Considerações Sobre “The Action”

 

Tatiana Motta Lima escreveu este texto em 2000, apresentando-o em um encontro de investigadores da obra de Jerzy Grotowski que ocorreu na Facultad de Filosofia y Letras de la Universidad de Buenos Aires. Em 2005, o texto foi publicado em espanhol na revista Cuadernos de Picadero, Presencia de Jerzy Grotowski. Solicitamos à autora permissão para publicá-lo em tradução para o português em nossa revista, por entender que, mesmo que o artigo se debruce sobre uma obra antiga do Workcenter, a obra The Action, ele oferece uma importante via de acesso à compreensão do trabalho do Workcenter of Jerzy Grotowski and Thomas Richards, trabalho que, com inúmeras transformações, continua em desenvolvimento até hoje.

 

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Após uma breve localização histórica e artística da Arte como Veículo, última “fase” do trabalho de Jerzy Grotowski, desenvolvida no Workcenter of Jerzy Grotowski and Thomas Richards, em Pontedera, Itália, pretendo me deter sobre o seu “produto”, aquilo que é descrito como a “obra” do Workcenter: The Action. O que é The Action? Quais são os elementos que a constituem? Qual é o lugar do espectador e por que ele é renomeado ‘testemunha’?

Em um segundo momento, pretendo, a partir da reflexão sobre o trabalho realizado no Workcenter, me debruçar sobre aquela que acredito ser uma das questões centrais do teatro moderno desde, pelo menos, Stanislavski: a construção de uma estrutura artística viva. Examinaremos, então, escritos e falas de Thomas Richards e Mario Biagini, sobre o binômio espontaneidade/vida – estrutura/rigor, temas tão caros a Grotowski. As noções de ‘inércia’ e ‘ajustamento’, bastante utilizadas por Richards, e a própria discussão sobre o que seria uma ‘estrutura’ serão aqui discutidos.

Minha exposição será baseada em três materiais inéditos: as transcrições do simpósio A Arte como Veículo, realizado em 1996 em São Paulo, Brasil, com a participação de Grotowski e Richards; uma entrevista que Richards me concedeu em julho de 1999 e as notas que tomei no encontro realizado pelo Workcenter em dezembro de 1999, em Pontedera. Como esses materiais não foram revisados pelos autores, todas as frases entre aspas, atribuídas a Grotowski, Richards ou Biagini, devem ser vistas com reservas. Optei pelas aspas no intuito de facilitar a fluidez do texto.

Grotowski passou, em seu trabalho, por distintos períodos de pesquisa que ele próprio descreveu em termos de fases muito precisas. A Arte como Veículo, última fase de seu trabalho, continua viva no Workcenter. Para quem acompanhou esses últimos anos de trabalho do artista, a continuidade das pesquisas na Arte como Veículo, mesmo após a morte de Grotowski, é muito natural. Thomas Richards, desde há muito tempo, vinha se responsabilizando pelo trabalho prático efetuado no Workcenter. Ele é o criador, o líder e o principal doer de The Action, realizada em 1994 e que continua se desenvolvendo até hoje. Em 1996, o Workcenter passou a ter também o seu nome, numa clara exteriorização tanto da real liderança de Richards nas pesquisas ali realizadas quanto da vontade de Grotowski de que estas continuassem sua trajetória mesmo após a morte – de alguma forma já esperada. As pesquisas continuam, portanto, em desenvolvimento, e Richards, com a colaboração de Mario Biagini, lidera o trabalho.

A expressão ‘Arte como Veículo’ foi usada pela primeira vez em uma conferência – hoje texto publicado – de Peter Brook, realizada em 1987, em Florença, onde o diretor inglês comentava a pesquisa do Workcenter. Brook via no trabalho ali realizado a atualização de “algo que existiu antes, mas que foi esquecido por séculos e séculos, e é que entre os veículos que permitiriam ao homem ascender a outro nível e servir uma função mais justa no universo, existe este meio de compreensão que é a arte dramática em todas as suas formas”.

Grotowski afirmava, no Simpósio em São Paulo, que a arte, fora de suas funções perante os espectadores, pode ter também uma tarefa perante os atores que a realizam. E é a partir dessas duas funções – perante o espectador e perante o doer – que ele caracteriza o teatro como uma corrente com vários elos. Em uma extremidade estaria a ‘Arte como Apresentação’ e na outra, a ‘Arte como Veículo’. Na ‘Arte como Apresentação’, o foco do trabalho seria o itinerário da atenção do espectador e o efeito que se deseja produzir sobre ele. De certa forma, a questão da expressão – no Teatro Laboratório, muito mais uma preocupação do diretor (chamado por Grotowski de “espectador de profissão”) do que dos atores – se coloca como importante na Arte como Apresentação. Uma história, um sentido geral do espetáculo é preparado para o espectador, mesmo se, como no Teatro Laboratório, este sentido serve também para acalmar a mente do observador e deixá-lo aberto para outros tipos de conexão. Na Arte como Veículo, ao contrário, a montagem deve funcionar – produzir efeito – sobre os doers. A montagem é feita para atingir a percepção do doer e, portanto, espectadores, renomeados aqui ‘testemunhas’, podem ou não estar presentes.

Ainda no Simpósio, Grotowski diz que, se ele passou pelo teatro, sempre houve – mesmo antes do teatro – uma outra pesquisa muito especial que nunca foi interrompida e que foi para ele sua pesquisa mais importante. “Quando eu tinha 9 anos, comecei a me interessar e a entrar praticamente em uma corrente de yoga hindu, que é uma técnica psicofísica extremamente disciplinada, que não é cortada do corpo, mas que também não é concentrada no corpo. É como utilizar todas as nossas fontes para chegar ao lugar original do nosso ser, a qualquer coisa que é o começo, antes de começar”. A Arte como Veículo parece ser o ápice da junção entre esta pesquisa anterior e o teatro. Continua Grotowski: “No trabalho do Workcenter, os elementos técnicos são teatrais. (…) Mas, evidentemente, há alguma coisa de particular lá. É essa orientação no sentido da transformação da energia, de um nível cru da energia vital, biológica, ao alto, em direção a uma energia muito mais sutil e leve, pode-se dizer luminosa e de novo a descida na nossa base orgânica, sem perder essa coisa sutil. Então isso é, ao mesmo tempo, alguma coisa de muito particular do teatro e muito próximo daquilo que eu comecei quando tinha nove anos, quer dizer o yoga”.

Grotowski explicita aí um processo particular de transformação de energia, a chamada ‘verticalidade’, que poderia ser visto como o conteúdo de The Action.

Richards, na mesma direção, afirma que há como dois caminhos nas pesquisas do Workcenter: um caminho ligado ao métier teatral e um outro caminho, de dimensão diferente, ligado ao trabalho sobre os cantos e ao que este trabalho propõe aos indivíduos. Estes caminhos, ao invés de se contradizerem, se encontram em The Action. Assim, The Action, a obra do Workcenter, seria, para as pessoas que a realizam, os doers, como um veículo para um trabalho sobre si, em que a atenção à arte – nos seus aspectos mais artesanais – e a aproximação com a interioridade do ser humano caminham juntas.

The Action é o campo de pesquisa prática do Workcenter. Ela é também a sua obra criativa. The Action seria o espetáculo, se ainda se pudesse falar em representação. Mas, como vimos, diferentemente de um espetáculo, em The Action a montagem é feita para os doers, a ação está ligada a canções muito antigas que podem ter “um impacto direto sobre a cabeça, o coração e o corpo dos doers”.

Não sei quantos de vocês tiveram a oportunidade de testemunhar The Action. De qualquer modo, não vou tentar descrevê-la em termos da sua partitura externa. Não estou certa que uma descrição desse gênero ajudasse a compreender melhor o trabalho. O que eu posso dizer sobre esta partitura é que ela tem uma linha de ação simples, baseada, em certo nível, na relação entre os doers e construída, sobretudo, a partir dos cantos. Os principais elementos que compõem The Action são os cantos tradicionais, na sua maioria africanos e afro-caribenhos, poucos fragmentos de textos e as ações físicas, tais como as concebeu Stanislavski. Grotowski se via como continuador dessa pesquisa do artista russo, desenvolvendo-a principalmente no que diz respeito aos ‘impulsos’. A seguir trato separadamente de cada um desses elementos.

OS CANTOS: Grotowski pesquisou, durante anos, vários cantos antigos tradicionais que pudessem exercer influência sobre o ‘processo de verticalidade’ e que utilizassem, para tanto, os impulsos corporais dos doers. Finalmente, acabou encontrando o que precisava nos cantos de antigos rituais nas Caraíbas e na África. Estes cantos formam a base do trabalho. É a partir e em torno deles que se constrói The Action. Richards descreveu os cantos, num seminário ocorrido em dezembro passado, como instrumentos, ferramentas para o trabalho: “Os cantos não estão separados do processo, eles não são o processo, eles dão suporte ao processo”. Ele utilizou também a imagem de um mapa: a canção seria como um mapa para o trabalho. Um mapa, como sabemos, dá as referências do percurso, mas não é o próprio percurso. É preciso que o doer, com a boa utilização do mapa, penetre no continente. Richards diz que o canto “pede coisas” ao doer e deve ser seguido com extremo rigor, mas, para segui-lo, me parece claro que o doer deve atualizá-lo, transformá-lo em ato, e é a isso que podemos chamar seu processo ou o processo. The Action é, assim, um lugar de descoberta contínua desse processo, baseado e sustentado por aqueles cantos.

OS TEXTOS: Os fragmentos de texto utilizados em The Action vêm de uma fonte judaico-cristã muito antiga e foram traduzidos, palavra a palavra, para o inglês. Eles parecem colocar questões a alguém que está realizando um trabalho sobre si. Parecem, também, indicar caminhos para esta experiência interior. Richards e Biagini falam de uma relação viva entre os textos e os doers: “ São textos provocadores. Eles dizem o que se deve trabalhar e o que acontece se não o fazemos”. Assim, uma das funções possíveis do texto, completa Richards, é ser um lembrete, um facteur de rappel para os doers durante a realização de The Action. Biagini fala também de uma “relação dialética” com os textos durante o trabalho. Segundo ele, não se trata da aceitação passiva de uma verdade, mas de uma espécie de batalha. Há como uma pergunta aos textos. Eles são verdadeiros? São falsos? De certa maneira, é como a imagem da blasfêmia utilizada por Grotowski na época do Teatro Laboratório. Aqui não se trata de uma relação blasfematória, mas de uma posição semelhante de alguém que quer verdadeiramente conhecer, saber – para além do que já está estabelecido – ou que quer reencontrar, atualizar, aquilo que está simplesmente escrito.

Além dos cantos e textos, AS AÇÕES FÍSICAS são parte integrante do processo de The Action. Aqui, estamos diante de um elemento oriundo da tradição teatral. Os elementos técnicos que Grotowski nomeia a seguir estão intimamente relacionados ao que ele entende por ação física: “(…) No trabalho do Workcenter, os elementos técnicos são teatrais. São os elementos de contato entre os companheiros, os impulsos corporais que sustentam a vida do texto e do canto, os elementos de fluxo contínuo e orgânico que são, ao mesmo tempo, muito precisamente colocados em forma”. Richards, na citação abaixo, revela a articulação entre o trabalho e as ‘ações físicas’ – com o impulso – e o processo de verticalidade:

“Uma ação física na partitura de um ator é o que o liga ao seu parceiro e, se ela é eficaz, nasce de um impulso. Em nosso trabalho, há esse nível da partitura, o nível das ações físicas que está relacionando o atuante ao seu parceiro. (…) Mas, deste impulso, que é como o centro vital do qual você sai para conquistar alguma coisa, há uma outra possibilidade que é (…) de não sai(r) com a ação (mas) entra(r) com a ação. E, aqui, o trabalho com esses cantos tradicionais muito antigos começa a funcionar. E o ponto inicial, esse impulso, é o mesmo. (…) Esse ponto de nascimento do impulso pode começar a se tornar vivo, quase vivo por si próprio e você pode observá-lo, e ele começa a ser o suporte para o desenvolvimento da ressonância do canto. (…) É como se uma escada pudesse ser aberta. Algo como um canal que esta conectando esta vitalidade densa e grave a uma certa fonte de energia que está acima e é muito sutil. E isso pode começar a ser como uma passagem, quase como um rio que está correndo ao longo do eixo do corpo de uma maneira muito perceptível. E o ponto de início é este impulso. (…) Portanto, em nosso trabalho, há uma estrutura horizontal muito precisa, mas essa estrutura horizontal está servindo como uma espécie de trampolim para a pessoa descobrir esse muito delicado eixo interno.”

The Action, é freqüentemente feita sem a presença de olhares exteriores. Ela tem um sentido para os doers que não é dependente desses olhares. É como um espetáculo que se passa com ou sem a presença de espectadores, mesmo se estas, é claro, não são as palavras adequadas. Daí, o termo ‘testemunha’, que parece indicar tanto a questão de algo que não é preparado para quem observa – não se busca a expressão – quanto, o que é decorrente da primeira afirmação, que os observadores estarão presenciando um ato real, um acontecimento e não uma representação.

Richards, mesmo afirmando a importância de manter o trabalho realizado no Workcenter em contato com o mundo exterior, diz que a chegada de pessoas para ‘testemunhar’ The Action é, ou pode ser, “extremamente delicada para os doers”. Segundo Thomas, a presença de observadores não ajuda e não é necessária ao processo de ascensão interior que acontece durante The Action e pode mesmo constituir-se em uma armadilha para os doers, se eles concentrarem sua atenção nessas presenças. “Quando você está preocupado com aquele que olha, com ‘o que eles estão pensando de mim’ ou ‘o que eles estão recebendo’, então, coração, mente e corpo permanecem fixados aí e uma parte da concentração necessária para o trabalho se dispersa”. Segundo Richards, a atitude do doer deve ser aceitar a presença da ‘testemunha’ e fazer o que tem a fazer – e que não está relacionado com essa presença.

Pode-se dizer que, durante The Action, o doer se confronta com várias armadilhas, diferentes ou não, a cada dia. Realizar The Action é também, ou em um certo nível, fugir dessas armadilhas e reencontrar a maneira de fazer o que há para fazer. Isto demanda do doer, em primeiro lugar, uma percepção do processo – ver o que está se passando – e uma ‘adaptação/ajustamento’ que seria como encontrar uma espécie de solução rápida, de modo que o processo interno possa continuar e chegue a realizar o que tem a realizar. Começamos aqui a tocar nas noções de ‘ajustamento’ e ‘inércia’, bastante utilizadas por Richards quando da descrição do processo do doer em The Action. Estas noções, no Workcenter, estão extremamente ligadas à questão da construção e da realização de uma estrutura não mecânica, de uma estrutura viva. Além de olhar um pouco mais de perto essas duas noções, gostaria de, fazendo uma leitura pessoal dos materiais sobre os quais estou trabalhando, refletir sobre o que definiria estrutura e vida na pesquisa desenvolvida em Pontedera. Vou expor minha reflexão por meio de proposições/postulados. Contudo, meu intuito não é construir um conceito final e unitário para a terminologia utilizada no Workcenter e sim fomentar indagações acerca do binômio estrutura/vida e das definições para este binômio que, nós, artistas e teóricos, criamos em nossos próprios trabalhos.

 

Estrutura não é simplesmente a repetição externa e rigorosa de uma marcação

Em The Action, a estrutura não deve ser vista como uma composição externa – uma coreografia – , da mesma forma que uma ação física não é um movimento ou um gesto. Intenção e forma estabelecem uma relação estreita ao nos aproximarmos da definição de estrutura no Workcenter. Segundo Biagini, um doer, para manter e realizar sua intenção na relação com seu partner, pode ser obrigado a transformar seus gestos de um dia para outro – ampliá-los, por exemplo, – o que, segundo ele, não modificaria a estrutura. Estrutura é, assim, muito menos um conjunto de movimentos exteriores – estes movimentos podendo mesmo mudar ou se ajustar – e mais um conjunto de intenções/relações que o doer estabelece com seus partners. Ao mesmo tempo, quem viu The Action mais de uma vez sabe que as mudanças/ajustamentos visíveis são muito reduzidas. Pode-se perceber, às vezes, pequenas transformações de ritmo ou de amplitude de gestos. Porém, a maioria desses ajustamentos deve se passar em um nível micro, só perceptível para o doer ou os doers que estão em contato naquele momento.

 

Estrutura e vida – no Workcenter – são, muitas vezes, sinônimos

Segundo Biagini, a vida só aparece na complexidade e a complexidade da vida, em seu nível mais alto, é estruturada. Ele define a própria vida como uma grande batalha contra a desorganização, a desarticulação, a sopa. “A vida mesma tem uma estrutura extremamente articulada.” Biagini afirma também que se o ator pudesse repetir, posteriormente, tudo o que fez no momento em que descobriu uma determinada ação viva, não mecânica, ele reencontraria certamente a mesma qualidade (a mesma vida) da ação. Nestas duas observações, vemos que a conceituação de ‘vida’ e estrutura numa dada ação é mais complicada do que pode parecer à primeira vista. Nem a ‘vida’ se apresenta sem uma estrutura qualquer, nem a estrutura pode ser vista como uma série de movimentos que, bem repetidos, poderão fazer com que o ator reencontre a ‘vida’ da ação. Quando Biagini diz que se o doer conseguisse repetir tudo o que fezou seja, a estrutura –, ele reencontraria a vida da ação, este ‘tudo o que ele fazia’ – esta coisa muito difícil de relembrar – me parece ser a própria complexidade da vida e, assim, vida e estrutura se encontram quase em uma mesma definição.

 

Estruturar: não há receita

Se uma estrutura viva não é um conjunto de movimentos ou gestos, como repeti-la? Segundo Biagini, este processo estaria nas mãos da pessoa que o realiza. Existiriam elementos que podem auxiliar o processo, mas seria impossível dar uma resposta puramente técnica à questão de como repetir uma ação viva. As ferramentas têm que ser criadas e as estratégias inventadas e reinventadas pelo próprio doer.

 

Estrutura é um conjunto de descobertas e está em permanente desenvolvimento

No Workcenter, se trabalha sempre, em qualquer estágio das pesquisas, a partir de uma estrutura – no sentido de uma intenção/proposição de base – mas o detalhamento, a precisão da estrutura, vai depender das descobertas feitas pelos doers. Fechar uma estrutura – se é que isto existe completamente – significa muito mais descobri-la ou redescobri-la. Uma estrutura está, assim, em movimento e não é algo a ser fixado de uma vez por todas. O nível de estruturação de um fragmento vai depender do nível de detalhamento da intenção/forma e da descoberta cada vez mais refinada do lugar lógico e tecnicamente necessário de cada elemento. Cito Richards: “O tempo de desenvolvimento de uma pessoa, isto dita a necessidade de uma estrutura. (…) Para descobrir, revelar o potencial, a pessoa tem necessidade de espaço e não de que você preencha o tempo muito rapidamente com o que você já sabe, porque você está procurando o que você não sabe. Depois de um longo tempo de trabalho, depois que muitas descobertas foram feitas e quando a questão se torna como manter estas descobertas e desenvolvê-las, nós nos encontramos naturalmente diante da questão de como tornar a estrutura mais precisa”.

 

Estrutura como desafio e não como segurança

Estrutura é como uma pergunta ao doer e não um lugar de conforto – será que é possível realizá-la inteiramente? É na tentativa de responder a esta pergunta, com todas as suas forças e na certeza de que talvez seja impossível, que está o rigor do doer. Rigor me parece ser a capacidade de criar/construir e também abandonar estratégias para realizar o que se quer realizar.

 

“O potencial que está no ser humano tem necessidade de uma certa moldura” – Richards

Estruturar um fragmento é a possibilidade que o doer dá a si mesmo de se lembrar aonde quer ir, aonde quer chegar: foi ali que eu fui uma vez, ali eu quero voltar. A vida é reativa e escorre por todos os lados, se apegando e se identificando com diferentes estruturas. Estruturar algo é fazer uma escolha de intenção auxiliado e/ou por meio de uma forma. Richards dá o exemplo do rio: “A força da água descendo da montanha em direção ao oceano é extremamente forte. Se a água simplesmente viesse da montanha sem as bordas de um rio, ela iria dispersar-se um pouco aqui, um pouco lá. É preciso que haja margens que sejam também fortes à sua própria maneira para canalizar esta água. A força da água passando entre as margens se torna ainda mais poderosa e nós temos um rio. (…) É preciso os dois (a força da água e a força das margens) para que a força de um rio possa aparecer. De uma certa maneira, na arte é a mesma coisa”.

 

Vida: fluxo contínuo de ajustamentos

Estar entre a estrutura que é como se fosse o que eu conheço e o momento presente que é como o que eu sou. Não fugir da estrutura nem do momento presente. Ajustar a estrutura ao momento presente com vistas a fazê-la funcionar para suas intenções, nesse sentido, com vistas a mantê-la. Se você simplesmente mantiver a estrutura sem ajustá-la, ela é seca/mecânica, e se você desrespeitá-la, como ela é sua escolha de intenção/caminho, você se terá deixado levar sem rumo. Aqui entramos na questão do ajustamento – ajustar para servir o que quero servir. Mesmo correndo o risco de errar a estratégia, se permitir ajustar, quando necessário, é a única forma de estar inteiramente na estrutura. Richards: há uma parte de nós, (…) ou um aspecto de todos os diferentes aspectos de nós, que adora fixar as coisas como nós as conhecemos. “Eu faço o que eu já conheço (…) E esta atitude não aceita a realidade, que é que nada pode ser a mesma coisa. E isto é um paradoxo estranho: a experiência pode ser quase a mesma, ela pode ser quase exatamente a mesma, mas ela não é a mesma, pois nada jamais é o mesmo, tudo muda todo o tempo.” É velho rio de Heráclito.

 

Como última proposição: Inércia é a identificação que permanece quando o momento para ela já passou.

A inércia é algo que impede os ajustamentos, a adaptação e, por fim, impede a realização do processo. A inércia é, portanto, algo contra o qual o doer deve “lutar”. Richards fala da inércia como de algo que tem a ver com a relação que estabelecemos com o tempo. A pergunta é: o que condiciona, a cada instante, o próximo instante? Ou: o que nos impede de estar onde estamos? Richards fala, muitas vezes, de “apegos” que podem cegar o doer ou o líder e impedir a relação com o que está acontecendo e, em consequência, impedir – porque não se pode ver – os ajustamentos necessários ao processo. O doer pode estar, por exemplo, apegado ao que ele conhece, àquilo que já funcionou no passado; ele pode estar apegado aos erros que acabou de cometer e, assim, deixar que eles influenciem o que vem depois. Ele pode estar apegado à presença das testemunhas. Os exemplos podem ser infinitos. Apego, neste contexto, pode ser visto como sinônimo de inércia. Richards diz também que permanecer na inércia tem relação com o medo do desconhecido, do que pode acontecer. Fechamo-nos em uma casa conhecida e segura e não vemos que aquilo não funciona ou quando aquilo não funciona. Inércia pode ser vista como sinônimo de hábitos, mecanismos, bloqueios do doer.

Eram estas as considerações que eu tinha a fazer. Espero que estas reflexões, nascidas a partir de um trabalho localizado na Arte como Veículo, possam deixar questões para aqueles que, na Arte como Apresentação, têm como foco principal o trabalho do ator.

 

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Tatiana Motta Lima é professora adjunta da Escola de Teatro da UNIRIO. É estudiosa da obra de Jerzy Grotowski, tendo publicado, em 2012, pela Perspectiva, o livro “Palavras praticadas: a trajetória artística de Jerzy Grotowski, 1959-1974”, além de inúmeros artigos em revistas especializadas brasileiras e estrangeiras. É formadora de atores e ministra oficinas práticas e teóricas pelo Brasil e pela América Latina. É atriz e diretora bissexta. 

 

 

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