Rejeição à Norma para Afirmar o Múltiplo: Mavi Veloso

 

Mavi Veloso, Indumentária Popular – Cut & Paste, 2013-2014. Fotografia de Caetano Pessina & Lucas do Prado Coelho

 

Convertendo seu corpo em sustentáculo do seu discurso, o artista Mavi Veloso, quando se utiliza de adornos femininos diluídos em masculinos no seu dia a dia, não sobrepõe tais artefatos sobre si unicamente para enfeitar-se de forma destacada da multidão que o cerca; ele detona com a tradição falocêntrica e com a veemência da sociedade ainda enraizada numa ultrapassada lógica patriarcal e heteronormativa. Ao combinar, por exemplo, batom e barba sobre um único corpo, Veloso viola as “regras” dadas, embaralha a percepção de quem ainda enxerga o mundo sob uma divisão binária, limitada a demarcar o que é e o que pertence ao universo masculino e ao feminino, sem possibilitar escolhas, pois tudo está rigidamente determinado para esse grupo de pessoas condicionadas a seguirem uma disciplinar conduta modelar que nega todas as múltiplas possibilidades.

 

Mavi Veloso, Indumentária Popular – Cut & Paste, 2013-2014. Fotografia de Márcio Vasconcelos

 

Sua ousada atitude na vida – que revela sua identificação com os ideais de engajamento queer – é extremamente coerente com seus trabalhos artísticos, os quais são criações carregadas de críticas contra os regimes tradicionais de normalização. Mavi Veloso aprova as diferenças e expõe sexualidades variadas que podem oscilar, transmutar e recusar uma definição estável. Essa ideia pode ser confirmada no próprio statement do artista, onde ele afirma:

 

Acho que o fazer artístico deveria estar muito mais atrelado à vida das pessoas. A experiência estética como potente forma cognitiva. Como quando não se enxerga e então se apura os ouvidos, como quando não se escuta, mas vê não só com atenção e sim com propriedade, como quando se tateia procurando com a acuidade de quem de fato se sensibiliza a partir disso que passa, então, a conhecer. Leio estas sentenças como quem precisa revisitá-las com frequência para que esta compreensão não caia no esquecimento, por considerar a construção/elaboração artística diária com tal relevância.

Gosto de crer nas linguagens artísticas, as diversas mídias, como possibilidades de transcriação, transposições de experiências. Isso passa pela instância autobiográfica, é subjetivo e por isso mesmo capaz de afetar o outro em quem estou contido, o outro que em mim está contido. Os modos de fazer se dando exatamente assim, “interlocutando-se”, intercruzando-se, a dança, performance, as artes visuais, a poesia, música, bem como a moda, design, arquitetura…, como meios para criação de ambiências que nos engulam, transtornando-nos, transportando-nos através e além de nossa percepção. Para que eu e outro possamos discutir alguma esfera ética, política, social, psicológica, sensível disso que nos rodeia. [1]

 

Indumentária Popular – Cut & Paste (2013-2014), obra pertencente ao projeto Trans e criada com o COMO clube, é uma colagem induzida pelo próprio performer, mas realizada pelos observadores, que podem escolher, entre diversas revistas presentes no espaço, uma imagem de seus respectivos gostos para serem afixadas sobre o corpo de Mavi, que assume uma composição visual esquizofrênica feita de papéis picados, composta de estilhaços que formam um mosaico impossível de agradar a um só anseio ali presente, funcionando, portanto, como uma reunião de preceitos diversificados, fazendo analogia da própria sociedade que congrega apreciações múltiplas e, até mesmo, contraditórias entre si.

 

Mavi Veloso, Indumentária Popular – Cut & Paste, 2013-2014. Fotografia de Natália Lima Castro

 

Mavi Veloso, Indumentária Popular – Cut & Paste, 2013-2014. Fotografia de Natália Lima Castro

 

Ao mesmo tempo, é estampado sobre o corpo do performer o que o outro quer ver sobre ele, mas vale lembrar que esse desejo nunca poderia ser alcançado, porque a ação de um terceiro interfere na construção iniciada anteriormente por outra pessoa e pode, inclusive, contrariar a primeira proposta e assim sucessivamente. Concluímos, também, que a roupagem criada de papel é uma alegoria precisa da humanidade atual que baseia a construção de seus corpos (e também dos corpos alheios) em ideais retirados dos meios de comunicação de massa, como revistas e catálogos de moda.

O rosto, antes de ser coberto por recortes de papel, consiste em uma textura maciça de coloração branca feita de fita crepe, permitindo apenas a exposição dos olhos, da boca e das narinas do performer, aludindo às gazes que revestem o rosto de quem se submete a uma cirurgia plástica para alterar essa região do corpo.

 

Mavi Veloso, Indumentária Popular – Cut & Paste, 2013-2014. Fotografia de Natália Lima Castro

 

Esse projeto, assim como outros vários da sua trajetória, é realizado em parceria com outros artistas, estabelecendo intersecções entre performance, dança, vídeo, fotografia, moda e design. Em Indumentária Popular – Cut & Paste, Andrez Lean Ghizze, Caio César, Eidglas Xavier, Gabi Vanzeta, Helô Duran, Teresa Moura Neves e outros colaboradores participam ativamente da ação. É válido ainda enfatizar a participação de Mavi Veloso no COMO clube – uma plataforma de gestão e pesquisa em artes perfomativas que atua dentro de um sistema colaborativo e em diferentes linguagens.

 

Criação coletiva, Preta, 2013. Fotografia de Gustavo Saulle

 

Criação coletiva, Preta, 2013. Da esquerda para a direita: 1 e 2. fotografias de Fernanda Frazão; 3. fotografia de Natália Lima Castro

 

Preta (2013), ação concretizada a partir de um processo de criação colaborativo [2], é uma indumentária que foi criada com base na burka, sendo um vestuário elaborado pelo estilista e artista Alex Cassimiro inspirado no traje muçulmano para que os performers imprimissem suas subjetividades imprecisas, contradizendo toda construção social normativa presente tanto no oriente e médio oriente como no ocidente. O conjunto de figuras vestidas de cor preta da cabeça aos pés cria seres ambíguos com relação aos categóricos letreiros “masculinos” e “femininos”, reelaborando o corpo imaculado das religiosas que vestem burkas para corpos impudicos de saltos altos, saias curtas e meias-calças, sexualizados em suas significações tão presentes no contexto brasileiro. As figuras emergem como silhuetas em contraste com os ambientes conformados em variedades de cores e texturas, funcionando como sombras em suas monocromáticas construções voluptuosas.

 

Coletivo MANADA, PAPECLARKOITICICA, 2010. Fotografia de Estela Tiemy

 

As narrativas ideológicas que suprimem um regulamento ultrapassado, que renunciam o que já está instituído e enraizado em costumes castradores, são recorrentes nas concepções de Mavi Veloso, que procura sempre satirizar uma ordem edificada em nossa cultura para debochar do senso-comum através dos aspectos dúbios presentes nas suas criações que aludem à política/cultura queer. Vemos isso em quase todos os seus trabalhos, inclusive nos iniciais, como o arco-íris estampado na emenda de tecidos que compõe PAPECLARKOITICICA (2010) – criação do coletivo MANADA do qual o artista faz parte – ou no próprio corpo do artista em Despetalas Repétalas – Manifesto-me em ti Reconstruo-te em mim (2010).

 

Mavi Veloso, Self interview, 2012. Frames a partir do vídeo

 

Entre os seus vídeos, Auto Portrait (2012), Desvio_Depoimento Desviado (2012), Divas (2011) – em parceria com Yang Dallas –, Trans (2012), Biba la revolución (2013) – em parceria com Stéfano Belo – e Self Interview (2012), destaco o último como uma obra icônica no que se refere à relação entre a subjetividade do performer e a sociedade segundo seu próprio ponto de vista. No vídeo, vemos a imagem do artista admitido numa figura andrógina com barba não tão encorpada e peruca castanha em corte chanel, enquanto ouvimos uma fala feminina robotizada a fazer-lhe perguntas. O áudio é composto pela voz do Google tradutor e as perguntas são formuladas por si, ou seja, a voz é uma personagem alegórica a representar a sociedade controladora e Mavi Veloso, ali exposto, sem dizer nada, é a significação da sua própria interioridade que se revela em sutis olhares e gestuais.

 

Mavi Veloso, Trampolim para Coração Enamorado, 2010. Instalação-vitrini, Tecido, linha e tinta, 3 x 6 x 1,5 m. Fotografias de Natália Lima Castro e Fernanda Magalhães

 

Além de usar o seu próprio corpo como um espaço metafórico nas suas representações, Mavi Veloso tem uma série de obras tangíveis criadas e apresentadas sem o uso da sua simbólica matéria anatômica, sem fazer recorrência ao seu próprio corpo como suporte de exibição artística. Entre os objetos criados, temos a instalação-vitrine Trampolim para Coração Enamorado (2010), consistindo em representações de corações humanos suspensos por linhas, sendo todos arranjados em um único tom de vermelho bem vibrante e elaborados a partir de tecidos costurados com a tal coloração.

Ainda podemos mencionar a instalação Sem Título  (2010), uma mesa repleta de pães e talheres, manto de papel/colagem, além de incluir um vídeo, um livro com apropriações de Guilherme Cunha e um caderno com o processo do próprio artista.

 

Coletivo MANADA & Estela Tiemy & Mavi Veloso, Bolha, 2008. Fotografia de João Almeida

 

Mavi Veloso, Glove/Segunda Pele, 2012-2013. De cima para baixo: Frame a partir do vídeo; Fotografia de Pedro Esquerra

 

Bolha (2008) – trabalho elaborado com Estela Tiemy e com o coletivo MANADA, além da colaboração de diversas pessoas nas diferentes situações e lugares por onde a obra transita, dentre elas Jell Carone, Léo Nabuco, Caio César, entre outros – é um objeto que só se concretiza de fato se o corpo interagir com ele, enquanto Glove/Segunda Pele (2012/2013) e Despétalas Repétalas (2010) são objetos gerados a partir do próprio corpo, ou seja, são bases que foram moldadas previamente no corpo do artista em situações efêmeras para, posteriormente, serem exibidas como objetos tangíveis de arte.

A piada para abordar questões tão sérias e a pilhéria para formatar discursos tão cruciais para o nosso tempo são provas claras da perspicácia do artista que envolve seu público num jogo em que as normas são postas em xeque sem nenhum tom agressivo, sem nenhuma ameaça bruta. É através do escárnio e da diversão que Mavi Veloso ataca as tradições repressoras, é com um humor disfarçado de fútil (mas politicamente engajado) que ele detona um passado que hoje deixa de fazer sentido.

 

Da esquerda para a direita: Mavi Veloso, da série Mira!, 2009. Guache, cola s/ papel jornal, dimensões aprox. da série 60 x 80 cm; Mavi Veloso, Chega não Chega, da série Dois, 2007. Pigmento, guache, acrílica s/ lona reutilizada, 893 x 714 mm

 

TALES FREY: As suas estratégias atuais são completamente distintas dos seus trabalhos iniciais, como as composições da série Mira! (2009) e a pintura chega não chega, da série Dois (2007), por exemplo. Claro, a ruptura – se acompanharmos da origem para a atualidade – não é brusca; é completamente sutil e as escolhas são coesas obviamente.

Como você avalia o seu percurso, que parte das artes visuais rumo às cênicas? Ou melhor, o que o motivou a transitar daqueles iniciais meios de expressão que você antes concretizava rumo ao campo artístico híbrido que acaba por desaguar nas artes do corpo, incorporando dança e performance?

 

MAVI VELOSO: As estratégias, eu acho que são sim distintas hoje em dia, mas isso acho que vai acontecer sempre e tomara deus oxalá que continue sempre se transformando, mudando, se adaptando, porque o jeito que as coisas passavam pela minha cabeça há muitos anos, quando eu ainda era um molequinho catarrento lá no sítio em Minas Gerais, eu acho que eu transportava minhas histórias, as vontades que eu tinha pra brincadeiras com bonequinhas inventadas com arames ou mesmo num monte de rabisco que ficava fazendo e inventando enredo, como se eu estivesse ali naquelas histórias.

Agora, talvez, eu tente trazer mais pra um “plano tridimensional” ao invés de desenhar as coisas que queria. Tento fazer essas coisas passarem pelos músculos, pele, cabelos, unhas e pra fazer meu cérebro fritar mais um pouquinho…

Mas esse processo de tentar mergulhar mais nas artes do corpo começa bem lá com o coletivo MANADA. Éramos muito amigos, estudantes, fervendo de vontade de fazer-fazer-fazer e sair um pouco daquela coisa mais pacata, formal e acadêmica limitada à universidade. Com essa turma do MANADA (Alissar Ayoub, Camila Melara, Eidglas Xavier, Fernanda Magalhães, Hígor Mejïa, Karen Debértolis, Leonardo Gutierres, Letícia Albanez, Lis Peronti, Maíra Bette Motta, Manu Arruda, Marcio Diegues, Mavi Veloso, Natália Lima Castro, Estela Tiemy Vicente e tantos outros parceiros) a gente pensava muito a partir dos artistas Lygia Clark e Helio Oiticica, e essa foi uma escola muito importante pra gente, porque, de algum modo, com essas nossas investidas de nos propormos a fazer ações performativas, a gente aprofundava um pouco o que essas referências traziam pra gente e, também, a gente elucubrava sobre a performatividade, sobre como pensar arte de um jeito mais expandido, mais quente, sem distanciar o artista do resto do mundo. Isso tudo sempre muito caótico, bem “experimentaloide”, a gente não tinha muito a “pira” de ficar embasando teoricamente as coisas, a gente começava a ver ali que o que nos interessava era botar o corpo pra ferver.

E, daí, dando um pulo não muito grande de um contexto do norte do Paraná, Londrina, onde a gente levava adiante esses experimentos como coletivo MANADA, vejo a continuidade disso que comecei a vivenciar artisticamente agora por outro viés, com outras cargas nevrálgicas, mas ainda assim bem coerente com aquilo que havia no início e, hoje, tenho mais consciência disso.

Aqui “no SP”, logo que cheguei, eu me enrosquei com a galera do COMO clube, que, em princípio, a gente chamava Jardim Equatorial. O COMO clube começa como um grupo pra estudo coletivo, pra compartilharmos coisas a convite da propositora Thelma Bonavita.

O COMO clube é uma plataforma interdisciplinar de pesquisa em artes performativas, tendo artistas de disciplinas diversas pensando, estudando como produzir, articular artisticamente de modo autônomo e colaborativo. Tem como principal foco estabelecer um espaço comum para a criação de um ambiente de convivência artística. É feito por artistas e para artistas. COMO clube é atualmente composto por Allyson Amaral + Ana Dupas + Caio César + Eidglas Xavier + Gabi Vanzetta + Gustavo Saulle + Maryah Monteiro + Mavi Veloso + Thelma Bonavita + Thiago Costa. Mas muita gente passou e continua passando pelo COMO. A ideia de fazer junto para mim sempre foi (e  hoje ainda mais) quase indissociável. O COMO clube é escola/universidade/residência, é proposta artística, é processo, é ambiente e obra coletiva; todos são autores, sendo cada qual ao seu modo. Deste trabalho e dadas as especificidades também, nem tudo é de todo mundo: alguma coisa é minha e sua, outra é dele e dela, outra pode ser só sua ou só minha e de mais ninguém. Ao longo de nossos primeiros quatro anos de trabalho, temos feito uma porrada de coisas, são muitas entradas, muitas proposições artísticas, antropofágicas, “transqueers”, transgressoras, transformadoras. Múltiplas COMO o ambiente que nos propomos a criar, múltiplas COMO as pessoas que fazem parte deste ecossistema, múltiplas COMO possibilidades, múltiplas COMO obras que a cada situação podemos rearranjar em nossas experimentações num menu específico com tais e quais itens disponíveis se precisarmos…

E daí, deste limbo coletivo e colaborativo que é o COMO clube, vão surgindo criações do grupo como também coisas de cada um, por exemplo: a Indumentária Popular, trabalho meu com o COMO clube, e a Preta, trabalho do Alex, Andres, Caio, Eidglas, meu e da Teresa e do COMO clube também. E assim por diante…

Eu vou atribuindo as mudanças no próprio modo de pensar e, daí, isso vai diretamente causando todas essas transformações: o MANADA primeiro, o COMO clube mais recentemente e, também, tantas outras contaminações, como o núcleo do Dirceu, que é um coletivo que trabalha também pesquisando performatividade e produzindo em performance, dança, teatro, fotografia, vídeo etc. Esse núcleo é de Teresina (Piauí), onde estive em 2012, o que foi de extrema importância pra mim também. Foi extraordinário trabalhar performatividade, trabalhar colaborativamente, trabalhar sobre o pensar do indivíduo também.

E aí as coisas vão explodindo na cara, no sapatão, na cor do esmalte. Acho que todas essas coisas vão descabaçando a gente, vai dando a sensação de mais liberdade ou, ao menos, a de querer ter mais liberdade. E daí fico pensando em acontecimentos, em propor acontecimentos, ambientes, situações que talvez pareçam agora mais prováveis de causar alguma coisa que valha como sensação nas pessoas e em mim.

 

 

NOTAS

[1] VELOSO, Mavi. Statement, 2012. Disponível em: <http://maviveloso.files.wordpress.com/2012/12/mavi-statement3.pdf>. Consulta realizada em 25 de junho de 2014.

[2] Criação colaborativa com Alex Cassimiro, Andrez Lean Ghizze, Caio César, Eidglas Xavier, Marcos Nasci e Teresa Moura Neves.

 

 

PARA CITAR ESTE TEXTO

FREY, Tales. “Rejeição à Norma para Afirmar o Múltiplo: Mavi Veloso”. eRevista Performatus, Inhumas, ano 2, n. 11, jul. 2014. ISSN: 2316-8102.

 

Revisão ortográfica de Marcio Honorio de Godoy

© 2014 eRevista Performatus e o autor

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