Fotógrafo Fútil: Apontamentos sobre “Videopolaroids”, da Cia. Excessos

 

Tales Frey (Cia. Excessos), Videopolaroid I, 2009

 

 

A aparente objetividade das imagens técnicas é ilusória, pois na realidade são tão simbólicas quanto o são todas as imagens. Devem ser decifradas por quem deseja captar-lhes o significado.

Vilém Flusser

 

Em um cemitério, uma mulher, que estereotipa o feminino, posa para a câmera de vídeo, vestindo uma peruca vermelho sangue, assim como um cinto, bolsa e botas da mesma cor. Um certo desajuste se evidencia em um proposital desequilíbrio, acentuado por sua boca torta e pelas tentativas frustradas de colocar o pé sobre uma das lápides, para logo após realizar diversos gestos de ajuste da sua roupa e pose para a câmera, que treme. Correndo, surge um homem de cueca do lado esquerdo da imagem. O homem rapidamente abaixa a cueca e mostra a bunda para a câmera, segurando algo que aparenta ser um buquê de flores. O vídeo, que possui uma sonorização provavelmente retirada de um CD de material didático de uma aula de espanhol, agrega uma série de antinaturalismos: a tentativa do corpo feminino de se sustentar, o local de realização da ação em relação à ação em si, o som das falas em espanhol didaticamente pronunciadas, a roupa da mulher e a forma de se desnudar do homem. Todo esse contexto visto no vídeo produz uma foto Polaroid, que pausa alguns desses desconfortos e evidencia outros. A foto, digitalizada, é colocada no vídeo no momento em que a ação do vídeo se iguala à da foto, com uma leve diferença de ângulo, pois a câmera que filma e a que fotografa não podem ocupar o mesmo lugar no espaço.

Trata-se do primeiro vídeo realizado para a série Videopolaroids, da Cia. Excessos, de um total de seis até o momento. Cada trabalho da série possui tanto o vídeo com a Polaroid digitalizada quanto a foto tirada. Ao olhar para os trabalhos da série, percebemos que o que é constante em todos é a relação de um vídeo (processual?) com uma foto tirada em algum momento da gravação do vídeo, e que é depois digitalizada e editada no vídeo, de modo a aparecer sincronizada com o momento no qual a foto é realizada. A temática dos vídeos varia, dando uma vaga impressão de que o material do vídeo e sua direção artística partem do ambiente no qual os integrantes da Cia. estavam ao decidir fazê-los. Mesmo partindo da mesma proposta, seria impossível analisá-los a fundo, pois o modo de composição de cada vídeo, o conteúdo abordado especificamente em cada foto e seu contexto de realização tornam um olhar crítico sobre sua forma um exercício que demandaria muito tempo e mais páginas do que as possíveis neste artigo. Dessa forma, por serem seis trabalhos de uma mesma série, realizaremos aqui alguns apontamentos que tangenciam de diferentes formas essa experiência, optando pela análise de alguns fatores essenciais da obra e das discussões possíveis de se obter a partir dela.

Comecemos então analisando não o trabalho, mas uma descrição do atual site da empresa Polaroid, que se define como: “A trusted global brand for over 75 years, Polaroid is best known for pioneering instant photography. Today, Polaroid has reinvented instant photography for the digital age and is a world leader in consumer electronics” [Uma marca de confiança global há mais de 75 anos, a Polaroid é mais conhecida pelo seu pioneirismo com a fotografia instantânea. Hoje, a Polaroid reinventou a fotografia instantânea para a era digital e é líder mundial em eletrônicos de consumo] (site oficial da Polaroid, grifo nosso). Ao ler essa breve descrição, é impossível não se questionar a mesma coisa que questionam os artistas discutidos neste artigo: Por que (re)lançar esse tipo de câmera nessa nova primeira virada de década do século XXI? Assim, ao analisar os trabalhos, é possível perceber não uma afirmação da Polaroid, como parece à primeira vista, mas sim uma série de negações da Polaroid inserida em um contexto digital da fotografia no qual a subjetividade de quem fotografa já está condicionada a certa futilidade do ato de fotografar. A partir disso, precisamos nos perguntar primeiramente se é possível escapar de um fetiche em relação à nossa permanência imagética no mundo, dada outra permanência cada vez mais forte: a dos aparelhos ao nosso redor.

Estamos em um processo histórico no qual a tecnologia nos permite captar cada vez mais uma suposta “realidade” da imagem que se constitui na visibilidade como fundamento de credibilidade (realidade que pressupõe certa importância da imagem fotografada). Ao mesmo tempo, há um paradoxo na existência de uma tecnologia cada vez mais autônoma, no sentido de ter controle sobre uma captura cada vez melhor do mundo (mais megapixels, visão panorâmica, terceira dimensão etc.), ao passo que a ação de tirar uma foto torna-se algo cada dia mais banal. Não podemos nos esquecer que vivemos em uma época de digitalização desenfreada das coisas ao nosso redor, em que aplicativos como o Instagram dissolvem absurdamente o acesso e transformam a função do aparelho. Essa necessidade de permanência do corpo, própria do ato fotográfico, se coloca em contraponto direto a uma fragilidade dos objetos, em que sua obsolescência programada faz com que seu breve apagamento seja mais que uma condição, tornando-se uma expectativa. Em relação a essa temporalidade do corpo e do objeto, Videopolaroids parece operar por duas vias: por um lado, posiciona-se criticamente sobre o frenesi do gadget ao recuperar um aparelho fotográfico antigo e que não supre uma necessidade de registro mais recente e esquizofrênica, como podemos ver nos instragrans que surgem a cada dia; por outro lado, reafirma, tematicamente, no conteúdo dos vídeos, essa futilidade – ponto indeterminado entre o útil e o inútil – da nossa relação com os objetos do mundo.

Sobre essa futilidade nos interessa pensar, pois existe no trabalho uma mescla desse entendimento contemporâneo da fotografia como exercício fútil dialogando com certo saudosismo e romantismo (crítico?) em relação à Polaroid. Podemos perceber que todo dispositivo opera um processo de subjetivação, exercendo sobre o corpo – organismo vivo – uma sujeição em relação ao seu uso, submetendo-nos a um exercício de controle operado pelos modos de funcionamento do dispositivo, o que altera diretamente o tipo de gesto realizado por quem está em relação com o dispositivo. A existência de um aparelho fotográfico que permite um número infinito de fotos e sua exibição imediata para um grande número de pessoas gera uma banalidade do ato fotográfico que torna qualquer coisa “fotografável”. Uma função de registro e de memória que é possível na fotografia e que fornece a ela certo caráter útil cai por terra em meio a uma série de fotografias inúteis, cuja função objetiva de registro inexiste e abre um outro espaço possível para um caráter artístico, que talvez opere pelo excesso e superficialidade. Em Videopolaroids, há uma aceitação dessa banalidade impregnada em nossa forma atual de registrar e também um desvio poético desse gesto da fotografia que passa a ser inútil para um aparelho que não o possibilitaria. Todos os momentos registrados nada significam e alteram a lógica produtiva de um registro em Polaroid.

Em Videopolaroids, o instante decisivo de Bresson é completamente subvertido quando, em um dos vídeos, uma mulher vai colocando diversos objetos sobre sua cabeça, sem importância aparente. A fotografia registra um deles, que não possui diferença simbólica em relação aos outros. Dessa forma, perguntamo-nos a respeito da necessidade de uma “importância” do ato de fotografar: a produção de uma banalidade da memória pode ser um fator de desvio e contraponto para uma suposta crença na importância da imagem fotografada. Outro fator que nos desvia dessa crença é um certo teor kitsch-barroco nos vídeos, que evidencia a montagem das situações como algo feito exclusivamente para aquela foto. Não há uma naturalidade nas ações e no contexto que possibilite pensar a foto em seu padrão funcional, mas sim a exacerbação de uma situação (dramática, caseira, urbana etc.) a fim do registro. Essa banalidade talvez seja o que a Cia. aponta como Infame no texto dedicado ao trabalho; ou seja, sem importância e desinteressante.

Ainda pensando a respeito da relação entre permanência e desaparecimento, podemos ver que, no texto escrito pela Companhia sobre o trabalho, lê-se na descrição que “esse momento único (a ação que é fotografada) pôde então ser eternizado através da imagem em movimento, diferentemente da Polaroid que se desgasta com o passar dos anos e, temporariamente, mantém a imagem captada” (FREY, 2010). Se está evidenciado no argumento acerca do trabalho uma questão temporal entre a efemeridade da foto revelada (que no caso da Polaroid é ainda mais evidente) e a perenidade do vídeo gravado, o que de fato significa fotografar com uma Polaroid quando há a possibilidade – e realização – de sua digitalização, incluindo sua inserção no vídeo? A existência de um papel no qual se vê a foto ganha um valor maior ou menor quando ela existe também virtualmente, ou seja, enquanto potência? A foto digitalizada está em um estado de suspensão, o que torna o conteúdo da Polaroid não mais sujeito ao tempo, já que a imagem contida na foto pode manter-se para além do tempo de vida de uma Polaroid. O desaparecimento da imagem deixa de ser um problema e se transforma em característica do material, o que dissolve a discussão entre tempo eternizado e tempo que se desgasta. Fotografar com uma Polaroid pressupõe saber que essa fotografia deixará de existir e, dessa forma, digitalizá-la e colocá-la no vídeo, outro dispositivo tecnológico do olhar, parece operar uma negação dupla da Polaroid em si.

Parece que não há saída. Ao propor um “registro do registro”, o trabalho poderia ter optado por filmar a ação de fotografar, porém o foco é dado para o que circunda a foto e para o que se deseja capturar. É evidente a impossibilidade latente nesse gesto frustrado, assim como é frustrada a tentativa de recuperar certa aura de uma Polaroid que se apaga com o tempo, dada a nossa perda de consciência temporal e um interesse egoico do registro do banal a todo custo. Ao dar foco a esse contexto, Videopolaroids nos mostra as bordas do gesto de fotografar evidenciando sua possível banalidade ou, como o trabalho mesmo propõe, sua infâmia. Não há nenhum fetiche em relação à Polaroid, pelo contrário, há a exacerbação do fetiche de se fotografar e, mais do que isso, de se ter uma Polaroid nos dias de hoje.

 

BIBLIOGRAFIA

FREY, Tales. Videopolaroid. Disponível em: <http://ciaexcessos.com.br/tales-frey/trabalhos/videopolaroid>. Acessado em: 15/02/2014.

 

 

PARA CITAR ESTE TEXTO

MARCONDES, Renan. “Fotógrafo Fútil: Apontamentos sobre ‘Videopolaroids’, da Cia. Excessos”. eRevista Performatus, Inhumas, ano 2, n. 10, mai. 2014. ISSN: 2316-8102.

 

Revisão ortográfica de Marcio Honorio de Godoy

© 2014 eRevista Performatus e o autor

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