Violência Gráfica: As Armas de Marcela Tiboni

 

Texto escrito a partir da entrevista realizada no dia 5 de agosto de 2014 na CENTRAL Galeria de Arte (São Paulo, Brasil).

 

Marcela Tiboni, Arsenal, 2014

 

O percurso da produção de Marcela Tiboni nos relembra a todo instante que há um mundo em intensa operação para além da produção artística, e que é em constante e direto diálogo com ele que se constitui algo que tendemos a chamar de “arte”. Vendo as fotografias e montagens do início de sua produção, fica difícil pensar na possibilidade atual de uma existência autônoma da arte ou de algum tipo de zona de imanência contida em uma obra, como muito foi desejado ao longo da história da arte moderna. Na obra de Tiboni, esse mundo cindido de uma experiência cotidiana, cujas significações são puramente internas e abstraídas, precisa entrar em contato com um mundo tangível, corporal, afetivo. É esse o mote que torna essencial tratar de sua produção em uma revista de estudos performativos.

Tomemos por exemplo um Mondrian: suas cores primárias, linhas retas e equilíbrio num diálogo quase divino só são possíveis em uma representação abstraída ao máximo do mundo (afinal, até mesmo o caos de Nova York ganha contornos precisos e exatos em seu campo pictórico). Já a obra de Tiboni, Para Mondrian, pode começar a ser pensada através de uma carta escrita pela artista Lygia Clark a um hipotético Mondrian, em seus diários:

 

Mondrian: você acreditou no homem. Você fez mais: num sonho utópico, estupendo, pensou em eras vindas em que a própria vida “construída” seria uma realidade plástica… Talvez isto te salvasse da tua própria solidão. Pois eu, meu amigo, não sonho porque não acredito. Não por excesso de realismo mas para mim o coletivo só existe na razão desta desordem de ordem prática e social. [1]

 

Marcela Tiboni, Para Mondrian, 2004

 

Na obra de Tiboni, essa desordem de ordem prática e social, essa espécie de inexatidão do corpo humano, tortuosidade que nos relembra a todo instante que não há a perfeição da matemática em nossos corpos, move sua resposta – também carinhosa – para Mondrian. Vemos na fotografia as mãos da artista formando uma concha repleta de tinta branca, na qual reside, centralizado silenciosamente, um quadrado vermelho. Ao fundo, algumas linhas são desenhadas, junto a um quadrado azul situado no topo da imagem. Aqui, as linhas retas do artista viram as linhas das palmas das mãos, espaço no qual é impossível se obter um quadrado perfeito. Assim como a dependência entre coletivo e desordem apontada para Clark, o corpo depende de uma certa desproporção, ou, como nos lembra Michel Foucault, “meu corpo é o contrário de uma utopia, é o que nunca está sob outro céu, é o lugar absoluto, o pequeno fragmento de espaço com o qual, em sentido estrito, eu me corporizo” [2].

 

Marcela Tiboni, O grito, 2003

 

Marcela Tiboni, compor-re-compor, 2003

 

E é esse corpo que entrará em embate com uma história da arte que perpetua determinadas imagens e escolhe certos conceitos para linearizar esse processo de embate com o mundo. De acordo com a artista, o processo de criação de suas obras no começo de sua trajetória era muito claro: partia de alguma frase ou conceito específico de suas leituras, o que gerava um título, que promovia uma ideia de imagem para só então iniciar seu processo de realização. Porém, essa idealização radical do processo de produção da obra era dialetizada no seu modo de realização. Era sempre essencial – e isso pode ser visto internamente na obra – uma experiência direta com o material discutido no trabalho, que sempre se reportava à história da arte que temos acesso. Para entender a pintura, a artista cobria-se com tinta, engolia-a e gritava, atualizando a figura tortuosa de Munch. Já o concretismo ganha a palma de suas mãos, que se distanciam e aproximam para mover os quadrados verdes nelas pintados.

 

Marcela Tiboni, Estudo para desenho de corpo I, 2006

 

Marcela Tiboni, O beijo, 2006

 

Marcela Tiboni, Jônico sob rosto feminino, 2006

 

É quase possível “pegar” as imagens, imaginando a artista – ou nós mesmos – em nossas casas, experimentando as matérias e procedimentos adotados por Tiboni, que os revela e nos aproxima ainda mais de sua produção. É um trabalho artístico claramente movido pela necessidade de apreender e de entender isso que chamamos de história da arte. A artista inclusive conta que os trabalhos eram respostas a uma necessidade de se entender os grandes teóricos (como Giulio Carlo Argan, Ernst Gombrich, dentre outros) e pintores legitimados historicamente, ao passo que precisava produzir seus primeiros trabalhos, no contexto da universidade. Para ser possível ultrapassar a informação dos livros e conseguir experienciá-los, a artista transpunha e transformava o conteúdo das páginas do livro diretamente para seu corpo.

 

Marcela Tiboni em atividade na exposição Arsenal na CENTRAL Galeria de Arte. Fotografia de Wagner Lungov

 

Hoje, porém, a artista produz armas. Em “Arsenal”, sua última exposição na CENTRAL Galeria de Arte, somos levados a um corredor no qual estão dispostas cerca de 120 armas feitas de madeira, papelão e cola, porém carregadas com rojões. Ao final do corredor, vemos um pequeno ateliê repleto de instrumentos, livros e matérias de referência, além de muito pó. Lá, a artista está presente, não com o rigor “abramoviquiano” das intensas horas diárias sem almoço, mas com o vigor do trabalhador que constrói diariamente esse artefato que tanto molda nossa subjetividade nos dias de hoje.

Entender o percurso dessa intensa transformação em sua obra nos leva a olhar tanto para questões internas de sua produção quanto para acontecimentos recentes na história mundial. Sobre sua produção, podemos perceber, no discurso da artista, um esgotamento desse interesse em apreender a história da arte ao longo de dez anos (ou como ela brinca: “eu deixei a história da arte para ficar apenas com a arte”) e o crescente aparecimento de representações de armas em suas fotografias (feitas com papelão ou até mesmo com frutas). Essa experiência com as armas se intensifica na sua individual anterior na mesma galeria, intitulada “Sobre a Força e a Coragem”. Lá, em seu último diálogo direto travado com a história da arte, a artista olhava especificamente para a produção de Almeida Júnior. Em suas “obras-resposta”, um machado e armas falsas (porém incrivelmente reais quando fotografadas) eram recorrentes, fortalecendo uma relação de violência hipotética de alguns trabalhos anteriores (onde vemos armas formadas por frutas ou até mesmo por seu dedo apontado).

 

Marcela Tiboni, Morrer no auge, 2008

 

Marcela Tiboni, Ataque surpresa a Archimboldo, com bazuca, 2010

 

Marcela Tiboni, Crime passional, 2012

 

Marcela Tiboni, Crimes Passionais, 2012

 

Essas imagens, que indicam e sugerem um ato violento, porém de impossível concretização, nos lançam questões sobre a própria significação de uma arma e como ela se coloca diante de nós hoje em dia. Afinal de contas: um rolo de papel higiênico pode ser uma arma? Para as crianças que brincam de polícia e ladrão, aparentemente sim. E para nós, pode? Em um mundo no qual estamos permanentemente circundados por objetos, a reflexão sobre essa pergunta nos relembra que esses objetos – e sua relação com os seres humanos – estão compreendidos dentro de uma complexa rede de significado, função e forma. Nessa rede, determinadas formas sugerem usos específicos e significações que deles decorrem.

Desde o ano passado, quantos amigos não colocaram vinagre em frascos para sair pelas ruas? Quantas mangas compridas e blusões não foram extremamente necessários, mesmo em dias quentes? Pode não parecer, mas certamente comer uma salada ou sair em dias frios muda ligeiramente depois de 2013, pois esses novos usos recortam minimamente um novo espaço de emanação de significados e de visualização disso que nos circunda. As armas, instrumentos de proteção e luta, são também instrumentos de relação e afetação entre humanos, e é nesse ponto que a artista interfere, retirando o seu corpo (com um cansaço da autorrepresentação que acompanha seu desprendimento da história da arte) e convidando outros corpos para se posicionarem nessa brincadeira não tão descompromissada que é o ato de segurar uma arma.

Óbvio que elas convidam ao toque: sua forma é pensada na justa medida para uma mão humana. Agora, fica sempre a pergunta latente: o que se fazer com isso? O preciso texto de Paulo Miyada [3] cita a latente possibilidade de usá-la diretamente como instrumento de ataque: ao invés de se atirar, joga-se a arma na cabeça de alguém; carregam também as próprias armas a possibilidade da explosão. Mas nada aconteceu até o último dia da exposição, enquanto muito acontece fora dela a todo instante com objetos que possuem a mesma forma.

 

Marcela Tiboni, Arsenal, 2014

 

Marcela parece, durante a entrevista, silenciosamente me perguntar sobre um limite entre realidade e ficção, representação, mímese. Afinal, mesmo sem nenhum ato de violência direta, as fotografias de visitantes e da artista com as armas foram excluídas do facebook (um dos maiores difusores e mediadores de imagens a que hoje temos acesso), por denúncia de violência gráfica. Borrando os limites entre mocinhos e vilões e apresentando essas formas da arma em um contexto que lhes é completamente estranho, Marcela nos lembra que a violência que significa nessas armas é apenas uma sugestão, uma saída dentre um campo aberto de possibilidades. Quando ela é abstraída da forma da arma, desmontam-se as opiniões, ideias e conclusões sobre as relações promovidas através das armas e sobra algo muito mais cru: o corpo que a segura.

No percurso de Marcela Tiboni, vemos com extrema generosidade esse corpo que se torna conhecedor de seus limites, de sua finitude e passividade em relação aos objetos do mundo. Esse corpo cambaleia, falta, desmorona, sucumbe. É incompleto como a mão que jamais segurará um Mondrian. É um corpo que jamais conseguirá apreender a totalidade do gesto humano que compreende apertar um gatilho. Um corpo que não tem cara, que pode ir de um rosto doce que confecciona armas a um capacete que atira em multidões.

 

 

NOTAS

[1] FERREIRA, Glória; COTRIM, Cecília. Escritos de artistas – anos 60/70. Rio de Janeiro: Zahar, 2009, p. 33.

[2] FOUCAULT, Michel. O corpo utópico e as heterotopias. São Paulo: N-1 Editora, 2014, p. 25.

[3] MIYADA, Paulo. Arsenal: Marcela Tiboni. Disponível em: <http://goo.gl/TseoqW>. Acesso em 15 de agosto de 2014.

 

 

PARA CITAR ESTE ARTIGO

MARCONDES, Renan. “Violência Gráfica: As Armas de Marcela Tiboni”. eRevista Performatus, Inhumas, ano 2, n. 12, Out. 2014. ISSN: 2316-8102.

 

Revisão ortográfica de Marcio Honorio de Godoy

© 2014 eRevista Performatus e o autor

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