Sob o Traje de Gala, de Galo, de Carne, Depenado, de Penas… Engalado, Victor de La Rocque é uma Criação de Animal (Ir)racional

 

Victor de la Rocque, Aqui estão minhas asas / primeira variação (Tríptico), 2011

 

É através de um parâmetro que podemos melhor distinguir o nosso próprio corpo com relação ao do outro – seja o real e virtual em confronto, a massa tangível diante do seu espectro ou o “eu” em contraposição direta com o “outro” – e, sendo assim, é mediante à sociedade que podemos esclarecer também quem de fa(c)to nós somos e, talvez, seja justamente este o motivo que tenha feito Victor de La Rocque buscar, com veemência, o ambiente público para proliferar grande parte do seu discurso visual e, a partir dele, introjetar experiências para si em sua arte, a qual de forma alguma descarta uma legítima vivência. Claro, a experiência acaba por ser recíproca, porque o seu corpo destacado na multidão também é referencial para os outros corpos que ali se analisam quando ponderam o artista em sua performance. Nesse sentido, o trabalho funciona como um estudo antropológico num contexto específico escolhido, levando em conta o espaço e quem o habita, tal qual fazia Flávio de Carvalho com suas chamadas “experiências” realizadas até o início da segunda metade do século XX. Tanto no trabalho de Flávio de Carvalho como no de Victor de La Rocque, o artista e o observador são interpelados concomitantemente por uma determinada situação.

 

Victor de la Rocque, "Gallus Sapiens parte 2", 2008. Fotografia de Luciana Magno.

Victor de la Rocque, Gallus Sapiens parte 2, 2008. Fotografia de Luciana Magno

 

O primeiro “habitat” para Victor atravessar com seu corpo dotado de uma ousada animalidade foi a cidade de Belém durante o evento Arte Pará de 2008, e, nessa situação, o “traje de gala” adveio das galináceas em entretons castanhos e pela sua nudez poupada por um discreto short camuflado na mesma tonalidade da sua pele. Ali, o artista expôs sua criação sobre uma espécie de passarela/poleiro quando sobe no Memorial da Cabanagem, de Oscar Niemeyer, dando vazão à compreensão de que “a anatomia não é mais um destino, mas um acessório da presença, uma matéria-prima a modelar, a redefinir, a submeter ao design do momento” [1] e a animalidade (tão presente nas suas criações) funcionava ali, sobre aquela rampa de concreto, como o conceito principal do seu desfile. A performance ocorreu em Belém pela primeira vez em três ações que se chamavam: “Glória Aleluia e a mão de Deus”, “Come, ainda tens tempo” e “Entre os meus e os seus”.

Um outro “habitat” escolhido por Victor de La Rocque, para transitar adornado com vinte galinhas vivas acopladas diretamente sobre o seu corpo, foi a cidade de Vitória (Espírito Santo, Brasil) e, nessa outra situação, o seu corpo nu era “engalanado” pelas tonalidades brancas e negras das penas, as quais não apenas substituíam um possível vestuário – elemento imprescindível para percorrer ambientes públicos –, mas fundiam vários corpos em um único corpo híbrido, metamorfoseando um homem em animal e vice-versa, o que está completamente claro no título da ação Gallus Sapiens parte 2 (2008-2011). Nessa variante, o artista veste-se unicamente com as galinhas sem utilizar qualquer outro indumento sobre o seu corpo.

Aplicada diretamente sobre a sua própria massa corpórea em circunscrição direta com o ambiente, a peça conceitual faz sobre a pele (e por meio dela) uma menção a trabalhos de body modification mais literais, em que o artista realmente se converte de forma definitiva à sua invenção animalesca. Basta testemunharmos, por exemplo, a silhueta de Erik Sprague, conhecido como homem lagarto, que, por meio da tatuagem, imita sobre si a pele do animal em questão. 

 

Victor de la Rocque, O senhor é meu pastor e nada me faltará, 2012

 

A peça de Victor de La Rocque possibilita ainda o confronto com uma obra igualmente polêmica – quando envolve morte de animais – e simbólica – por não haver a modificação corporal estrita na mescla entre humano e animal – do artista brasileiro Rodrigo Braga, em que ele supostamente, com auxílio de programa de edição de imagem, implanta partes de um cachorro no seu rosto.

Há, na ação de Victor, uma síntese de corpos em muitos aspectos, sendo o animal racional miscigenado com o irracional, o macho combinado com fêmeas, o depenado com o lotado de penas, o mamífero com as aves etc. O corpo construído de vidas diversas (estando algumas delas aos frangalhos) evidencia uma carcaça que é a metáfora de uma mestiçagem, uma alegoria de uma mistura fortemente presente em nossa cultura, que é inegavelmente uma parte proeminente do que nos constitui.

Em uma fatídica situação, a violência aplicada contra as aves foi naturalmente alvo de repúdio pela Sociedade Vegetariana Brasileira, que conseguiu anular, através de um mandado de intimação, a apresentação do artista na cidade do Rio de Janeiro durante o Festival Performance Arte Brasil no dia 23 de março de 2011. Mas se pensarmos num outro possível desfecho para estes animais que foram poupados do sofrimento (algo imprescindível para que a ação acontecesse), podemos concluir que não haveria caminho que não fosse tortuoso. Talvez a agonia fosse menor, mas o derradeiro fim seria semelhantemente sádico.

 

Victor de la Rocque, Gallus Sapiens parte especial para Maninho Pacheco e Maria das Dores Palha, 2010. Fotografia de Corpos informáticos e Ignacio Pérez

 

Provavelmente, as tais aves foram cruelmente mortas num âmbito privado e não puderam oferecer suas vidas a nenhuma performance pública capaz de operar, também, por meio de um discurso que faz denúncia a uma condição já estabelecida: grupos imensos de animais irracionais (aves, anfíbios, mamíferos, répteis etc.) podem ser chacinados para satisfazerem não só estômagos humanos, mas também o mero prazer desses mesmos humanos de vestirem-se com peles, penas, de adornarem-se com ossos, dentes etc.

George Bataille diz que “quanto mais as formas são irreais, menos claramente elas se subordinam à verdade animal, à verdade fisiológica do corpo humano” [2] e, talvez essa afirmativa faça bastante sentido para a obra de Victor de La Rocque, que além de propor novas figurações corporais como uma possível reconstrução de uma verdade mais dura, esta referida ação, para além da sua visualidade, pode colocar em xeque ainda a supremacia da própria noção de razão sobre o que não é compreendido como razão, mostrando mais uma vez que o logos regulou e ainda regula todo o “bom” funcionamento do pensamento ocidental. Talvez seja justamente essa a abordagem da obra Gallus Sapiens parte 1 (2007), em que o artista humaniza um galo e uma galinha através da vestimenta e do habitat oferecido a elas, correspondendo a duas aves sob “trajes de gala” em um ambiente de exposição. Muito além de ser um trabalho de etologia por meio da arte, os animais racionais e os irracionais se analisam mutuamente, estranham-se nas suas (des)locações. 

 

Victor de la Rocque, Gallus Sapiens parte 1, 2007. Fotografias de Luciana Magno

 

A pesquisa de Joseph Beuys em torno da animalidade certamente é referência para Victor de La Rocque. Tanto a obra em que o artista austríaco conviveu por sete dias com um Coyote em uma galeria na ação I Like America and America Likes me (1974) quanto na performance How to Explain Art to a Deadhare (1965), em que o artista apresenta uma exposição a uma lebre morta. As duas obras de Beuys fazem sentido confrontadas com a de Victor de La Rocque, pois ambos artistas procuram pela “animalidade” perdida do ser humano.

O desfecho do ciclo de trabalhos Gallus Sapiens ocorreu com a parte 3 da ação, sendo que Victor de La Rocque colocava-se em uma espécie de cone-matadouro de frangos (estrutura construída especificamente para esta performance). O sangue ia gradativamente concentrando-se na altura da cabeça do artista, que permanecia por algum tempo imóvel e de ponta cabeça, tal qual acontece com os galináceos em abates (inclusive em matanças públicas). A relação estabelecida simboliza a morte dessa “galiformidade” [3] explorada nas obras anteriores, ou seja, o falecimento desse “monstro” concebido para evidenciar a irrestrita descrença do artista na sua própria espécie sapiente. 

 

Victor de la Rocque, Gallus Sapiens parte 3, 2011. Arte Pará. Fotografia de Luciana Magno

 

Estigmatizados ao lugar de uma vida inferiorizada, limitados a viverem para tornarem-se alimentos, os galináceos ganham lugar de destaque em muitas obras de Victor de La Roque. Vemos isso nas já mencionadas criações e em outras como: Por que a galinha atravessou a rua? (2010), na instalação O ovo e a galinha (2010), nas performances fotográficas Aqui estão minhas asas / primeira variação (2011) e Aqui estão minhas asas / segunda variação (2012) e, também, na versão Gallus Sapiens parte especial para Maninho Pacheco e Maria das Dores Palha (2010).

 

Victor de la Rocque, O ovo e a galinha, 2010. Fotografias de Orlando Maneschy e Shirley Pena Forte

 

Vemos um coeso tópico explorado em toda a trajetória de Victor de La Rocque a discursar sobre envoltórios que protegem vidas e sobre as vidas em si camufladas nesses invólucros (muitas vezes criados a partir de vidas mantidas e de outras tiradas), seja a sua própria protegida/adornada por outras menos valorizadas, seja a própria vida como deve ser resguardada em certos abrigos para ser melhor preservada. Nesse aspecto, o diálogo existente entre a obra O ovo e a galinha (2010) e O cuidador de idosas (2014) é pontual; na primeira, o artista é quem cuida do ser que está em formação até o seu nascimento, na segunda, quem outrora o abrigou e o protegeu é, hoje, sua camuflagem a exercer dupla colocação: o papel de matéria viva que o protege e que, opostamente, precisa da sua proteção. 

 

Victor de la Rocque, O Açougueiro, da série Camuflagens, 2013

 

O trabalho de Victor de La Rocque não se propõe a criar adorno unicamente para um corpo a ser enfeitado; é a proteção recíproca que é almejada nas suas invenções. Mesmo quando ele cria figurações violentas e controversas – como a criação em que se utiliza de galinhas vivas ou mortas – profanas e voluptuosas – como a intervenção e a instalação Sex Shop (2007) e seu filme Ópera: O Bonzão Bonitão (2013) – é sobre a pulsão de vida que o seu trabalho discursa, porque, através do confronto com a morte e com o sexo, por exemplo, temos consciência da materialidade do corpo não utópico, mas sim do corpo tal qual ele é. [4]

Victor de La Rocque é redondamente capaz de nos mostrar – ora sob configuração alegórica e fantasiosa ora completamente cruel – a nossa existência na sua forma mais tangível. 

 

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TALES FREY: A pulsão pela vida (mesmo quando há a presença da morte) quando observo suas construções visuais que envolvem animais (irracionais e racionais), o adorno como proteção e enfeite (nunca como signo do pudor) e até algumas iconografias religiosas/profanas estão presentes nos seus trabalhos. Imagino que o olhar distanciado (no caso o meu) muitas vezes capta coisas que nem o próprio artista pretendia abordar, mas, já me defendendo, vejo isso como um aspecto positivo, pois a obra possibilita abertura para mais discussões. Pois bem, há um tema central que tem motivado suas criações? Como você relaciona uma obra e outra na sua própria trajetória artística nesse sentido?

 

VICTOR DE LA ROCQUE: Não percebo um tema central dentro da minha produção, porém quase sempre estou em busca da sensação de incômodo que tais proposições causam, para através dele iniciar um diálogo, como uma figura que parte de uma dobra da linguagem que a articula na sombra. A contradição também é recorrente. Camus dizia que “o único papel verdadeiro do homem, nascido num mundo absurdo, é ter consciência da sua vida, da sua revolta, da sua liberdade”; talvez, ao acaso, engendro monstros, ou a própria monstruosidade refletida. A tentativa é de articular o absurdo e a revolta, porém com o nível de consciência de um atormentado. Neste momento poderia descrever meus trabalhos como uma coleção/sucessão de fracassos que conservam a mesma ressonância, e com o tempo ela manifestará sua própria inutilidade, ecoando meu segredo estéril. E no final gostaria de afirmar que tudo isso ainda pode ser apenas um pequeno “floreio ocasional”, nascido de um desejo de forjar a própria fuga, para onde ainda não sabemos, mas com destino à liberdade e a uma paixão sem amanhã.

 

Victor de la Rocque, A coragem dos fracos, 2013

 

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NOTAS

[1] LE BRETON, David. Adeus ao Corpo: Antropologia e Sociedade, p. 28.

[2] BATAILLE, George. O Erotismo, p. 94.

[3] Termo criado por Victor de La Rocque para a sua dissertação (em processo) em âmbito do Mestrado em Artes Visuais – linha de pesquisa em Poéticas Contemporâneas – na Universidade de Brasília (Brasil).

[4] Cf. FOUCAULT, Michel. El cuerpo utópico. Las heterotopias, p. 81.

 

BIBLIOGRAFIA

BATAILLE, George. O Erotismo. Porto Alegre: L&PM, 1987.

FOUCAULT, Michel. El cuerpo utópico. Las heterotopias. Buenos Aires: Nueva Visión, 2010.

LE BRETON, David. Adeus ao Corpo: Antropologia e Sociedade. Campinas: Papirus, 2003.

 

 

PARA CITAR ESTE TEXTO

FREY, Tales. “Sob o Traje de Gala, de Galo, de Carne, Depenado, de Penas… Engalado, Victor de La Rocque é uma Criação de Animal (Ir)racional”. eRevista Performatus, Inhumas, ano 3, n. 13, jan. 2015. ISSN: 2316-8102.

 

Revisão ortográfica de Marcio Honorio de Godoy

© 2015 eRevista Performatus e o autor

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