Também a Teta como Tática Política nas Composições de Marie Carangi

 

Marie Carangi, Cartaz, da série Seminegra, Seminua, 2016

 

Do corpo de Marie Carangi emergem estrondosos brados dispostos a encobrirem os violentos berros diários de toda a cultura pautada em normas e em repressões dos corpos. Sons de gritos direcionados a um microfone plugado em um pequeno gravador garantem uma sinfonia conceitual, barulhos do ato de manipular uma guilhotina para cortar cabelos assinalam o (des)compasso sonoro do ambiente, ruídos alucinantes gerados pelo balançar dos seus seios à frente de um teremim suscitam uma composição operística bufa sem recurso de cordas vocais; enfim, a tática política de Carangi não vem apostilada em vocábulos ordenados; o sentido é amplo e vem de modo sensorial, visual e extremamente performático.

 

Marie Carangi, frame de Teta Lírica, 2016

 

Marie Carangi, Teta Lírica, 2016. Fotografia de Luciana Freire D’Anunciação

 

Na ação Teta Lírica (2016), não vemos propriamente a sentimentalidade exacerbada do lirismo da poesia, nem da música cantada e acompanhada da flauta e da lira e tampouco vemos um estilo apaixonado de expressão, pois a razão sobrepõe o entusiasmo de forma sarcástica, conferindo humor a um discurso visual e sonoro que vem em “zunzunzuns” agudos como forma de subverter o jogo corriqueiro. Com cabelos totalmente soltos e armados, trajando um look preto (e um pouco transparente) bem justo e com aberturas para que os seus seios fiquem totalmente expostos, Marie Carangi usa o seu corpo como alegoria de outros corpos que são calados e, então, através dessa ação, ela dá voz a esse(s) corpo(s) emudecido(s) pelo patriarcado que, ao menos no ocidente, faz com que emerja a condenação da exposição do peito da mulher como um atentado ao pudor, marcando assim uma injusta diferenciação com relação aos direitos dados aos corpos das mulheres e aos dados aos dos homens.

Assim, Marie apresenta-se como uma figura profana, devido à exposição de parte do seu corpo, que em nossa cultura é condenado, por razões morais, ao uso da veste e, também, como uma figura sagrada ao referir-se aos seus próprios seios como tetas. Aqui, vale mencionar a música “Vaca Profana”, de Caetano Veloso [1], como um suplemento semântico para explanar como essa figura (sagrada e profana de uma só vez) se opõe aos cânones cristãos, aos rótulos clássicos e, ainda, como o dito pecado e a sua consequente culpa não fazem sentido nesse corpo:

 

Ê, ê, ê, ê, ê,

Dona das divinas tetas

Derrama o leite bom na minha cara

E o leite mau na cara dos caretas

 

Oferecendo poder para si e para os corpos que ela representa e convida para incorporar seus trabalhos, Carangi usa o seu peito exposto – juntamente com outras mulheres – como forma de ultrajar o poder vigente, como forma de marchar em direção oposta ao atual retrocesso instituído pelos governos atuais que ignoram os direitos humanos, que não reconhecem completamente os direitos das mulheres, que mantêm um enorme descaso com relação aos direitos dos povos indígenas, do povo LGBTQIA+ e das pessoas negras. Assim, Marie criou alguns trabalhos realizados com a colaboração de mais artistas e, dentre essas obras, vale destacar a Marxha das Cem Tetas (2016), a Santetíssima Trindade (2016) e a Tetumbante (2016).

Santetíssima Trindade é um desdobramento de Teta Lírica, sendo que, nesta variante, algumas mulheres (corpo trans, corpo gordo) misturam-se numa coreografia e efetuam o concerto sonoro através do teremim – um instrumento musical eletrônico que possui uma antena e é tocado sem que haja o contato físico da pessoa, produzindo uma música de ruídos. Inclusive, convém destacar aqui três importantes manifestos do Futurismo que, enquanto sugeriam inovações na construção de novos rumos para a música modernista, criticavam a imposição das regras clássicas pelos conservatórios musicais mais tradicionais: Manifesto dos Músicos Futuristas (1911), Manifesto Técnico da Música Futurista (1911) e A Arte dos Rumores (1916).

 

Marie Carangi, frame de Santetíssima Trindade, 2016

 

Por um lado, podemos relacionar o tipo de concerto que Carangi oferece com os que acessamos através dos documentos históricos que exprimem as diversas quebras de paradigmas ocorridas no início do século XX na música futurista e que marcaram a história da arte. Porém, por outro lado, percebemos nitidamente que a artista não está se arriscando a romper com os exemplares que temos da música contemporânea, porque, até essa segunda década do século XXI, ou seja, mais de cem anos depois das inovações nesse âmbito, o desejo de romper com um passado cultural nefasto é outro no trabalho proposto por Marie, que, inclusive, é o de lutar contra um machismo existente também entre os futuristas citados, o qual permanece insistente nas sociedades até hoje.

 

Marie Carangi, frame de Tetumbante, 2016

 

Para a realização da Marxha das Cem Tetas, Marie Carangi, em residência na Casa Comum no Rio de Janeiro, convocou cinquenta mulheres para que todas caminhassem ostentando as suas tetas livres contra os opressores que ou não se percebem nocivos por legítima ignorância ou, então, têm convicta noção do prazer que possuem quando lesam pessoas por puro sadismo.

 

Marie Carangi, chamada pública para a performance Marxha das Cem Tetas, 2016

 

Sagazmente, o título dessa ação retoma a luta dos trabalhadores rurais sem-terra por meio do MST, as teorias de Karl Marx e, obviamente, a Marcha das Vadias, também conhecida como SlutWalk. Na primeira experiência, Marie reuniu vinte mulheres (além de si) e, quiçá, a ação na verdade não tenha que contar literalmente com o número exato de cinquenta mulheres, porque o “cem tetas” apresentado no título pode funcionar como um substituto positivo para o termo “sem”, o qual, fatalmente, denota a ausência de algo. Numa segunda experiência da ação, talvez a artista tenha contado com uma presença muito além de cinquenta mulheres, e isso não muda o sentido metafórico do título. A Marxha das Cem Tetas percorreu tranquilamente o bairro da Glória e o Aterro do Flamengo no dia 10 de julho de 2016.

Tanto em Marxha das Cem Tetas como em Tetumbante, devido à posição de liderança, por estar Marie situada à frente das demais mulheres que compõem cada uma das duas obras, intuímos a pintura icônica A Liberdade Guiando o Povo (1830), de Eugène Delacroix, onde há a figura alegórica de uma mulher com seus seios desnudos em meio aos canhões de guerra, personificando a República Francesa. A guerra, no caso dos locais apresentados por Carangi, está no próprio contexto social, que, por mais absurdo que pareça, condena a prática do topless, que pode ser enquadrada no artigo 233 do Código Penal Brasileiro, como se o fato de exibir os seios fosse um crime, um ato obsceno praticado em lugar público, algo que pode inclusive culminar em uma pena de três meses a um ano de detenção ou multa. Infelizmente, há um poder hipócrita ainda a decidir o que pode ou não o corpo da mulher, e Marie declara uma guerrilha contra essa força tirana.

 

Marie Carangi, Marxha das Cem Tetas, 2016. Fotografia de Ludmila Curi

 

Mas nem só as tetas são armas no trabalho de Marie Carangi. Testemunhamos diariamente bombardeios de anúncios que ditam supostos ideais de beleza e que nos dão “soluções” variáveis para conquistarmos o que “desejamos”. Há essa difusão obsessiva tanto em outdoors como em placas discretas (e também em luminosos extravagantes nas ruas), em páginas da web, em importunos e-mails/spams, em comentários de pessoas informadas e parcialmente (ou completamente) desinformadas, desconstruídas e conservadoras. O padrão corporal taxado como belo em nossa cultura aparece constantemente em nossas vidas para nos manter servos de alguns protótipos impostos a nós e, então, milhares de recursos emergem no tão ganancioso comércio dedicado à beleza. Além das cirurgias “estéticas” – como o implante de silicone, o lifting facial, a abdominoplastia etc. –, recebemos o bombardeio da moda do vestuário e, também, dos designs de cabelo e pele sem pelo. Corte, coloração e descoloração, depilação, luzes, reflexo, cauterização, balayage, alongamento (mega hair), alisamento, escova progressiva, hidratação, penteados diversos, permanente, entre vários outros recursos fazem a cabeça de várias pessoas, e esse assunto parece ser do interesse da artista Marie Carangi na elaboração de algumas de suas poéticas visuais e, dentre elas, destacamos as seguintes: Linha de Corte (2014-2016), Peluquería Carangi (2012-2014), Demonstração: Corte Estilo Guilhotina (2014), Beatits (2016), Sem-título (2017) e Ms. Teta Lírica and Ms. Sphinx (2017). Obviamente, o que vemos é um corrosivo teor crítico nas suas elaborações, sendo que em todas elas percebemos o mais absoluto escárnio, onde a ponderação não se separa do riso.

 

Marie Carangi, Beastits, série Seminegra, Seminua, 2016

 

Na obra fotográfica Beastits, que pertence à série Seminegra, Seminua, Marie mistura as palavras beast [besta/quadrúpede] e tits [tetas] para formar o título do seu trabalho, no qual expõe o seu próprio tronco coberto de cabelos, sugerindo o seu corpo repleto de pelos. O tom crítico está justamente na forma como ela se autonomeia para sugerir a maneira como, em uma cultura heteronormativa e binária, os pelos e os seios não podem pertencer a um mesmo corpo. Carangi destroça essa cultura ultrapassada ao juntar tudo livremente como bem entende e ao usar um xingamento como um letreiro, seguindo uma eficiência similar à do movimento queer, que se apropriou de uma gíria pejorativa para transformá-la numa luta inclusiva.

 

Marie Carangi, Linha de Corte, 2014-2016

 

E, nesse mesmo movimento inclusivo, Marie Carangi se propõe a cortar cabelos de diversas pessoas em espaço de exposição com uma enorme guilhotina para, então, reunir os tufos cortados e fixá-los em “sanduíches” de vidro na sua obra Linha de Corte, evidenciando que, apesar de o título sugerir uma padronização do corte de cabelo, a exposição exibe as diferenças entre os corpos que ali estiveram. Madeixas loiras, cabeleiras pretas, ruivas, grisalhas, enfim, não há padrão. Em Peluquería Carangi, ela permite igualmente a participação de todas e todos quando se coloca disponível para cortar os cabelos de qualquer pessoa que queira participar da ação da performance, a qual tem a estética relacional como um preceito motriz, onde as relações interpessoais acontecem de forma direta, deixando claro que, sem essas trocas, a obra não existiria.

A tão jovem produção de Marie Carangi denota um humanismo prontamente maduro, em que percebemos, através do empirismo, um racionalismo ético nas suas obras e, com isso, compreendemos a sua postura afetiva ao perceber os sujeitos e as suas singularidades nas partilhas que se propõe a vivenciar, dedicando-se à inserção social de todas e todos e, assim, conquistando o seu próprio crescimento bem como a sua satisfação pessoal também. Marie Carangi tem tetas e tem muito tato também; faz do regozijo do intercâmbio entre as existências e experiências a sua mais possante tática política.

 

Marie Carangi, Demonstração: Corte Estilo Guilhotina, 2014

 

TALES FREY: A presença do humor no seu trabalho é incontestável e o teor político presente também. Nos títulos, percebemos trocadilhos irônicos, os quais associados a cada uma das imagens fornecidas em diferentes meios de expressão (fotografias, vídeos, performances, instalações etc.) resultam em claras reflexões sociais por parte do(a) observador(a) através do riso. Como se dão seus processos criativos? Há alguma metodologia que seja recorrente durante a elaboração dos seus trabalhos artísticos?

 

MARIE CARANGI: A palavra do jocker está sempre acima da do rei. Não sendo levado a sério, ele pode falar sobre qualquer coisa, inclusive das tiranias e opressões. A mensagem que atravessa a moral e a ética estabelecidas, alcançando outras vias de absorção, é uma tática milenar de transmissão retomada na arte pelos dadaístas, surrealistas, situacionistas. Essa invocação do absurdo tem a ver com o jeito que as coisas me tocam no mundo. Os trabalhos acontecem muito dentro do impulso de transformar e jogar de volta pro mundo energias que me afetam, me tiram do lugar. Talvez a metodologia recorrente seja uma atenção a estas situações e um jeito de lidar com elas que passa também pela espontaneidade e prazer do gesto.

 

 

NOTA

[1] Canção “Vaca Profana”, de Caetano Veloso. Do álbum Profana, de Gal Costa, lançado em 1984.

 

 

PARA CITAR ESTE TEXTO

FREY, Tales. “Também a Teta como Tática Política nas Composições de Marie Carangi”. eRevista Performatus, Inhumas, ano 5, n. 18, jul. 2017. ISSN: 2316-8102.

 

Revisão ortográfica de Marcio Honorio de Godoy

Edição de Da Mata

© 2017 eRevista Performatus e o autor

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