Lyz Parayzo, Manicure Política. Performance apresentada no Rio de Janeiro, Brasil. Novembro de 2016. Fotografia de Aline Beatriz de Souza
Lyz Parayzo foi aluna(o) da Escola de Artes Visuais do Parque Lage, importante escola de arte do Rio de Janeiro, participando primeiramente do curso de Capacitação de Mediadores(as). Era um(a) aluno(a) inquieta(o), intrigado(a), auto inclusiva(o). Pensava – como mediadores(as) devem fazer – sobre estratégias de aproximação do público com a obra de arte, em especial de arte contemporânea. Ela(e), aluna(o) de Artes Cênicas pela Universidade Federal do Estado do Rio de Janeiro (UNIRIO), buscava um lugar para pensar outras formas de se conectar com o mundo da arte. Conexão com o(a) outro(a) era uma opção desejada por ela(e), mas nem sempre possível pela via do encontro. Desencontro talvez fosse a melhor proposta, sobretudo naquele momento, naquele contexto.
Era um momento de transição entre gestões na Escola, em que mudanças acontecem, em que grupos são desacreditados, são negados, ou são apoiados. Fundamental para os que buscam encontros é que se tenha trocas, respostas. E não havia trocas ou respostas, então. Se o possível era desencontrar, não se podia amenizar o que não era conciliável, coerente, bem resolvido. Não há lugar para a não verdade, para a meia verdade. Essa busca de coerência pode trazer à cena o lugar do encontro.
Lyz Parayzo, Parayzo Carioca: A Putinha Terrorista, 2016
Lyz Parayzo, Parayzo Carioca: A Putinha Terrorista. Ação paralela à exposição Abre Alas 12, Galeria A Gentil Carioca, Rio de Janeiro, Brasil. Fevereiro de 2016. Fotografias de Bender Arruda
Os trabalhos de Lyz desde sempre se destinaram a descompassar, ou a buscar o compasso pelo descompasso. Como um vírus que desorganiza as células, sua obra revela o descompasso entre o que se diz, o que se faz, o discurso e a prática. Pela falta de autorização, pela intromissão, pela inclusão não desejada, se traduzem as próprias condições da vida, quando precisamos ser e nos comportar pelo que se estabelece como norma, mesmo que as normas não incluam nosso modo de ser. A escola livre que não permite se libertar, a galeria de arte que não inclui o não vendável, o espaço institucional que assimila a transgressão desde que já incorporada pelo sistema.
Para se fazer arte no Brasil é preciso coragem, mas é preciso também muitas outras coisas: é fundamental ter dinheiro, porque quase ninguém pode viver de arte no Brasil, também é preciso conhecer as pessoas “certas” para entrar na panela e, é claro, para se conhecer as pessoas certas é preciso nascer no lugar “certo”, o que no Rio de Janeiro significa a Zona Sul, pequena área compreendida entre o mar e as montanhas. Lyz Parayzo não tem nada disso. Quem vê aquele corpo franzino e aquela voz delicada não conhece a imensa coragem desta(e) jovem artista.
Lyz Parayzo, da série Secagem Rápida, 2015
O primeiro trabalho de Lyz a mexer com as viciadas estruturas do “quem é quem e como” se deu justamente no Parque Lage. Conhecida por sua liberdade e autonomia, a escola sempre acolheu exposições visitantes, realizou mostras de alunos, de importantes artistas, ao mesmo tempo que dava autonomia para todo tipo de intervenção. A direção, entretanto, havia sido mudada recentemente, e havia a tendência de transformar o Parque num lugar mais comercial. Um programa chamado “Curador Visitante” havia sido criado e consistia em convidar cinco jovens curadores(as) para, reunindo uma seleção de alunas(os) da própria escola e artistas consagrados(as) do Brasil e do exterior, fazerem uma curadoria, cada qual ocupando as galerias do Casarão, jardins e Cavalariças, espaços expositivos da escola. Aquele seria o dia em que haveria a inauguração da primeira exposição do novo programa. Como sempre se fizera naquela instituição, Lyz – mesmo não tendo sido selecionada(o) para participar da mostra – fez uma intervenção espontânea, que era um espelho do que se tornaria a sua obra: ousada, abusada, e, claro, política. Tratava-se de uma série de fotos de seu ânus expostas dentro do banheiro tido por masculino, dentro da cabine, mais especificamente. A obra, numa decisão inédita, foi censurada. Criou-se a confusão tendo no meio a(o) jovem artista de vinte e um anos. O impacto de tal decisão foi grande naquele momento: no encontro com a direção e o curador – atividade integrante do novo programa que se sucedia à cada mostra –, artistas e alunas(os) presentes fizeram críticas à censura da obra. Várias pessoas da audiência mostraram sua indignação. Os(as) alunos(as), em sua maioria, principalmente as(os) bolsistas, cerraram fileiras ao lado de Lyz. Sua ação ganhou referência no texto dos artistas e críticos Alexandre Sá e Matheus Abbade sobre a exposição em questão, publicado na revista Dasartes [1]. Com isso, este(a) artista nascida(o) numa comunidade pobre, lutando entre empregos e um caminho de quase duas horas entre sua casa e a escola, se vê no centro de uma grande discussão sobre a arte institucional e a liberdade para criar. Muitos no lugar dele(a) teriam medo. Lyz era bolsista e ainda era remunerado(a) como mediador(a) na instituição, mas não se acovardou. Suas palavras na época foram: “eu saio de unhas pintadas e saia de uma comunidade em Campo Grande e ando de ônibus assim, não vou ter medo de nada nem de ninguém”. Esse episódio simples, porém simbólico, marcou o início da trajetória de Lyz Parayzo, que na época ainda era conhecida(o) como Lyzandro Coelho.
Lyz não se classifica nem no mundo masculino nem no feminino. Ora se veste como mulher ora como homem ora mescla os gêneros, não suporta rótulos e os despreza. Quando nos referimos a “ele” como Lyzandro, que significa “libertador dos homens”, usamos o artigo O. Quando nos referimos a Lyz, o artigo A. Para Lyz tanto faz, não é importante, e, nesse caso, apenas com o uso do X, do underline (_) ou dos artigos embaralhados é que o sentido se completa, pois Lyz faz recusa à norma binária e se sente mais confortável como um gênero fluido.
Após o evento de sua obra censurada, ele(a) se torna conhecido(a) por grande parte da comunidade artística do Rio. De um lado as(os) que acreditam na arte como transformação, de outro os(as) que pensam na arte como comércio. E em ambos os lados o nome de Lyz passou a ser respeitado.
Lyz Parayzo, partes do zine/manifesto EAV AVE YZO, 2015
Como estudante da escola há muito tempo, Lyz se viu diante de uma administração privada que tinha um projeto diferente de escola. Segundo ele(a), cada vez mais havia uma separação entre alunas(os) bolsistas e alunos(as) pagantes e uma diminuição no número das(os) bolsistas. Essa divisão culminou na criação de uma cantina bistrô com preços que não podiam ser pagos por estudantes bolsistas. Então, durante mais uma inauguração de exposição do novo programa, Lyz distribuiu para o público presente um zine denúncia que havia criado. Para além das características políticas, o zine se destacava pela visão artística ali contida: desde o cardápio da cantina todo carimbado com a palavra “fome”, até os desenhos de Lyz retratando o corpo humano e suas partes usualmente censuradas. Havia um quê de revista de arte, tanto na diagramação quanto na apresentação que tornava aquele zine simples feito de fotocópia numa forma de arte. O zine rodou a cidade e trouxe ainda mais as luzes para a(o) artista, cujo objetivo, naquele momento, era apenas estudar e comer em sua escola. A contraparte dessa fama foi ser despedida(o) de seu cargo como mediador(a). Talvez só não tenha perdido a bolsa porque a essa altura já estava ficando muito conhecida(o) e a repercussão seria de grandes proporções. Afinal, não se tem registro de expulsão de aluno(a) numa escola como a Escola de Artes Visuais do Parque Lage – uma “escola livre”. Nesse momento, Lyz saiu dos corredores do Parque e ganhou visibilidade, tendo sido convidada(o) por museus e galerias tanto como artista quanto como mediador(a).
Lyz se refere a si mesma(o) como um vírus que se reproduz e infesta o sistema. Sua arte é política no sentido de quebrar tabus e se apresentar como uma alternativa viável de arte sem amarras, sem concessões ao mercado e ao sistema. Dessa forma ele(a) foi se reproduzindo e impondo sua marca mesmo remando contra todo um sistema que poderia não só rejeitá-la(o) como também destruí-lo(a).
Lyz Parayzo e Augusto Braz, Fato-Indumento. Ação paralela à exposição Quarta-Feira de Cinzas, Escola de Artes Visuais do Parque Lage, Rio de Janeiro, Brasil. Setembro de 2015. Fotografias de Helena de Oliveira
Foi então que ela(e) criou em parceria com Augusto Braz aquela que talvez viesse a ser sua performance mais conhecida até agora: Lyz se posta seminu(a), com apenas a roupa de baixo, em cima de um tijolo, o que lhe provoca imensas dores nos pés, e fica parado(a), imóvel, por mais ou menos uma hora. Nessa performance é usada uma cola simples e rolos de um papel cor de rosa cuja característica é ser o papel mais barato do mercado, muito usado em banheiros de lugares simples seja como papel higiênico, seja como papel de mão. O uso desse tipo de papel já é importante por si mesmo. Trata-se de um papel muito barato cuja simbologia é o uso pelas populações de baixa renda. Sua cor rosa não poderia ser mais perfeita para o uso a que serve nessa performance. Dois assistentes desenrolam o rolo e rasgam o papel em pedaços compridos, espalhando-o pelo chão. Essa parte do processo leva de quinze a vinte minutos. Tudo isso se passa com Lyz imóvel em cima do tijolo. Depois de desenrolado e rasgado, aos poucos, os(as) assistentes (ou quem quiser da audiência) vão passando cola no corpo de Lyz e colando as tiras compridas de papel até tomar a forma de um vestido de baile. Uma vez acabado o vestido e todas as tiras de papel, Lyz desce do tijolo e sai andando lentamente como uma princesa com seu vestido, com comprida cauda se arrastando.
A ênfase aqui dada à relação de Lyz com sua escola não foi por acaso. Essa relação é a marca do que Parayzo se tornou e também tem um papel fundamental para se entender o grau de comprometimento da(o) artista. Uma das vezes que essa performance foi apresentada foi justamente na Escola do Parque Lage, durante a terceira inauguração de mais uma exposição do mesmo programa Curador Visitante. Mais uma inauguração, mais uma vez a proibição. Lyz ousou fazer a performance do vestido em plena abertura em que se servia champanhe e convidados importantes transitavam. Enquanto estava imóvel em seu tijolo, muita coisa aconteceu. A curadora acusou-o(a) de estar atrapalhando a exposição dela enquanto Lyz, impassível, permanecia em cima do seu tijolo. O assistente da curadoria queria que as luzes fossem apagadas para interromper a ação. Chamado o diretor da escola, Lyz foi ameaçada(o) inclusive de ser expulsa(o) pela segurança. Mais uma vez se pode ver Lyz impassível diante do diretor tentando demovê-lo(a) da ação, falando a centímetros de seu rosto enquanto ele(ela), inabalável, termina a sua performance sendo ovacionado pelos(as) presentes que, vendo a situação, começaram a participar da performance, colando os papéis em seu corpo. Essa performance foi apresentada, posteriormente, em galerias do Rio de Janeiro e São Paulo e aplaudida onde quer que tenha passado. Os vídeos, feitos na Escola e numa galeria de São Paulo, registram as etapas e resultado final da ação, apresentando sua dimensão.
Lyz Parayzo, Manicure Política. Ação paralela à exposição Permanências e Destruições, Rio de Janeiro, Brasil. Junho de 2016. Fotografia de Helena de Oliveira
Lyz Parayzo, Manicure Política. Performance apresentada no Rio de Janeiro, Brasil. Agosto de 2016. Fotografias de Lucas Guimarães
Lyz Parayzo, Manicure Política. Performance apresentada no Rio de Janeiro, Brasil. Novembro de 2016. Fotografias de Aline Beatriz de Souza
Lyz Parayzo, Unha Navalha – Experiência n. 1, 2016
Sua obra atual e mais conhecida também é de uma força extraordinária e reflete perfeitamente a arte e a militância de Lyz. Trata-se de uma performance chamada Manicure Política. Lyz começou essa performance em prédios ocupados em situações de muito risco. Fora do circuito das artes, que já havia conquistado com todo o direito, Lyz procurou fazer essa performance onde ela fosse mais necessária. Com isso monta sua mesa de manicure munida de esmalte Impala paraíso perolado em ônibus, edifícios abandonados ou onde quer que possa pintar a unha de qualquer um(a) que deseje. Às vezes, monta um salão estilizado, outras vezes, só leva o esmalte. É importante aqui notar o significado político de tal ato: num mundo cada vez mais preconceituoso, onde as(os) diferentes às vezes são espancadas(os) ou mortas(os), Lyz tem a coragem de se expor correndo inclusive risco de vida ao usar saia, maquiagem e pintar unhas em lugares onde isso nem sempre é aceito.
A arte depende muito da história e da pessoa do(a) artista misturando-se com ela. Lyz performatiza a sua vida de forma tal que não se pode separar artista de pessoa. Sua ambiguidade sexual explícita, sua recusa a qualquer tipo de rótulo, assim como a sua recusa a ocupar o lugar que lhe foi destinado na sociedade a(o) tornam o “ser arte” e “ser político” por excelência. De origem pobre, usou e usa o estudo como arma, sendo notória a sua capacidade e avidez de conhecimento. Aos vinte e dois anos, Lyz já leu grande parte dos livros importantes sobre arte e performance. Busca-os em bibliotecas, pede a colegas mais abastados, professores(as), editoras(es), não mede esforços na busca de conhecer melhor as sutilezas de seu ofício. E essas características fazem dele(a) um(a) das(os) artistas promissores(as) de sua geração.
Lyz é necessário(a), profundamente necessário(a) para conscientizar muitos(as) de seus privilégios, para demonstrar que a arte não precisa da proteção de pequenos grupos de eleitos(as), que não há necessidade de se conhecer as pessoas “certas”, que não se precisa de dinheiro, e também procura mostrar que há sim lugar para o que é diferente. A arte pode ser liberdade e, mais do que tudo, pensar a liberdade. Lyz é um(a) libertário(a) que não admite concessões e nisso resgata a arte trágica, aquela que se faz com a própria vida ou mesmo à custa dela, fora de panelas, grupos ou instituições.
E essa possibilidade pode se dar a partir do momento em que na vida, na própria vida, já se lida com essa negociação, com essa afirmação da identidade – no espaço da casa da família, dos(as) vizinhos(as), do ônibus, da rua, que não incluem a transgressão, a diferença. Transgredir não é preciso, tampouco necessário, muito menos permitido. Mas numa escola de arte, na arte, no mundo da arte, sim. Só que não, só que nem sempre, só que não quando discorda da ideologia vigente.
Lyz Parayzo e Augusto Braz, Fato-Indumento. Performance apresentada em São Paulo, Brasil. Dezembro de 2015. Fotografia de Amanda Accioly
Lyzandro, Lyz, Lyz Parayzo, Lyz Bigfield nasceu aí. Nessa consciência. Não existe esse mundo da permissão, do acolhimento da divergência. Ou, pelo menos, não para todos(as). Não em qualquer momento. Lyz Parayzo tem o mérito do enfrentamento, que se dá pelo estudar, pelo pesquisar, pelo fazer. Seus trabalhos têm a consistência daquele que transforma questões pessoais em questões universais, desde quando se apresenta em mostras que não a(o) incluíram como artista com ações que desafiam o sistema da arte, até quando trata em suas ações de questões de gênero de forma original, e até mesmo em sua atuação como mediador(a), quando se relaciona com o público à sua maneira, particular. Difícil estabelecer o limite entre a(o) artista e o(a) indivíduo(a). As questões da arte e as questões da vida estão juntas, e aí, indissociáveis.
NOTA
[1] SÁ, Alexandre; ABBADE, Matheus. “Pequenas anotações na Encruzilhada (Texto da Íntegra)”. Revista DASARTES, Rio de Janeiro, n. 40, junho de 2015. Ver em: <http://dasartes.com.br/materias/pequenas-anotacoes-na-encruzilhada-texto-na-integra/>. Consultado em 12 de dezembro de 2016.
PARA CITAR ESTE TEXTO
QUEIROZ, Tania; MOSS, Angela. “Lyz Parayzo: Artista do Fim do Mundo”. eRevista Performatus, Inhumas, ano 5, n. 17, jan. 2017. ISSN: 2316-8102.
Revisão ortográfica de Marcio Honorio de Godoy
Edição de Da Mata
© 2017 eRevista Performatus e as autoras
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