Dança e Animalidade: Entre Práticas e Discursos

 

Parte das discussões aqui propostas são desdobramentos de um texto anterior intitulado “Libertando o Animal na Dança: Dois Pontos”, publicado em 31 de maio de 2015 no site CTRL+ALT+DANÇA e dentro do projeto “Dança Carioca na Rede: Ações de Expansão”, coordenado por André Bern.

 

Um corpo masculino traja um figurino azul de balé que já não lhe cabe e está rodeado de passarinhos de plástico que assobiam constantemente. Um corpo que perde gradativamente a sua força vital. Um corpo que cede à gravidade, uma fisicalidade grave, pesada como uma morte lenta e abandonada, sem muito gestual e alarde – feito um pássaro azul, morto e esquecido no meio da rua.

Trata-se de uma das cenas de Hyenna: Não Deforma, Não Tem Cheiro, Não Solta as Tiras, estreado em 2013 [1]. Este solo, criado e performado pelo coreógrafo Tuca Pinheiro, traz à cena uma discussão peculiar sobre a animalidade como rebelião aos construtos imagético-corporais de uma certa maneira de pensar e fazer dança contemporânea. Em Hyenna, a dança é apresentada como espaço mister da história da antinaturalidade, ou, em termos mais específicos, é a prática de desmontagem da naturalidade do que se convencionou chamar dança contemporânea no âmbito brasileiro: suas naturalizações de contextos, de práticas e de tópicos, tornando-se recorrentes e coadunados a omissões das dissidências. Tuca Pinheiro promove a dança de um corpo que está às voltas com o movimento de dar conta de si, das falhas, dos lugares não alcançados e dos silenciamentos em prol de um espaço afirmativo e desabrigado de dúvidas concernentes às práticas da dança no contexto atual, tanto no sentido ético – existente nos modos de fazer dança – quanto político – acerca do que é possível dançar. Neste jogo entre a feitura ética e a possibilidade política, Hyenna põe em cena o dilema da própria história da dança ocidental, cuja evocação da animalidade constantemente resvala para a aspiração a um tempo não histórico, no intuito de posicionar os corpos dançantes para além de sua inevitável inserção na história. Como o trabalho de Tuca Pinheiro vem apontar, trata-se no entanto de uma aspiração fadada ao fracasso, já que o tempo histórico não cessa de recair sobre os corpos que dançam.

 

Tuca Pinheiro, Hyenna: Não Deforma, Não Tem Cheiro, Não Solta as Tiras, 2013. Fotografia de Guto Muniz

 

Esse argumento advém da cena supracitada no início desta discussão, cujo figurino remete diretamente ao balé O Pássaro de Fogo, criado em 1910 pelo coreógrafo Michel Fokine. A cena é marcada por uma dupla inadequação, visível tanto pelo figurino, que não veste perfeitamente, quanto pela impossibilidade constante de o performer manter-se em pé. O pássaro de fogo não consegue ser representado, pelo menos dentro do padrão usual ao qual sempre fora referenciado, isto é, como figuração da mobilidade e da mutabilidade através de um movimento ascendente e projetado ao espaço aéreo. Logo, o motivo histórico da dança – o de um animal voador como alegoria do corpo em luta com a gravidade a fim de alcançar a ilusão de voo no espaço do palco – é revisitado criticamente. Esta cena de Hyenna nos impele a um enfoque sobre a representação da animalidade e de sua relação com a modernidade no contexto histórico da dança ocidental, especialmente no que tange a uma nova representação do corpo dançante a partir da animalidade inaugurada em 1907 pelo já mencionado Michel Fokine, ao coreografar A Morte do Cisne especialmente para a bailarina Anna Pavlova. Nesse breve solo composto de descolamentos en pointe, a expressividade concentra-se no movimento ondulado dos braços de Pavlova personificando as asas de um cisne em uma morte cambaleante. Segundo o padrão da época, e que levava em conta a grandiosidade do antecedente O Lago dos Cisnes (1895), de Marius Petipa – e com o qual a coreografia de Fokine é recorrentemente confundida –, o solo era por demais singelo para ser executado por uma bailarina tão renomada e virtuosa. A Morte do Cisne tornou-se um marco na arte cênica ao ressaltar as possibilidades de manufatura e de pensamento sobre a dança a partir de seu tempo histórico, em vez de engendrar uma subserviência à mera utilização anacrônica e descompromissada de uma sequência preestabelecida de passos oriundos do balé. A modernidade estaria na postura minimalista, na busca pela contenção da expressividade, restringindo-a a um pequeno vocabulário de gestos e deslocamentos comedidos. Eis aqui, portanto, a impossibilidade do voo e o apelo recorrente feito pela força da gravidade na coreografia de Fokine.

Contudo, pensemos aqui na representação da animalidade concentrada na imagem de um cisne que morre personificado no corpo de uma mulher, ou de uma bailarina que deixa morrer a exibição do mero apuro técnico em prol de uma possível animalização de si. Reza a lenda que a coreografia de Fokine surgiu após um pedido feito pela própria Pavlova, que havia prometido se apresentar durante um concerto a ser realizado pelos artistas do coro da Ópera Imperial Russa. Foi pensando na estrutura corporal da bailarina, principalmente em seu pescoço longo, que o coreógrafo chegou à conclusão de que a dança precisava ser bela e expressiva (Cf. BEAUMONT, 1981, p. 25-26). Através da representação de uma ave mítica e símbolo do ascetismo, entrevê-se, em A Morte do Cisne, a idealização do belo evocado pela figuração de um corpo etéreo, embora efetuada por um cisne-bailarina que não consegue mais alçar voo, incapaz de manter a suspensão corporal desejada pela tecnologia da ilusão do balé, que tem as sapatilhas de ponta como o aparato essencial para o menor contato possível do corpo dançante feminino com o solo.

A partir desta breve revisão histórica, podemos pensar a coreografia de Michel Fokine como ressonância de uma linha argumentativa presente na história da dança ocidental durante os finais do século XIX e muitas vezes retomada ao longo do século posterior, baseada na ideia do humano como ser vivente que perdeu o contato com a natureza (cf. LEPECKI, 2016, p. 85). Em consequência, e no período da modernidade em que se insere A Morte do Cisne, o esforço disciplinar da dança reverbera o intuito da humanidade de retomar sua “natureza perdida”, ou melhor, de preencher essa “falta”. A busca por um certo padrão de beleza e expressividade através de um domínio técnico – e de invisibilidade do virtuosismo em prol de uma calculada “naturalidade” – aliada a uma aproximação via representatividade do animal acaba por visibilizar a falha programática da dança e, em linhas gerais, de qualquer manifestação artística: ou seja, a falha de continuar sendo demasiado humana e antinatural. Logo, surge a questão: como promover o retorno consciente à natureza? Como ir ao encontro da recuperação de um “espírito natural” sem destituir-se da consciência desse retorno? Afinal, para que e para quem foi inventada a “Natureza”, a delimitação desse apartado ao qual o sujeito sempre tenta aproximar-se? Em concordância com o viés reflexivo de André Lepecki, sugerimos que o que resta à dança – e especialmente à contemporânea, que tomará os preceitos a seguir como leitmotiv – é dançar a perda, a afecção de uma carne ansiosa, deste animal histérico que é o ser humano (LEPECKI, 2016, p. 88). Esse seria o caminho sugerido por algumas produções artísticas contemporâneas do Brasil durante as primeiras décadas deste século XXI, que tomariam a animalidade como principal ponto interrogante [2]. Nesse rol podemos incluir Hyenna, cujo procedimento estético faz eco ao que Jacques Derrida assinalou como “rupturas abissais” entre o animal e o ser humano, isto é, uma falta de continuidade homogênea entre ambos (DERRIDA, 2002, p. 58-60).

No solo de Tuca Pinheiro, é descartada tanto a figuração de um animal símbolo da relação entre a vida e a morte quanto a discussão sobre o esvaecimento do corpo no espaço do sublime – um traço romântico ainda presente na modernidade inaugural de A Morte do Cisne. Em Hyenna, o animal é outro e o contexto é diverso: agora é um mamífero que produz um som que, para os humanos, remete a uma gargalhada esganiçada e nada agradável. Um animal que sobrevive de restos deixados pelos outros predadores e visto pelo ser humano como personificação do agouro da morte, da realidade crua das sobras e do contentamento sarcástico com o pouco que lhe resta. Poderíamos dizer que a hiena executa o fadado “trabalho sujo” ao limpar os rastros da caça. E justamente a ideia de uma condição animal de vivência com as sobras parece ser o interessante ponto de partida de Hyenna, assinalando possibilidades de transformação em banquete das raspas e restos do capitalismo global. Sugere-se, assim, uma reflexão crítica sobre a animalidade como condição agregadora de experiências consideradas apartadas da idealização de um corpo civilizado, que esteve sempre alicerçado sob o signo do adestramento e da obediência, a fim de executar certas premissas expressivas e de conduta consideradas socialmente adequadas.

Entretanto, a representação do animal que intitula o solo de Tuca Pinheiro não ocorre ao longo do trabalho. Em nenhum momento a hiena é denominada; não é designado o nome do animal e, por conseguinte, não se espera a resposta a um chamamento que, de fato, não é feito. O que está em jogo não é a representação do animal em si, mas o compartilhamento de uma “condição-hyenna”, fundamentada na inadequação de um corpo que se percebe desajustado, inoperante e ineficiente. A condição-hyenna existe em quem chega por último e sobrevive do descartado, seja na prática artística ou no modo de experienciar a vida. Tal corpo improdutivo permite a mescla de discursividades de vários substratos culturais, fazendo com que produções da indústria cultural, como a trilha do longa-metragem animado O Rei Leão, de Walt Disney, conviva com o erudito Quarteto Para o Fim dos Tempos, de Messiaen; permite que o samba “Bagaço da Laranja”, composto por Zeca Pagodinho e Arlindo Cruz, compartilhe o espaço cênico com o melancólico rock “Ouro de Tolo”, de Raul Seixas, além de possibilitar a emissão de um discurso de liberdade e igualdade proferido em francês porém com forte sotaque brasileiro.

Hyenna aposta na estratégia de retomar perante a plateia as operações de marginalização intelectual acionadas por algumas escolhas estéticas ou discursividades eurocêntricas no âmbito cultural do Brasil. Em boa parte do espetáculo, o performer discursa ironicamente em francês vários preceitos sobre a dança contemporânea e seu entendimento de corpo como espaço de liberação. O discurso de liberdade emitido em língua francesa apresenta uma problemática instigante: por um lado – e atendo-nos à história da cultura brasileira ao longo do século XX, quando a cultura francófona, como elemento matricial para os espelhamentos simbólicos entre Brasil e o restante do mundo, vai sendo substituída pelo padrão cultural estadunidense –, tal procedimento cria um atrito de recepção, pois o espectador que não entende francês “dança” durante o espetáculo; por outro lado – e referindo-nos estritamente à história da dança brasileira –, o discurso afrancesado em Hyenna aponta criticamente a presença atuante e prestigiosa da dança contemporânea francesa no panorama da dança contemporânea brasileira, especialmente a partir da difusão de espetáculos, práticas de criação e escritos francófonos nas regiões sul e sudeste brasileiros a partir de meados da década de 1990. Nessa retomada em ficção de uma certa fala autorizada, Hyenna problematiza os impasses culturais que perpassam o fazer artístico, nos desafia a pensar em que espaço geopolítico se insere – e está sendo inserida – a dança contemporânea. O espetáculo aponta e ri da falácia auto(euro)centrada e dominante em algumas práticas e padrões mentais do lado de baixo do Equador. Em alguns momentos, por exemplo, o artista propõe para si uma série de ações vigorosas e repetitivas no intuito de “liberar”, “libertar” o corpo. Estas ações compõem um procedimento pseudodemocrático de treinamento corporal, revelando a perversa readequação de uma disciplina corporal por uma outra que, por sua vez, é tão não liberadora e não libertadora quanto aquela que está sendo substituída. Através da estratégia de difusão retórica de uma suposta “liberdade e igualdade”, enfatiza-se a prevalência de hierarquias e de procedimentos historicamente naturalizados e forjados como inquestionáveis no modo de propor, analisar e colocar a dança brasileira contemporânea dentro do mercado neoliberal. Conforme bem assinalado por Ivana Menna Barreto, o solo de Tuca Pinheiro apresenta-se “como uma ação política que se organiza/desorganiza pelos gestos do corpo e pela fala construída criticamente sobre um discurso hegemônico ainda predominante na dança brasileira (o que vem de fora é sempre melhor)” (BARRETO, 2015, p. 47 – grifos da autora). Logo, Hyenna questiona até que ponto os corpos que dançam estão realmente libertos e propondo uma dança peculiar e condizente com suas respectivas potencialidades.

A inquietação vivida pelo corpo de Tuca Pinheiro é acrescida do desconforto em decorrência de algumas estratégias performáticas executadas diante da plateia, que o assiste apropriar-se de piadas politicamente incorretas sob o formato stand up comedy – ou stand up tragedy, como elucida o artista no release do espetáculo. Além disso, o performer expõe seu corpo em situações comumente consideradas absurdas e referindo-se a si mesmo em tom depreciativo nas diversas histórias contadas ao longo da performance. O que se apresenta nestes momentos é a capacidade deste animal (auto)biográfico produzir e contar histórias de si, de se desnudar embora não necessariamente através de discursos confessionais. Portanto, uma das camadas de Hyenna é a apresentação da espécie humana em movimento de consciência de sua nudez – algo que parece inexistente nos demais animais, que nunca estiveram nus porque jamais pensaram em vestir-se (cf. DERRIDA, 2002, p. 17). Embora o artista seja supostamente o dono do jogo e o detentor de suas regras, todos acabam no mesmo barco, ou melhor, à deriva, “rodeando a carniça” enquanto a frase estampada na camiseta do artista faz um apelo à consciência que lhes resta: Keep calm and enjoy the moment… [Mantenha a calma e curta o momento…]

 

Tuca Pinheiro, Hyenna: Não Deforma, Não Tem Cheiro, Não Solta as Tiras, 2013. Fotografia de Guto Muniz

 

Outro ponto relevante é a apropriação do antigo jargão propagandístico das sandálias Havaianas para o subtítulo da peça. O uso do lema da famosa sandália brasileira, que há alguns anos se tornou o calçado-símbolo de uma cultura nacional do lazer e do turismo pronta para a exportação, traz à baila uma interessante provocação: como a dança contemporânea vem negociando com o agenciamento das artes produzidas no Brasil como espaço da “sombra, suor e água fresca”? Ademais, o subtítulo sugere a venda de um produto perfeito, de uma promessa de assepsia e ascetismo elaborada por certas práticas do corpo, sejam estas artísticas ou sociais. Práticas que foram alicerçadas pela invisibilidade de identidades e expressões de gênero ou, quando muito, pela sua naturalização como estereotipias, enfatizando as performances da graciosidade e da fragilidade como intrínsecas ao corpo feminino, assim como as da força e da virilidade como indissociáveis do corpo masculino. Com isso, são banidas quaisquer corporeidades relacionadas às sexualidades ou expressões de gênero dissidentes. Em Hyenna é evidente a problematização deste construto quando Tuca Pinheiro nomeia, segundo as suas palavras durante o solo, três “criaturas do gênero masculino” que são instruídas a arremessar um objeto – no caso, as alças das sandálias – em qualquer direção no espaço cênico.

 

Tuca Pinheiro, Hyenna: Não Deforma, Não Tem Cheiro, Não Solta as Tiras, 2013. Fotografia de Guto Muniz

 

O performer executa a instrução a partir de representações estereotipadas do heterossexual (“um bofe”), do homossexual (“uma bicha”) e do profissional de dança (“um bailarino”). Vocabulários gestuais socialmente relacionados à masculinidade e à feminilidade são usados para representar a heterossexualidade e a homossexualidade, respectivamente. Conjuminada à enunciação equivocada da homo e heterossexualidade como pertencentes ao “gênero masculino”, a gestualidade estereotipada promove uma visão deliberadamente equivocada acerca das diferenças entre orientação sexual e expressões de gênero, a fim de demarcar o próprio despreparo histórico das práticas e discursos de dança em lidar com tais questões – ou, sob outro prisma, o seu preparo em invisibilizar tal problemática. Em Hyenna, esse traço se acentua na representação do corpo do bailarino em movimento durante a execução da tarefa proposta, quando as questões de gênero e da sexualidade dos corpos dançantes são deslocadas em prol da ênfase sobre outro “gênero”, isto é, o da dança como espaço de uma fisicalidade a serviço de (re)produção de movimentações “abstratas” e que retardam o objetivo da instrução dada. Naquela movimentação-de-bailarino é revelado criticamente um pensamento de dança ainda sob o imaginário de uma arte autônoma e cuja prática mantém-se distanciada das problemáticas históricas e sociais presentes nos corpos que dançam, assim como das questões sobre sexualidade e gênero. Evidente que não se trata de uma generalização de Hyenna a respeito das práticas da dança, mas sim de uma atenção à herança histórica da dança – ou, para ser mais preciso, da dança ocidental como espetáculo – como uma arte assombrada pela naturalização da ideia do corpo como máquina (re)produtora de movimentos, cuja problemática do corpo social e dos corpos de sexualidades dissidentes tende a ser considerada como uma falha programática a ser invisibilizada. Afinal, e segundo tal perspectiva, a dança, assim como a alça das sandálias Havaianas, não pode ser informe, mas inodora e duradoura ao longo do tempo.

Estas são algumas das múltiplas indagações que podem ser entrevistas na proposição artística de Tuca Pinheiro, que se afasta da representação pitoresca do corpo dançante, promovendo a ênfase sobre uma fisicalidade que falha e não pertencente a determinados circuitos de produção e de circulação de dança contemporânea. Hyenna é uma dança não autorizada, por ser a dança do mau gosto das sobras, por ser um trabalho que se alimenta de questões descartadas pela história dos modos de fazer e pensar a dança no Brasil. As discussões sobre as representações de gênero nos corpos dançantes, a perda da juventude do corpo que dança e a sua condição de menos-valia no espaço cênico da eficiência também são trazidas à tona. Se, por um lado, o trabalho de Tuca Pinheiro não é o único interessado a discutir essas premissas na cena contemporânea atual, por outro, a singularidade da condição-hyenna é intransferível, porém ao mesmo tempo compartilhável pela sua própria singularidade: a de ser um animal sem pedigree. Ao mesmo tempo, a condição-hyenna diverge do célebre “complexo de vira-latas”, cunhado pelo dramaturgo e cronista Nelson Rodrigues no campo futebolístico para categorizar um certo sentimento de inferioridade nacional e que logo se desdobrou em leitura usual das problemáticas da cultura brasileira perante os padrões culturais considerados emblemas de privilégio e prestígio no mercado global. A animalidade em Hyenna é proveniente do olhar afirmativo da dissidência como modo de sobrevivência diante do modus operandi da arte contemporânea. A animalidade como política surge como discussão crucial em prol de outros modos de feitura e de circulação da dança brasileira, que, por sua vez, não deve isentar-se de um diálogo crítico acerca de seus jogos de (in)dependências simbólicas e econômicas com o mercado artístico global.

A título de conclusão, faço uma breve inserção de Hyenna em um debate político mais amplo, ao argumentar que esse solo de 2013 pode ser confrontado com o impasse cultural predominante durante o ano de 2017, quando a fragilidade do sistema democrático brasileiro é atestada pelo amargo recrudescimento dos avanços sociopolíticos conquistados no início do século XXI e que estão sendo brutalmente postos à margem. Sob um contexto nacional dominado pelo poderio político-econômico de tendência neoliberal, Hyenna apresenta um tempo de urgências que exige dos agentes culturais outros modos de lidar com as sobras indesejadas, outros formatos de (re)existência e sobrevivência. Logo, resta lidarmos com a seguinte pergunta feita por Tuca Pinheiro para si mesmo em certo momento de Hyenna: “o que é que eu faço com isso?”

 

NOTAS

[1] Hyenna: Não Deforma, Não Tem Cheiro, Não Solta as Tiras estreou em novembro de 2013 no Espaço Ambiente, Belo Horizonte, em coprodução com o FID (Fórum Internacional de Dança)/Território Minas. Criação e intérprete: Tuca Pinheiro. Dramaturgia: Rosa Hercules. Colaboração bibliográfica: Adriana Banana. Projeto de luz: Leonardo Pavanello. Pesquisa de trilha: Tuca Pinheiro. Captação, edição e finalização de áudio: Kiko Klaus. Material fotográfico: Caroline Silas. Registro videográfico: Denizard Dennis.

[2] Neste caso, podemos citar os trabalhos Piranha (2009-2012), de Wagner Schwartz; Cavalo (2010), de Michele Moura; Não Alimente os Animais (2010), de Ricardo Marinelli; e Natureza Monstruosa (2011), de Marcela Levi, cuja análise será deixada para uma outra oportunidade.

 

BIBLIOGRAFIA

BARRETO, Ivana Menna. “A Potência da Presença”. In: RUIZ, Giselle (org.). Articulações: Ensaios sobre Corpo e Performance. Rio de Janeiro: 7Letras, 2015.

BEAUMONT, Cyril N. Michel Fokine and his Ballets. Nova York: Dance Horizons, 1981.

DERRIDA, Jacques. O Animal Que Logo Sou (A Seguir). Trad. de Fábio Landa. São Paulo: Editora UNESP, 2002.

LEPECKI, André. Singularities: Dance in the age of Performance. Londres: Routledge, 2016.

 

 

PARA CITAR ESTE TEXTO

MASSENO, André. “Dança e Animalidade: Entre Práticas e Discursos”. eRevista Performatus, Inhumas, ano 6, n. 19, jan. 2018. ISSN: 2316-8102.

 

Revisão ortográfica de Marcio Honorio de Godoy

Edição de Da Mata

© 2018 eRevista Performatus e o autor

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