Sarah Hill, They Wonder. Performance apresentada em Montserrat’s 301 Gallery 2014, Beverly, Massachusetts, Estados Unidos. Outubro de 2014. Fotografias de Mel Powsner
Com uma trajetória relativamente recente, se observarmos o ano da primeira criação apresentada para uma audiência mais ampla – e não levarmos em conta os experimentos dos anos anteriores em que, obviamente, existiram outras concepções, outros projetos, esboços e outras invenções ou rascunhos que não se tornaram obras para serem expostas como tais –, Sarah Hill tem desenvolvido uma sequência de expressões extremamente coerentes entre si com um início anunciado nos anos de 2011-12 e com uma eficácia absolutamente ardente, negando qualquer apatia por parte da audiência bem como da sua própria performance.
Sarah Hill, I’m Fine. Performance apresentada no The Contemporary Art Center, Québec, Canadá. Abril de 2013. Fotografias de Patrick Altman
Comecemos então pela primeira ação apresentada a uma audiência mais ampla. Repetindo incessantemente “I’m fine, I’m fine, I’m fine, I’m fine”, pisando forte no chão com seus saltos altíssimos calçados em seus pés, corpo adornado por uma peruca de cor vibrante, por um traje exuberante, Sarah reitera “I’m fine, I’m fine” e bate os pés contra o piso. Aos poucos, as pisadas fortes se transformam em saltos calculados, depois em pulos frenéticos desajeitados, em pancadas intensas contra o chão, em saltos altíssimos. A voz, que inicialmente era delicada e baixa ao dizer sem parar “I’m fine, I’m fine”, em seguida passa aos berros em tom alto e grave “I’M FINE, I’M FINE, I’M FINE”, e a ação, que começa circunspecta em sua composição sempre evolutiva, atinge o completo descontrole, mas sem perder o objetivo central de dizer “I’m fine, I’m fine…” e pisar/saltar/pular contra o chão o tempo todo até a completa exaustão.
Sarah Hill, I’m Fine. Performance apresentada em Anthony Greane, Boston, Massachusetts, Estados Unidos. Janeiro de 2013. Fotografia de Hayley Morgenstern
Enquanto pula, de forma simbólica golpeia forte com os seus pés a face de uma cultura heterocentrada. Saltando raivosamente de salto-agulha, espanca o patriarcado opressor de forma enérgica, berrando, com fúria, e olhando fixamente para o mesmo solo em que bate os seus pés, pisoteando densamente para massacrar o mesmo sistema que todos os dias suprime qualquer existência que não faça parte da norma. Sarah não devolve as agressões da mesma forma, porque quem sente mais uma vez a dor é quem protesta na ação e não quem é o alvo da denúncia. “I’m fine” é um grito de queixa, é um pedido de socorro, é um berro de revelação, é uma rogativa pela admissão das diferenças em nossa sociedade e é também um ato libertador. Apesar dos seus dizeres repetitivos, quando promulga “I’m fine”, Sarah evidencia o contrário, porque afinal não está tudo bem. E, definitivamente, sabemos que, num encadeamento global, não está mesmo tudo bem.
Sarah Hill, It’s ok, 2013-14. Frames da animação criada a partir da ação I’m Fine
Há correspondência com a audiência nos trabalhos em que Hill explora a sua própria experiência e toma a sua autorrepresentação como cerne das suas criações para impulsionar aquilo que Judith Butler certifica em sua escrita, ao declarar que “o gênero não deve ser meramente concebido como a inscrição cultural de significado num sexo previamente dado” [1]. Sendo assim, Sarah Hill reforça um discurso que procura desmantelar uma falsa noção tão enraizada num pensamento ordenado por uma heteronormatividade compulsória.
Hill, sob o amparo das abordagens da Queer Theory, assinala a inexistência de uma estabilidade de gênero, explorando construções identitárias através das quais busca apagar a dicotomia sexo/gênero, problematizando a natureza biológica e a exigência de uma coerência entre o sexo e o gênero de uma pessoa, criticando sagazmente o binarismo em que histórica e culturalmente estamos ainda mergulhados até o pescoço ou além. Sarah ironiza as oposições binárias da nossa cultura, as quais sempre foram estabelecidas de forma nada flexível, como se a lógica macho x fêmea, homem x mulher, masculino x feminino, pênis x vagina fossem as formas corretas de relações, enquanto todo o resto, ou seja, tudo que estivesse fora dessa norma relacional, fosse uma aberração.
Já em seu primeiro trabalho, o vídeo intitulado Flesh Prison (2011-12), Sarah Hill nos fornece um conteúdo “alucinante, visceral e dissonante” [2] para tratar da sua transexualidade em um “progresso social” [3] onde esses corpos, antes suprimidos, abafados, afogados, começam a ganhar mais visibilidade.
Sarah Hill, frames do vídeo Flesh Prison, 2011-12
Embora haja, por um lado, a indiscutível ascensão do direito ao posicionamento oriundo de corpos antes silenciados, ao mesmo tempo assistimos, como uma resposta, em diversos contextos políticos de diferentes partes do mundo, a um retrocesso que quer insistir na negação das diferenças e que pretende estabelecer um retardamento para as conquistas de muitos direitos humanos que passaram a ser considerados. Vivemos um período de grandes avanços, mas também de enormes atrasos que emergem como forma de revidar cada passo conquistado até então. E o trabalho de Sarah, ao mesmo tempo que enaltece os progressos, delata o ódio que cresce como réplica ao avanço.
O gesto performativo repetitivo em sua performance They Wonder (2014) faz menção à forma como a personagem fictícia de história em quadrinhos, Mulher Maravilha, se transforma. Sarah, com o traje desse ícone feminino, gira em torno de si sem parar até cair. E recomeça. Gira outra vez, outra vez e outra vez. Cai. Levanta-se e retoma a ação como se, em algum momento, fosse se transformar nessa figura feminina que é admirada pela sua força e coragem. Cai, ajeita o seu traje e recomeça. Executa a mesma ação até o esgotamento da sua disposição. Literalmente, essa ação é capaz de transtornar o equilíbrio de quem a executa e, metaforicamente, pode denotar uma consciência desconfortável de quem vive uma desarmonização do próprio corpo com relação ao contexto físico, social e cultural.
Sarah Hill, They Wonder. Performance apresentada no Public Communication: Performing Knowledge of the Body Suplex and BLUEorange Contemporary, Houston,Texas, Estados Unidos. Janeiro de 2015. Fotografia de Max Fields
Sarah Hill, They Wonder. Performance apresentada na Montserrat’s 301 Gallery, Beverly, Massachusetts, Estados Unidos. Outubro de 2014. Fotografia de Mel Powsner
Hill, em They Wonder, aborda, obviamente, os dilemas sociais e pessoais de um indivíduo transexual, cuja identidade de gênero se difere da que é designada no seu nascimento. Essa mesma questão é explorada por Sarah em seu vídeo Failure in “Truth” (2015), onde vemos o seu corpo vestido como o personagem Pinóquio a cortar uma enorme madeira cilíndrica sobre a qual senta-se e, sutilmente, insinua esse mesmo objeto como sendo o seu órgão sexual, o qual está sendo golpeado pelo auxílio de um pequeno machado.
Sarah Hill, frames do vídeo Failure in “Truth”, 2015
Detalhe do objeto em que o vídeo Failure in “Truth” é exibido
Nesse trabalho, evidentemente, vemos Sarah criticar impetuosamente a forma como os adultos fabricam a criança ideal. Ao mesmo tempo, Hill usa o Pinóquio como uma alegoria de um tema extremamente recorrente em seus trabalhos, apresentando um personagem do universo infantil que não tem o tal corpo condizente com a natureza, pois o Pinóquio é construído e nem de carne e osso ele é. A subversão de Sarah nesse vídeo é arguciosa ao desconstruir as supostas verdades absolutas tão características da heteronormatividade, que
longe de surgir espontaneamente de cada corpo recém-nascido, deve se reinscrever ou se reinstruir através de operações constantes de repetição e de recitação dos códigos (masculino e feminino) socialmente investidos como naturais. [4]
Série de sapatos usados por Sarah Hill em sua performance I’m Fine entre 2011 e 2015
Na sua vida e no seu trabalho artístico, o seu próprio gênero é um assunto intencionalmente político, porque não está centrado em si; ele migra para o âmbito social e passa a ser um debate público. Nesse aspecto, o ato performativo de Sarah Hill produz significados que estão dimensionados em um campo que ultrapassa os limites da arte. Sarah Hill nos oferece uma poderosa produção discursiva que não se atém à palavra escrita ou falada como únicas formas possíveis de linguagem, trazendo à luz posicionamentos claros que emergem como raciocínios visuais capazes de estabelecer um tipo de comunicação que, talvez, sob o conforto do logos, poderia não acontecer.
TALES FREY: Como um discurso político, que diz respeito às questões de gênero/sexualidade/identidade, o seu trabalho é muito claro na abordagem que você propõe. Eu, naturalmente, deduzo que a sua performatividade cotidiana se relaciona diretamente com a sua produção artística, e o seu corpo acaba por se tornar o principal signo para análise. Com base na sua trajetória de vida e arte, você poderia comentar essa afirmação?
SARAH HILL: Meu trabalho tenta falar sobre o processo de quebrar o isolamento, a fim de sobreviver ao trauma da vida do dia a dia. “Ninguém jamais escreveu, pintou, esculpiu, modelou, construiu ou inventou, exceto literalmente, para sair do inferno” [5]. Confusão de gênero é um pequeno preço a pagar para o progresso social. Eu defino o progresso social como a presença visível dos corpos transgêneros no meu trabalho. Estou ciente de que outros não podem ler o meu corpo como transgênero. No entanto, é assim que opto por definir o meu corpo e gênero. As pessoas podem aprender a contornar as minhas definições de gênero, porque passei a minha vida trabalhando em torno de outras definições. Eu tenho o direito e a capacidade de exercer o controle completo sobre a minha carne. É minha. Eu moro aqui. Eu não a alugo. Não a empresto. Meu corpo me pertence e eu vou fazer com ele o que eu escolher até morrer. Meu corpo se torna o local de recuperação de espaço físico e psicológico.
NOTAS
[1] BUTLER, Judith. Problemas de Gênero: Feminismo e Subversão da Identidade. Rio de Janeiro: Editora Civilização. Brasileira, 2003, p. 25.
[2] COOK, Greg. Sarah Hill’s Flesh Prison. Ver em: <http://thephoenix.com/boston/arts/147440-sarah-hills-flesh-prison/>. Acesso em: 25 de julho de 2016.
[3] HILL, Sarah. In: COOK, Greg. Sarah Hill’s Flesh Prison. Ver em: <http://thephoenix.com/boston/arts/147440-sarah-hills-flesh-prison/>. Acesso em: 25 de julho de 2016.
[4] PRECIADO, Paul Beatriz. Manifesto Contrassexual. São Paulo: N-1 edições, 2014, p. 26.
[5] ARTAUD, Antonin. In: ALEXANDER, Jonathan; YESCAVAGE, Karen. Bisexuality and Transgenderism: InterSEXions of the Others. Nova York: Harrington Park Press, 2003, p. 66.
PARA CITAR ESTE TEXTO
FREY, Tales. “Sarah Hill: Perturbação à Norma como Estratégia de Resistência ao Poder”. eRevista Performatus, Inhumas, ano 4, n. 16, jul. 2016. ISSN: 2316-8102.
Revisão ortográfica de Marcio Honorio de Godoy
© 2016 eRevista Performatus e o autor
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