presente, com práticas como as de Jérôme Bel e de La Ribot, aqui documentadas. Neste volume, André Lepecki avalia, cuidadosamente, a relação da dança como performance com noções históricas e filosóficas de movimento. A performance contemporânea continua numa trajetória de incorporação, na qual o corpo do artista, os respectivos adornos, ação e resíduos não são apenas o sujeito, mas também o objeto material da arte. A entrada física do corpo do artista para a obra de arte é um gesto transgressor que confunde as distinções entre sujeito e objeto, vida e arte: um movimento que desafia as propriedades assentes nessas divisões. A performance explora o estatuto paradoxal do corpo enquanto arte: tratando-o como objeto num campo de relações materiais com outros objetos e, simultaneamente, questionando a sua objetificação através da representação do corpo como ruptura ou resistência à paralisação e fixidez. A entrada do corpo na moldura garante que a exploração que o artista faz dos significados e ressonâncias da corporização contemporânea será recebida em (e através de) uma relação intersubjetiva fenomenal.
Marina Abramović, The House with the Ocean View. Performance. Sean Kelly Gallery, Nova York, 2002. Fotografia de Steven P. Harris
O uso do corpo do artista levou a que se questionasse a relação entre o próprio e o outro. Para artistas como Marina Abramović, aqui entrevistada, cuja prática, desde a década de 1970, tem estado na primeira linha na performance dentro da esfera das artes visuais, isso tem significado uma investigação elementar da dinâmica psicológica e somática da relação humana íntima e, mais recentemente, a exploração dessa relação através da “divisão” performer-espectador. A divisão é precisamente aquilo que a performance põe em questão, interrogando o contrato, frequentemente não verbalizado, que existe entre as duas partes e as noções éticas, morais e políticas nas quais ele se baseia. Esta cena incorporada da relação, como evidencia a discussão de Peggy Phelan sobre a mais recente obra de Abramović, The House with the Ocean View (2003), é uma zona de trocas imprevisíveis onde se põem em risco sentidos, emoções e intelecto. A obra de Abramović, como a de artistas como Ron Athey (também aqui documentado), cujas performances incluem atos de penetração, perfuração e escarificação, tem envolvido repetidamente riscos físicos e respectivas ressonâncias internas, nas consciências, e externas, na esfera político-cultural. Esse tipo de investigação evoca as relações de poder entre o próprio e o outro e, em consequência, as dinâmicas do prazer e da dor, do desejo e da repulsa, do amor e do ódio que perpassa essa relação. O corpo do artista é des-naturalizado e usado como objeto mutável nessas intensas experiências performáticas. Os limites, ações e aspecto são muitas vezes manipulados e transformados energicamente para refletir as forças violentas em jogo na relação incorporada.
Amelia Jones, que escreveu proficuamente sobre a história da Body Art e respectiva investigação sobre a formação da subjetividade e da relação, encontra espaço nestas páginas para articular um conjunto de “movimentos” temáticos de fleshworks (obras da carne) na prática performática contemporânea. Para Jones, o uso que o artista faz do corpo como matéria artística pode ser encarado através do jogo de relações entre a superfície e a profundidade, a pele e a carne, a imagem e a matéria, a consciência e a experiência corpórea, o exterior e o interior. Amelia Jones vê nessas mutações radicais dos campos fenomenais da relação entre artista e espectador, a capacidade de reorganizar as histórias do pensamento, coordenadas do poder e sistemas de representação que moldam o sexo, o gênero e a etnicidade. A relação entre materialidade e discurso, restrição e liberdade, sujeição e ação, que forma uma parte das análises que os artistas fazem do lugar, é ainda mais flagrantemente evidente nessas explorações ao vivo da existência encarnada. Essas questões emergem, não só por se quebrarem barreiras do corpo, como também na própria apresentação em condições extremas. Vejam-se, a título de exemplo, as performances de resistência de rua de um artista como William Pope.L, que também colabora conosco, cujo trabalho testa os limites tão reais às oportunidades dos que nasceram num corpo negro na América contemporânea.
Guillermo Gómez-Peña & La Pocha Nostra e Manuel Vason, Collaboration #5, Liverpool, 2002
O corpo performativo é muitas vezes apresentado como um lugar de contestação entre duas dinâmicas opostas: como recipiente passivo para ser inscrito por instituições sociais, por discursos culturais, ideologias e por ordens de poder, e como agente ativo através do qual a identidade e a relação social podem ser testadas, rearticuladas e refeitas. Essa dinâmica paradoxal ecoa através das diversas discussões dos poderes políticos dos corpos performativos encontrados nestas páginas. O eco sente-se, por exemplo, na resposta poética de Matthew Goulish ao trabalho de Jones, Athey e Oron Catts, aqui reunido, no reiterar da noção de que a sujeição é um lugar de ação através do qual pode acontecer a transformação. Encontra (con)figuração na invocação de Jean Fisher do performer como embusteiro. Perpassa a discussão de Guillermo Gómez-Peña acerca do organismo radical da arte da performance em relação aos estereótipos culturais e projeções de alteridade étnica à larga nos meios dominantes da cultura ocidental da atualidade. Através de recombinações jocosas, ainda que interrogativas, de imagens populares de “outras etnias”, Gómez-Peña tenta subverter as lógicas culturais que tornam os outros alvos de fetiches, seres exóticos, marginalizados e desprezíveis. O discurso de Gómez-Peña a esse respeito e a documentação da sua prática performática e da dos seus colaboradores do La Pocha Nostra revelam uma consciência quer das capacidades transformadoras da performance corporizada quer dos meios através dos quais esses atos podem ser rapidamente recuperados dentro das economias incansáveis da objetificação, da representação e do consumismo que caracterizam o ocidente.
O desenvolvimento tecnológico causou igualmente um profundo impacto no estatuto, na imagem e na concepção do corpo na cultura contemporânea. Também esse é cada vez mais analisado e aberto pelas tecnologias, tornando-se um lugar cuja construção na cultura e através da cultura está evidentemente em questão. Como o meio cultural das últimas sociedades capitalistas ocidentais é cada vez mais densamente mediado e irreal, pode parecer que o corpo se oferece como último reduto onde se pode encontrar e sentir o real. Mas embora elementar, este “corpo real” é muitas vezes o próprio tema tratado na performance. Alguns artistas Live, como Stelarc, cujo uso de próteses e extensões virtuais do seu ser corpóreo está aqui registrado e abordado, questionam a validade e a integridade do interesse cultural resiliente no “corpo real”, anunciando, em vez disso, a “obsolescência” iminente do mesmo. A Live Art, com o seu historial de testar limites físicos e psicológicos, com o enfoque persistente sobre o corpo performativo, oferece-se como um lugar primordial onde se podem desenrolar os impulsos da cultura mais abrangente com vista à integridade e dissolução corpóreas. Nesse lugar somático de testes, a performance apresenta e interroga as transformações do material basilar e dos significados fundacionais da existência carnal.
Vida elementar
A investigação da matéria da vida, o seu desmantelamento e apresentação em nudez, na performance e na Live Art, não se limitam ao corpo humano e ao ser humano. Os artistas Live há muito que utilizam corpos de animais, vivos e mortos, para questionar os limites definitivos da cultura e da natureza, do humano e do animal. O performer russo Oleg Kulik, cuja imagem embeleza a capa deste livro, tem estado na primeira linha dessa interrogação. Kulik é sobretudo conhecido pelas suas performances irrefreadas como cão. Essas performances fazem parte da série Zoophrenia, na qual ele declara que temos de renunciar ao antropocentrismo, à linguagem da cultura humana, e comungar com a natureza animal, de forma a reanalisar os valores da arte, da cultura e do intercâmbio humano. A representação que Kulik faz do cão leva o mimetismo a um limite excessivo; aqui as polaridades de cão-homem parecem oscilar, colidir e colapsar. É interessante notar a diferença entre esse trabalho e o agora famoso encontro de Joseph Beuys com um coiote, que Kulik claramente referencia, I Like America and America Likes Me (1974), e nessa diferença há um jogo entre os polos separados do humano e do animal. Outro tipo de ser indeterminado surge nas performances de Kulik como cão, em que os espectadores começam a encontrar o animal dentro do humano e vice-versa, pelo que está em questão a respectiva diferença fundacional. Para lá de um espetáculo de abjeção, as performances do cão são um encontro, um tombo, uma apresentação do ser em estado alterado a ponto de se tornar um animal e nessas performances se sentem subitamente as implicações dos perigos e possibilidades.
Oleg Kulik, Armadillo for Your Show. Tate Modern, Londres, 2003. Cortesia do artista e do fotógrafo Hugo Glendinning. © Hugo Glendinning
Esses gestos nos limites do ser humano aumentam o interesse da performance não no que é essencialmente humano, mas na sua constituição elementar. Na obra Armadillo for Your Show (2003), registrada nesta coleção, Kulik girou lentamente durante mais de uma hora como uma estrutura humana de espelhos suspensa em altura no espaço Turbine Hall do Tate Modern, acompanhado por uma mistura eclética de música arrebatadora. Parte pássaro, parte humano, parte estátua, girando e parado, hirto e relaxado, vendo e sendo visto, sendo visto para ver, é uma imagem em ação que não é um objeto mas um gesto realizado no jogo entre o material e o imaterial, entre a absorção e a emanação da luz. Houve aqui uma poderosa invocação do encontro cara a cara com a alteridade que a performance frequentemente encena, e da força imperativa do elementar que lhe acontece no interior. Embora seja possível ler essa obra em relação com a política da cultura popular, com o mercado da arte, com a figura e com a autoridade do artista, é mais importante dizer que há uma abertura irredutível nessa obra através do elementar, do animal e do humano, do natural e do cultural. O que Kulik apresenta é uma abertura sensacional para outra forma de ser: abjeta, liminar, sem identidade. O despertar do humano-animal é uma recordação inevitável da proximidade da rasura, da precariedade da vida.
Esse jogo com o elementar é também evidente nos espetáculos intensamente teatrais do realizador Romeo Castellucci, cujo trabalho também aqui está documentado. Com a sua companhia, a Socìetas Raffaello Sanzio, Castellucci encenou em várias cidades europeias uma série de obras de grande escala, específicas em cada país. A simples apresentação feita por Castellucci dos corpos dos intervenientes na performance, corpos marcados pela abjeção e alteridade (feridos, anoréxicos ou contorcidos), é nivelada pelo seu interesse na presença humana de extremos etários e na vida de animais no palco. Embora cada um seja figurado dentro das estruturas complexas do espetáculo e da narrativa, Castellucci volta repetidamente aos afetos elementares do velho, da criança e do animal, às questões que a presença destes coloca com relação aos limites definitivos da humanidade e relativamente aos corpos mortais a que essas noções estão associadas. Nas palavras de Alan Read, nas notas de encerramento sobre a “vida a nu” que estão presentes neste livro, essas aberturas estéticas inauguram questões biopolíticas, interrogando a designação e o significado do sacrifício, desfazendo a lógica pela qual as autoridades culturais colocam certos corpos em condições de exceção e exclusão do que é humano.
O encontro da Live Art com as novas tecnologias e o interesse pelos limites da existência corpórea também colocaram sob uma observação mais cuidada os fatos e significados da vida biológica. Neste trabalho, pioneiro na pesquisa artística e, por vezes, até científica, a Live Art enfrenta alguns dos problemas morais e políticos mais difíceis de inícios do século XXI. A obra de Oron Catts com o Tissue Culture & Art Project, que o próprio aqui aborda, desafia valores e percepções fundamentais em torno da função social da arte e da ciência e começa a dar os primeiros passos no empenho crescente da Live Art nas questões da biopolítica. O desenvolvimento de “obras de arte semivivas” (esculturas de tecido vivo criado fora do corpo) representa uma perturbação complexa e até então pouco teorizada de alguns princípios fundamentais do humanismo: o entendimento do ser como integral, indivisível e unitário e a respectiva separação ontológica de outras formas de vida, particularmente da vida animal. A aliança histórica entre as biologias experimentais e os projetos eugênicos fascistas, e a recente prossecução politicamente motivada de membros do Critical Art Ensemble, cuja prática performática e artística (como a de Catts) encena uma investigação radical das implicações das biotecnologias, deveriam alertar-nos para os potenciais políticos profundamente divergentes dessas experiências na fronteira da arte e da ciência. Embora a história seja longa, o questionamento artístico ao vivo da vida elementar ainda acabou de começar.
Esses gestos, que perpassam a performance e a Live Art, as contínuas obsessões com o tempo, com o espaço e com a existência e a relação incorporada, apontam para algumas ligações estéticas, filosóficas e políticas entre os diversos contributos artísticos e críticos aqui reunidos. A lógica desta reunião e o âmbito do seu alvo ultrapassam em muito os limites simples do discurso. Por isso, espero que este livro seja quase como um evento. Vale sempre a pena reiterar, nas palavras introdutórias e nas finais, como as fotografias de performance ficcional de Hayley Newman aqui reunidas nos recordam, que o documento da performance é uma nova versão criativa, um remake, cujo referente se mantém ausente, com insistência [4]. Os pensamentos e as palavras aqui compilados, à semelhança das reveladoras fotografias de performance de autoria de Hugo Glendinning, ambos acertam e falham no que diz respeito aos momentos ao vivo que tentam capturar, mas, ao fazê-lo, permanece algo, da vida deles e do (ser/ estar) vivo.
NOTAS
[1] Ver: RoseLee Goldberg, Performance: Live Art Since 1960, Nova York, 1998; RoseLee Goldberg, Performance Art: From Futurism to the Present, Londres, 1979 (com tradução brasileira: A Arte da Performance – Do Futurismo ao Presente, São Paulo, Martins Fontes, 2016). Ver também: Paul Schimmel (ed.), Out of Actions: Between Performance and the Object 1949-1979, Londres, 1998.
[2] Eis os textos fundamentais sobre essa relação: Carter Ratcliff, Out of the Box: The Reinvention of Art 1965-1975, Nova York, Allworth Press: School of Visual Arts, 2000; Miwon Kwon, One Place After Another Site-Specific Art and Locational Identity, Cambridge, Massachusetts, MIT Press, 2002; Nick Kaye, Site-Specific Art: Performance, Place and Documentation, Londres, Routledge, 2000; Mike Pearson e Michael Shanks, Theatre/Archaeology, Londres/Nova York, Routledge, 2001.
[3] Os principais textos aqui são: Lea Virgine, Body Art and Performance: The Body as Language, Milão, Skira, 2000; Amelia Jones, Body Art: Performing the Subject, Mineápolis, University Minnesota Press, 1998; Tracey Warr (ed.), The Artist’s Body [com um contributo de Amelia Jones], Londres, Phaidon, 2000; Kathy O’Dell, Contract with the Skin: Masochism, Performance Art and the 1970s, Mineápolis, University Minnesota Press, 1998; Francesca Alfano Miglietti, Extreme Bodies: The Use and Abuse of the Body in Art, Milão/Londres, Skira/Thames & Hudson, 2003.
[4] Para mais textos sobre estratégias críticas, documentais e criativas a respeito dessa ausência, conferir: Peggy Phelan, Unmarked: The Politics of Performance, Nova York, Routledge, 1992; Adrian Heathfield, Fiona Templeton e Andrew Quick (eds.), Shattered Anatomies: Traces of the Body in Performance, Bristol, Arnolfini Live, 1997; Tim Etchells, Certain Fragments: Contemporary Performance and Forced Entertainment, Londres, Routledge, 1999; Matthew Goulish, 39 Microlectures: in Proximity of Performance, Londres, Routledge, 2000.
PARA CITAR ESTE TEXTO
HEATHFIELD, Adrian. “Alive: (Ao) Vivo”. eRevista Performatus, Inhumas, ano 2, n. 9, mar. 2014. ISSN: 2316-8102.
Tradução do inglês para o português de Susana Canhoto e Adrian Heathfield
Revisão ortográfica de Marcio Honorio de Godoy
© 2014 eRevista Performatus e o autor
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