“Tupyqueer” Manifesto

 

Vamos falar sobre a importância de um corpo de artista queer. Um corpo imbuído de tarefas e ações artísticas que se apropriam ativamente de seu contexto cultural. Um corpo que se utiliza de poses e gestualidades para sucatear e reprocessar as informações circunda. [1]

Entretanto, é necessário fazer um breve recuo à célebre frase do legado shakespeariano: “Ser ou não ser – eis a questão”. Por ter se tornado uma das máximas do pensamento ocidental, acabou se deslocando de seu nicho inicial (um diálogo teatral a ser representado) para ganhar vida e leitura próprias. Eu recupero o discurso de Hamlet para sucateá-lo em prol de nosso bel-prazer, amparado pelas sombras sintomáticas que essa linha do personagem de Shakespeare produz até mesmo aqui, enquanto estamos a pensar em dissidências, em diferenças e causações.

A dúvida hamletiana atravessou os séculos e se tornou uma máxima demarcadora da crise de identidade do sujeito ocidental às voltas com a tomada de posição sobre afirmar ou não, e publicamente, uma “substância” de si na esfera social em que se insere – tendo essa “substância” outros nomes, como interioridade, identidade ou “eu verdadeiro”. Em linhas gerais, “ser ou não ser” evidencia a regência do pensamento dual das diferenças na cultura e sociedade ocidentais, ansiosas pelo cerceamento dos desejos e de suas figurações na arena pública.

No entanto, o sujeito sempre estará escapando, se esquivando, burlando, mesmo que a contragosto, qualquer enunciação peremptória de seus desejos, comportamentos e práticas, ainda que opte pela aparente dissolução do “dilema” ao escolher uma das extremidades dessa polaridade binominal. Portanto, “ser ou não ser” uma “substância” de si unívoca e coerente perante a arena pública ou a si mesmo é uma intervenção linguística potente e performativa, embora não aplaque a transitoriedade e a transformação do sujeito e a de seus desejos.

O sistema dual sempre denota e prevê a exclusão do outro, pois, ao impor somente duas opções em que uma delas é o caminho possível a ser trilhado, o sujeito é impelido a descartar as demais possibilidades excluídas do jogo dual, mobilizando-o na ficção de uma unidade identitária que não condiz, muitas vezes, com a diversidade de seus desejos. Deixa-se de lado a multiplicidade, as cisões e as incoerências próprias da discursividade plural de si.

No que tange aos problemas de gênero e, principalmente, aos da sexualidade no Brasil, a articulação discursiva dos pares binários caiu como um “fino tailleur” para a demarcação dos sexos, identidades de gênero e práticas sexuais, assim como de seus respectivos trânsito e expressividade em nossa esfera social. Portanto, na sociedade brasileira passou a ser presente a marca linguística da barra (/) – sinal gráfico que reforça polaridades e limites no transitar entre um polo e outro. No cerne da militância homossexual, por exemplo, que no Brasil começou a ser delineada nos idos da década de 1960, a demarcação gráfico-discursiva da barra tornou-se presente pelo uso constante do verbo assumir, que não deixava de ser uma ressonância da ideia do coming out, presente nos movimentos gays e lésbicos norte-americanos. Essa atitude política de enunciação da sexualidade ou, se preferirmos, da “saída do armário” do sujeito homossexual, resultou em maior visibilidade das dicotomias público/privado, vida familiar/vida secreta, heterossexualidade/homossexualidade. Curiosamente, essa política é paradoxal perante o histórico das práticas sexuais e das manifestações de desejo e gênero na sociedade brasileira, instaurando uma “alfândega crítica” [2] (em que a barra é sinal mister) antes inexistente no território nacional, já que os limites entre homossexualidade e heterossexualidade, por exemplo, e principalmente nas classes populares, eram uma fronteira ambígua e generalizada. [3]

Então, em vez de encararmos o “ser ou não ser” como a urgência de uma resposta definitiva e (auto)reguladora, por que não pensarmos o jogo performativo intrínseco a esse “dilema”, enunciação que pode ser feita, desfeita e refeita a todo momento, ganhando respostas diferentes em cada contexto? Por outro lado, uma resposta indefinida a essa questão não seria uma postura repleta de astúcia e audácia perante um contexto social cada vez mais rígido na catalogação das marcas identitárias do sujeito – seja estas de classe, gênero, étnica ou sexual? E se em vez de uma resposta seletiva entre “ser” ou “não ser” uma pessoa com uma sexualidade assim ou assado propormos uma resposta aditiva, inclusiva de “ser” e “não ser”, quais seriam as suas implicações? Indo mais além: uma resposta inconclusiva, indefinida ou inclusiva ao “ser ou não ser”, pode ganhar um saber e sabor distintos, dependendo do trópico onde a questão é proferida?

Após tais questionamentos – e que deixo aqui em aberto – retornemos ao debate sobre a arte para trazemos à tona duas perguntas que precisamos levar em consideração: (1) O que pode a arte queer?; e (2) O que pode artistas queer?

Então, tento respondê-las com uma única resposta: arte e artistas queer podem apontar possibilidades performativas que não se encontram na pauta do dia e que, portanto, se encontram no campo do obsceno, isto é, do lado de fora da cena atual. Arte e artistas queer podem chamar a atenção para práticas e modos de fazer dissidentes no território da arte, e também podem dar visibilidade à multiplicidade de desejos que residem nas dissidências sexuais.

Busco responder a essas perguntas levando em consideração os nossos contextos histórico, político e social e, também, por acreditar que é praticamente impossível um fazer artístico contemporâneo que não dialogue com a enxurrada de informações midiáticas produzidas na atualidade. Sendo assim, surgem outras questões: como fazer arte queer diante da vasta produção da indústria cultural contemporânea? Que posição artisticamente política deve ser tomada perante uma indústria cultural que se alimenta das manifestações culturais, comportamentos e sexualidades considerados periféricos, fazendo dessas “minorias” uma fatia considerável de seu mercado?

Não sejamos ingênuos: a relação entre a normatividade da indústria cultural e as ditas “minorias” sempre alimentou um jogo de saberes de mão dupla. Se, por um lado, a indústria cultural reduz as sexualidades, as expressões e identidades de gênero a meia-dúzia de tipologias comportamentais que reforçam os binarismos homem/mulher, macho/fêmea, masculino/feminino, hétero/homossexual, por outro, os saberes e comportamentos dissidentes vêm sendo mais expressivos com seus modos de contestação e de resistência às fronteiras sedimentadas pela ficção heteronormativa, ao burlar os padrões culturais, simbólicos e performativos de “ser homem” e de “ser mulher”. As expressões artístico-culturais das “minorias” muitas vezes sucateiam e deslocam as produções midiáticas da indústria cultural, subvertendo as suas blondie girls, as divas glamourosas, suas fêmeas fatais, os bad boys e seus corpos musculosos. É notável como esses padrões hegemônicos de masculinidade e feminilidade vêm lidando com uma violenta e necessária subversão por parte de sujeitos com sexualidades, identidades e expressões de gênero não conformes com tais padronizações, oferecendo outras afetividades a esses padrões.

A busca por um diálogo crítico, violento, afetivo e borrado com a produção midiática tem sido um interesse constante que atravessa a minha prática artística e também o modo como vejo e experiencio o meu entorno. Além disso, há algum tempo venho me interessando por uma ficção quase arqueológica: a de enxergar um registro proto-queer em nosso legado cultural; tentar traçar artisticamente uma genealogia da arte e corporeidade queer no território brasileiro, antes mesmo da aparição do termo em nossas redes de debate social, acadêmico, político e artístico. Então, que história cada um de nós criaria para a arte queer em nossos frescos trópicos? Qual é a nossa ficção de uma origem queer? Quais são as arqueologias dos nossos corpos que racham os padrões?

Na minha versão (quiçá ficção) dessa história, uma das primeiras marcas queer na arte nacional pode ser encontrada no Modernismo brasileiro, com potente máxima de Oswald de Andrade em seu Manifesto Antropófago: tupi or not tupi that is a question.

A ladroagem em paródia da frase hamletiana feita por Oswald parece evocar a reativação de uma “língua bizarra”, de matrizes culturais e comportamentais não compartilhadas pela população branca e letrada de sua época. Através dessa questão, Oswald assinala o desejo de revisitar uma “mátria” matada, de resgatar culturas e comportamentos que foram sendo apagados e tornados invisíveis – pois não teria sido este país um território queer antes da tentativa de docilizar seus habitantes e sua linguagem? “Tupi or not tupi” tornava-se o avatar de uma esperança no círculo modernista.

Porém, proponho darmos um salto de tigresa sobre a frase de Oswald, tendo em mente que enquanto o círculo intelectualizado do Modernismo brasileiro projetava uma antropofagia, a famosa figura de Madame Satã já corria solta nos bas-fonds da noite citadina devorando a cena noturna com dublagens, navalha e capoeira. Dilacerando a provocação oswaldiana com as garras ferinas da Mulata do Balacochê – uma outra possível marca primeva queer em nossos trópicos –, que tal pensarmos em um tupy com “y” mesmo, apontando a origem de um Brazyl estrangeirado, em transe? Em um tupy que não possui genealogia definida, que não cabe em qualquer visão romântica e essencialista sobre ele e tampouco compartilha a ideia de um primitivismo positivista?

Então, na minha ficção de uma origem da arte queer no Brasil, afirmo que ela é tupyqueer, uma arte desgarrada, uma arte que ladroa, come, reprocessa e vomita os estereótipos que recaem sobre os corpos tropicais. Uma arte impregnada pelas Carmens, rumbas, Iracemas, portunhóis, Abaporus, boleros e Peris. Uma arte vertiginosa e extasiada, com a herança de sabor tropical – as corporeidades dissidentes desta terra abaixo do Equador sempre estiveram dentro de um jogo de aproximação e afastamento, com todo esse olhar erótico-tropical que recai sobre os nossos corpos e que, no entanto, introjetamos com calor e prazer, com o deleite do escracho e uma debochada doçura virginal.

“Ser” tupyqueer e fazer arte tupyqueer no Brasil é desbravar a selva fechada das normatividades. Para isso, é preciso muita montagem, bastante desorientação e disposição para montaria pesada. Tem de ficar de quatro, tem de gritar, tem de ter cu, boceta e pica. Para “ser” tupyqueer tem de ter pique.

A meu ver, reprocessar a indústria cultural e rediscutir a nossa ficção erótico-tropical são duas posturas não excludentes entre si. Seja a volúpia da loura platinada saindo de um bolo de aniversário, seja a pose brejeira da virgem dos lábios de mel, arrisco a pensar que os artistas tupyqueer, em meio a essa enxurrada de temporalidades, imaginários e corporeidades, são corpos que precisam estar atentos tanto às produções artísticas e midiáticas de seu tempo quanto à sombra de seu passado cultural, reconhecendo aquelas produções (tanto do passado quanto do presente) enquanto ficções culturais, distinguindo os seus contextos sociais, artísticos e intelectuais. Corpos que devem também manter-se alertas sobre a maneira que tais produções se posicionam diante das expressões e identidades de gênero.

Através de seus corpos, artistas tupyqueer deslocam e contestam publicamente a normatividade, os sistemas duais de diferenciação e cerceamento dos desejos e corpos do sujeito. Disseminam publicamente outras políticas de posicionamento a respeito das sexualidades, alastrando socialmente a presença de corpos gozosos e dispendiosos. Diante desse status quo, os corpos tupyqueer são perigosos e obscenos por serem corpos postos fora da cena e que retomam os palcos artístico e social de forma violenta, ácida e debochada. Corpos tupyqueer podem acionar outros modos de fazer arte e política, colocando-se em contraponto à estratégia de apagamento das diferenças engendrada pelas estâncias social e cultural dominantes, que estão repletas de discursos pseudoigualitários e falsamente democráticos.

Entretanto, este manifesto não resolve algumas questões que ainda me intrigam; ainda me pergunto como e quando se daria uma arte tupyqueer e quais seriam os seus campos de ação. Mas “ser artista tupyqueer”, por exemplo, é garantia de uma arte tupyqueer? Por outro lado, a “arte tupyqueer” também pode ser acionada por artistas que, comportamental ou sexualmente, não sejam dissidentes? Essas perguntas parecem fugir de quaisquer respostas categóricas, pois são perguntas-problemas que ganham respostas diferentes de acordo com o contexto em que são elaboradas. Contudo, acredito que a diversidade desse leque de questões seja um dos pontos mais importantes a ser levado em conta para se pensar a arte tupyqueer enquanto conjunto aberto de ações tensionadas, com modos de fazer paradoxais e conflitantes, e que têm o corpo como morada e ponto de partida da produção artística. Corpos de artistas como provedores, receptores e também como intermediadores críticos de mensagens sociais e culturais.

 

NOTAS

[1] Este manifesto é uma adaptação do roteiro textual da palestra performativa “To be or not to be queer: that’s a (toxic) question”, apresentada nos eventos Com.posições políticas (Panorama Festival/Rio de Janeiro, Brasil – 2011) e Todos os Gêneros: Poéticas da Sexualidade (Itaú Cultural/São Paulo, Brasil – 2013).

[2] A expressão “alfândega crítica” é cunhada por Silviano Santiago no ensaio “O Homossexual Astucioso”, onde o autor e crítico literário também argumenta, através de um recorte da ambiência do romance O Cortiço, de Aluísio de Azevedo, um espaço de convivência entre a expressões de sexualidade nas classes populares brasileiras em meados do século XIX. Cf. SANTIAGO, Santiago. “O Homossexual Astucioso”. In:___. O Cosmopolitismo do Pobre. Belo Horizonte: Ed. UFMG, 2004, p. 197-198.

[3] É oportuno dizer que, a meu ver, não houve momento mais crucial para a ratificação do jogo binominal do ser/não ser no contexto das práticas sexuais do que o das duas últimas décadas do século XX, quando adveio a epidemia do HIV/AIDS. A síndrome reforçou as noções de figura/fundo, revelação/ocultamento dos comportamentos sexuais, além da crescente estigmatização do sujeito soropositivo na cena pública daquele período, levando-o a situar-se entre a enunciação e o ocultamento de sua soropositividade.

 

 

PARA CITAR ESTE TEXTO

MASSENO, André. “‘Tupyqueer’ Manifesto”. eRevista Performatus, Inhumas, ano 3, n. 13, jan. 2015. ISSN: 2316-8102.

 

Revisão ortográfica de Marcio Honorio de Godoy

© 2015 eRevista Performatus e o autor

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