Passando o Tempo: Considerações Sobre Arte/Vida na Obra de Tehching Hsieh

 

Iogues são pessoas que se dedicam de maneira intensiva a práticas de disciplina físicas e mentais rigorosas baseadas em intensos trabalhos de diluição das densidades egoicas que nos prendem em ilusões identitárias. Nesses processos, os iogues se submetem a práticas de extrema austeridade, tais como meditação, técnicas de respiração, exercícios físicos, isolamento, silêncio e jejum. Até hoje, há histórias de iogues que ficam em retiros, isolados da sociedade, desenvolvendo suas práticas por anos a fio, tornando-se fonte de sabedoria e conhecimento imprescindíveis para as sociedades das quais fazem parte. Existem diversas tradições onde os iogues são pessoas muito respeitadas, representando fundamental importância para os processos sociais dessas sociedades. O Tibete, por exemplo, é um país com uma rica história em relação aos seus iogues. Em alguns momentos de sua história, os iogues eram não só respeitados como também recebiam incentivos e suporte material do próprio governo tibetano para poderem desenvolver suas práticas, tendo ampla liberdade para se expandirem em seus retiros durante longos períodos de tempo.

Não é nada fortuito trazer aqui a figura do iogue como modo de iniciar este texto. Tratarei aqui da obra do performer taiwanês Tehching Hsieh, articulando seu trabalho aos modos de se produzir arte a partir da segunda metade do século XX em diante, um período histórico nas artes onde a indissociabilidade entre vida e obra se tornam não só força motriz de produção, como também escancaram importantes reflexões sobre os modos de ser e estar no mundo, sobre os modos de como produzir vida e de como criar práticas de produção de si. Salvaguardando todas as drásticas diferenças entre a vida de um iogue e a vida de Tehching Hsieh, é importante destacar que, de alguma forma, o cultivo estético como um modo de prática de si desse performer resvala em aspectos semelhantes ao rigor das práticas que um iogue cultiva.

 

Tehching Hsieh, Jump Piece, Taiwan, 1973. © 1973 Tehching Hsieh | Cortesia do artista e Sean Kelly Gallery, Nova York

 

Tehching Hsieh nasceu em Taiwan em 1950. Em uma pequena e curiosa biografia de dois parágrafos, que consta em seu site oficial [1], o modo como seus dados biográficos foram elencados é intrigante. Em apenas um parágrafo, é relatado o seguinte: filho de pai ateu e mãe devotada ao cristianismo; largou o ensino médio para começar a pintar; após finalizar seu serviço militar (1970-1973), realizou uma exposição solo em uma galeria e, logo após essa exibição, parou de pintar; realizou então uma ação performática chamada Jump Piece [2], na qual quebrou os dois tornozelos; treinou para se tornar marinheiro, o que possibilitou sua entrada nos Estados Unidos em julho de 1974, em uma pequena cidade da Filadélfia; foi imigrante ilegal nos Estados Unidos por quatorze anos, até conseguir se legalizar em 1988. Já o parágrafo seguinte cita, sem maiores detalhes, suas cinco performances de um ano (One Year Performances, a partir de 1978 a 1986), e seu trabalho mais longo, Thirteen-Year Plan (de 1986 a 1999), relatando como Hsieh fez arte e vida simultaneamente e o modo como, a partir de seus trabalhos, ele se colocou alheio ao circuito padrão de circulação e troca na arte contemporânea.

Vemos uma biografia rápida e sucinta, com pequenos lampejos de informação que se destacam em meio à velocidade desses dois parágrafos, e que estabelecem, no leitor, pequenas durações intensivas de tempo afetivo: o fato de ele ter largado o colégio para começar a pintar; seus tornozelos quebrados em uma performance no início de sua carreira; seus treze anos de restrição e não partilha de sua arte. Esses fatos são lançados em velocidade, e, para quem os lê, urge uma necessidade de paragem para apreensão desses dados todos.

Os saltos temporais parecem também permear toda a vida de Hsieh. E aqui creio ser importante exprimir meus porquês de querer investir tempo de escrita para tratar da vida de Hsieh. Falar sobre alguém é tarefa muito arriscada: corre-se o imenso perigo de quedar-se nas armadilhas das emoções representativas e interpretativas, ou seja, risco de forjar, na obra dessa outra pessoa, percepções sobrecodificadas e pessoalizadas, inventando códigos onde, mais que códigos, o importante é tratar de sensações, e, mais que de pessoalidade, tratar de implicação com a experiência.

Por isso há aqui esse destaque empreendido em relação à questão “temporal” na obra de Hsieh, pois, implicando-me com a temporalidade de seu trabalho, não me atenho ao objeto Hsieh. Uma implicação que embarca em temporalidades afetivas por uma obra como essa, pode diluir com mais facilidade a perigosa fórmula sujeito-objeto que tanto nos distancia da experiência e binariza as relações. Assim, a obra de Hsieh, mais que trabalho a ser interpretado, refletido ou discutido, de maneira distanciada e analítica, será agido, continuará agindo, operando e criando nesse real.

Para continuar a discussão, será indispensável lançar mão de seus trabalhos. Irei abordá-los aqui de maneira simples e concisa, tal como na pequena biografia que consta em seu site, pois, assim como a estética desses trabalhos é sem estetização nenhuma (figurinos, coreografias etc.), é importante que também se apresente suas performances assim, na crueza real de seus enunciados.

 

One Year Performance 1978-1979

 

30 de setembro de 1978

 

STATEMENT

Eu, Sam Hsieh, pretendo fazer uma performance de um ano, começando em 30 de setembro de 1978.

Devo me fechar em meu estúdio, em confinamento solitário dentro de uma cela com medida de 3,5 x 2,7 x 2,4 m.

NÃO devo conversar, ler, escrever, escutar rádio ou assistir televisão, até que eu me solte em 29 de setembro de 1979.

Deverei me alimentar todos os dias.

Meu amigo, Cheng Wei Kuong, irá facilitar essa performance encarregando-se da minha comida, roupas e resíduos.

 

Sam Hsieh [3]

 

Tehching Hsieh, One Year Performance 1978-1979. Fotografia de Cheng Wei Kuong. © 1979 Tehching Hsieh | Cortesia do artista e Sean Kelly Gallery, Nova York

 

Com essa declaração, Hsieh inicia a primeira de uma série de cinco performances de um ano. Para garantir a veracidade de sua performance, Hsieh contratou um advogado como testemunha de sua ação. Esse advogado participou do momento em que Hsieh se trancou, selando cada parte da cela com um selo de papel assinado pelo próprio advogado. Esses selos só foram retirados, intactos, no final de um ano da performance. Hsieh abriu seu estúdio a visitações públicas de três em três semanas, num total de dezoito vezes ao longo do ano (Fabião, 2011).

 

One Year Performance 1980-1981

 

Abril de 1980

 

STATEMENT

Eu, Sam Hsieh, pretendo realizar uma performance de um ano.

Devo apertar um relógio de bater ponto, em meu estúdio, de hora em hora por um ano.

Devo deixar imediatamente a sala do meu relógio de ponto a cada vez em que eu apertar o relógio de ponto.

A performance deve começar em 11 de abril de 1980 às 19h, e continuará até 11 de abril de 1981 às 18h.

 

Sam Hsieh [4]

 

Tehching Hsieh, One Year Performance 1980-1981. Fotografia de Michael Shen. © 1981 Tehching Hsieh | Cortesia do artista e Sean Kelly Gallery, Nova York

 

Acontecimentos: Hsieh elaborou um outro documento explicativo sobre a performance para evitar suspeitas de trapaça; ele utilizava um cartão de bater ponto por dia, totalizando vinte e quatro pontos marcados por dia em cada cartão e trezentos e sessenta e seis cartões em um ano, sendo que uma testemunha assinava cada um desses cartões todos os dias; a cada vez que Hsieh batia o ponto em seu relógio, ele também tirava um autorretrato, o que totalizaria oito mil e setecentos e sessenta fotos, porém Hsieh perdeu a hora cento e trinta e três vezes, não batendo o ponto e nem tirando fotos nessas horas perdidas. Há um relatório final indicando quando e por que ele perdeu cada uma dessas horas (a maioria delas, noventa e quatro vezes, foi por estar dormindo); antes de iniciar a performance, Hsieh raspou seu cabelo e não o cortou até o fim de um ano; as fotos de toda a performance, reunidas, viraram um filme de cerca de seis minutos.

 

One Year Performance 1981-1982

 

26 de setembro de 1981

 

STATEMENT

Eu, Tehching Hsieh, pretendo realizar uma performance de um ano.

Deverei ficar AO AR LIVRE por um ano, nunca dentro de lugar algum.

Não deverei entrar em nenhuma construção, metrô, trem, carro, avião, navio, caverna, barraca.

Terei um saco de dormir.

A performance deverá se iniciar em 26 de setembro de 1981 às 14h e continuará até 26 de setembro de 1982 às 14h

 

Tehching Hsieh [5]

 

Tehching Hsieh, One Year Performance 1981-1982. © 1982 Tehching Hsieh | Cortesia do artista e Sean Kelly Gallery, Nova York

 

Acontecimentos: Hsieh teve que enfrentar o inverno de 1981-1982, considerado um dos mais rigorosos do século em Nova York. Para se aquecer, ele costumava fazer fogueiras e dormia sobre papelões, posicionando-os junto a uma parede ou entre dois carros; ocasionalmente ele falava com amigos através de telefones públicos; de vez em quando, fixava pôsteres pela cidade informando quando e onde as pessoas poderiam encontrá-lo; devido a uma briga de rua, Hsieh foi preso e ficou cerca de quinze horas dentro de uma delegacia policial, único momento em que esteve dentro de algum lugar fechado. (Menegoi, 2016)

 

Art / Life One Year Performance 1983-1984

 

4 de julho de 1983

 

STATEMENT

Nós, Linda Montano e Tehching Hsieh, pretendemos fazer uma performance de um ano.

Ficaremos juntos por um ano e nunca ficaremos sozinhos.

Ficaremos no mesmo cômodo ao mesmo tempo, quando estivermos dentro de algum lugar.

Seremos amarrados juntos pela cintura por uma corda de 2,4 m.

Nunca nos tocaremos durante um ano.

A performance irá se iniciar em 4 de julho de 1983 às 18h e continuará até 4 de julho de 1984 às 18h.

 

Linda Montano e Tehching Hsieh [6]

 

Tehching Hsieh e Linda Montano, Art/Life One Year Performance 1983-1984. © 1984 Tehching Hsieh, Linda Montano | Cortesia dos artistas e Sean Kelly Gallery, Nova York

 

Duas testemunhas selaram os nós de cada uma das duas extremidades da corda com uma peça de chumbo e com suas respectivas assinaturas. As duas testemunhas conferiram os nós no final de um ano e atestaram que os nós estavam intactos.

 

One Year Performance 1985-1986

 

Tehching Hsieh, One Year Performance 1985-1986 Statement. © 1986 Tehching Hsieh | Cortesia do artista e Sean Kelly Gallery, Nova York

 

Não à toa, opto por utilizar aqui um fac-símile do statement da última performance da série de cinco performances de um ano de Tehching Hsieh. Primeiramente há um forte apelo visual nessa declaração por escrito. Ao lê-la, vemos três retângulos negros, que, a princípio, sugerem uma supressão do verbo “shall” [7], ou talvez do verbo “will” [8], em cada uma das três frases em que aparecem esses retângulos. Esse mesmo retângulo negro está presente como imagem do cartaz de divulgação dessa performance. Essa supressão do verbo abre possibilidades para um interessante jogo de leitura, já que se trata justamente de uma ação do não fazer através do fazer: “eu não devo fazer arte”. Com o “devo” suprimido, suprime-se também a ligação entre Hsieh e a Arte, já que o predicado arte projetaria, através desse verbo, uma afirmação sobre o sujeito Hsieh.

Essa performance merece destaque, pois, a partir dela, pode-se dizer que o trabalho de Hsieh passa por uma importante modulação. Seu enunciado básico é o seguinte: Hsieh não fará arte, não deverá falar sobre arte, não deverá ler sobre arte, não deverá ver arte, não deverá frequentar galerias e museus de arte, para, ao invés disso, apenas viver. Hsieh já havia conseguido uma certa projeção no meio artístico com suas primeiras quatro performances, sendo um nome frequente na cena nova iorquina naquele momento. Porém, a partir dessa quinta performance, Hsieh inicia também um movimento de se anular dentro de todos os procedimentos padrões de circulação e troca artísticas até então estabelecidos.

Em seu último trabalho, Hsieh se propõe a fazer um “Plano de Treze Anos” [Thirteen-Year Plan 1986-1999]. Nessa performance, ele declara que, durante treze anos, fará arte e não irá compartilhá-la publicamente, iniciando-a em seu aniversário de trinta e seis anos em 31 de dezembro de 1986 e se estendendo até seu aniversário de quarenta e nove anos na virada do milênio, em 31 de dezembro de 1999. No final desse período de treze anos, ele apenas declarou: “Eu me mantive vivo. Passei por 31 de dezembro de 1999” [9].

Em entrevista concedida à Frieze Magazine em 2009, Hsieh, ao ser interpelado pelo entrevistador sobre a ironia de sua última One Year Performance 1985-1986, onde ele se propõe a não fazer arte através de uma performance em arte, Hsieh diz que, sem fazer nenhuma ideia, essa performance se tornou um trabalho, um trabalho de mergulho na vida. Ele destaca ainda que após essa última performance de um ano, não foi fácil retornar para a arte, e que, durante o Thirteen-Year Plan, ele deu início a um trabalho que chamou de Disappearance [Desaparecimento] (1991). Relata, porém, que essa performance falhou. Nela, ele iria peregrinar até o Alaska a fim de viver essa experiência de desaparecimento, mas, no meio do caminho, percebeu que com o Thirteen-Year Plan já estava em processo de exílio, e que Disappearance o colocou ainda mais nesse caminho de exílio, coisa que ele não conseguiu suportar, interrompendo a performance depois de seis meses. Hsieh conclui dizendo então que desde 2000 parou de fazer arte por simplesmente não ter mais coisas a dizer. (Hsieh, 2009)

 

Considerações Finais

 

[…] um ano é a unidade básica de como contar o tempo. Leva um ano para a Terra se mover ao redor do sol. Três anos, quatro anos, é outra coisa. É sobre ser humano, como nós explicamos o tempo, como medimos nossa existência. (Hsieh, 2016, citado por Menegoi, 2016)

 

A partir de procedimentos enunciadores simples, Hsieh dá início a sua longa jornada de cerca de vinte e dois anos de performances, com apenas alguns pequenos intervalos de tempo entre uma performance e outra. Ele sempre as inicia com declarações simples e diretas, e, com objetividade e limpidez, Hsieh inicia, em poucas frases, performances de intensidade existencial incomensurável. Eleonora Fabião (2013) chamará de programa performativo a esse tipo de procedimento composicional da performance. Partindo do texto “28 de Novembro de 1947 – Como Criar Para Si um Corpo Sem Órgãos”, de Gilles Deleuze e Félix Guattari, para quem o programa é o “motor da experimentação” (Deleuze e Guattari, 1999, citados por Fabião, 2013, p. 4), Fabião propõe que a prática do programa

 

[…] cria corpo e relações entre corpos; deflagra negociações de pertencimento; ativa circulações afetivas impensáveis antes da formulação e execução do programa. Programa é motor de experimentação psicofísica e política. (2013, p. 4)

 

Ela sublinha o caráter claro e conciso do programa, e o coloca como o enunciado da performance. É importante destacar que, com esse conceito de programa performativo, temos em jogo uma temporalidade muito diferente daquela do espetáculo, ensaio ou coreografia, bem como da obra encerrada em uma galeria, exposição ou museu. E, no caso de Hsieh, isso se dá de maneira radical. Em Hsieh, a temporalidade se dá de maneira imediata, bruta, nua e crua; seus longos períodos de duração trazem também a intensiva experimentação urgente do presente que se faz ativo no passar de cada intervalo de tempo.

Adrian Heathfield (2014) dirá que essa condição de imediaticidade propiciada pelos artistas contemporâneos faz com que a obra de arte esteja literalmente viva. Ele ressalta que o nascimento da performance se dá dentro e por oposição à forma dramática, o que faz com que a experiência com o tempo na arte se dê de maneira muito mais ligada ao acaso, à improvisação, ao presente e ao agora. Uma performance como a de Hsieh não nos dá abertura para pensarmos em narrativas ou tempo ficcional; não há representação, o que importa é a presença, e estar dentro do momento presente em uma ação como essa destrói a significação e o sentido, dando abertura a outras possibilidades sensitivas na experiência em arte.

Durante sua primeira performance de um ano, Hsieh abriu seu estúdio a visitações públicas de três em três semanas, num total de dezoito vezes ao longo do ano (Fabião, 2011), fato que faz com que essa produção de presença se torne ainda mais vertiginosa. Visitar Hsieh durante essa performance, ativa no visitante temporalidades radicalmente diferentes às de um espetáculo ou de uma exposição. Quem comparece ali, comparece a um evento, tal como Heathfield (2014) sugere ao falar de performances no contemporâneo. Talvez essa seja uma das principais características do trabalho de Hsieh, e talvez também, essa seja uma das principais características da cena performativa contemporânea. “O corpo performativo não para de oscilar entre a cena e a não cena, entre arte e não arte, e é justamente na vibração paradoxal que [esse corpo] se cria e se fortalece” (Fabião, 2013, p. 6).

Hsieh leva essa vibração paradoxal às últimas consequências. Suas performances não criam enredos ficcionais, e se amparam e ganham corpo sempre a partir de um real imediato, despertando fortes questões sobre o tempo na vida cotidiana e sobre o estatuto de arte de seus trabalhos (paira a indagação: “isso é arte?”). Por outro lado, há também um claro e potente viés performativo; seus programas o colocam em situações limite, situações onde a experimentação psicofísica do performer atinge intensidades que colapsam os significantes disponíveis na linguagem. Seu público fica em um lugar de suspensão entre as normas e regras da arte e da vida cotidiana.

Em se tratando de situações limites e arte, há uma longa história de artistas que viveram a vida sempre nessas bordas da saúde e do cuidado com o corpo: há inúmeras biografias de artistas permeadas por consumo excessivo de álcool e outras drogas, privação de sono, loucura etc. Porém isso nunca foi considerado arte nem para seu público, nem para eles próprios. Por outro lado, Fischer-Lichte (2008) destaca que sempre existiu e continuam existindo domínios culturais onde práticas extremas e situações limite são consideradas não somente normais como também louváveis e respeitadas tal como as práticas iogues citadas no início deste texto.

Expor o corpo a situações extremas e de privações inimagináveis, permeia, de certo modo, vários espectros de diferentes domínios sociais e culturais. Práticas ancestrais, rituais e religiosas de diferentes povos nos deixam claro o quanto as experimentações com o corpo estiveram sempre presentes, e sob as mais variadas possibilidades. Um iogue que se isola para viver em retiro de vários anos em silêncio e em meditação, com privações de convívio social, alimentação, dentre outros, é considerado um sábio e é muito respeitado em certas sociedades orientais.

Quando vemos vários performers na segunda metade do século XX infringindo aos seus próprios corpos experimentações de extrema intensidade psicofísica, podemos compreender também quais são as marcas desse tempo, qual é nosso zeitgeist contemporâneo.

O século XX revoluciona o universo das artes sob vários aspectos, e, nessas diversas modulações artísticas ao longo deste século XXI, é importante destacar as reflexões concernentes à indissociabilidade entre vida e arte. Nato Thompson inaugura seu livro Living as Form: Socially Engaged Art from 1991-2011 (2012) com duas epígrafes que disparam importantes questões sobre essa temática. A primeira se trata de um questionamento de Michel Foucault, em que ele diz que a arte se tornou, em nossa sociedade, algo que é feito por especialistas, e que se relaciona somente com objetos e não com indivíduos, lançando a provocação de que a vida de qualquer pessoa poderia ser um trabalho artístico. A segunda citação, de Jeremy Deller, diz o seguinte: “Eu deixei de ser um artista que faz coisas, para me tornar um artista que faz coisas acontecerem” (citado por Thompson, 2012, p. 17).

Nato Thompson (2012) relembra que, segundo a performer cubana Tania Bruguera, o urinol de Duchamp agora está de volta ao banheiro ao qual pertencia. Na esteira dessa discussão empreendida por Thompson, Fabião (2013) destaca que a interpretação mais importante sobre esse novo deslocamento do urinol de Duchamp que retorna ao real, seja a de que esse deslocamento reflete “uma recalibragem necessária do meio cultural no mundo de hoje” (Thompson, 2012, citado por Fabião, 2013, p. 8). Quando “a arte entra na vida”, diz Thompson, a questão motivadora, muito mais do que “o que é arte?”, será “o que é vida?” (Fabião, 2013, p. 8) [10].

Nessa linha argumentativa, Tehching Hsieh é um artista exemplar. Seus trabalhos, tal como sugeri no início do texto, continuam agindo nesse real contemporâneo de maneira muito eficiente, sempre a partir desse imbricamento entre a vida e a arte num potente jogo de revezamento temporal, mesmo declarando que, desde 2000, não faz mais arte.

Reverbera aqui, no fim destas linhas, uma frase de dificílima tradução para o português, que consta na declaração prévia à sua última performance de um ano [One Year Performance 1985-1986]: I shall just go in life. Quando penso em traduzi-la, não consigo me furtar de entrar em vários delírios poéticos. Penso no quanto o delírio é a concretude real do que há de mais abstrato na vida, e para traduzir uma frase como essa, urge tatear o delírio a céu aberto dos fluxos de consciência. Penso no dentro e no fora. Penso na vida. Penso em entrar na vida, no telúrico, no material, no carnal, no básico e no simples. Penso no abstrato, no ar, no sutil e no transcendental que não é transcendente. Penso nos trânsitos, nos processos e nos trajetos dentro-fora-vida. Transitar, verbo infinitivo que sintetiza a vida. Há dentro? Há fora? Há transitar. Penso em uma criança se lambuzando inteira na viscosidade amarelo-vibrante de uma manga ao chupá-la, e de como ela sabe o “como” do just go in life. Penso no modo como o artista está sempre brincando de fazer através desse delírio do dentro e do fora, e de como isso pode revolucionar UMA vida. Lembro da importância e da beleza deste artigo indefinido “uma” quando Deleuze (1997), em seu derradeiro texto antes da morte, fala justamente sobre vida, sempre a partir do artigo indefinido “uma”. Penso na vida escancarada frente à imanência radical do indefinido e do quão corajosa é a aventura de just go in life. Penso que não há dentro e fora. Há vida, uma vida. Penso que a arte se travestiu de artigo indefinido para (in)definir a vida, e que o tempo apenas faz esse imenso delírio se mover.

Deixo então as palavras de Hsieh concluírem:

 

Vida é uma sentença de vida, vida é tempo se passando, vida é pensamento livre. Então, esse é basicamente meu trabalho. A partir dessa filosofia, você consome tempo até morrer. Não estou tentando criar conceitos sobre como passar o tempo. Estou apenas passando o tempo. (Hsieh, 2014)

 

 

NOTAS

[1] Ver o site do artista Tehching Hsieh em: <http://www.tehchinghsieh.com>.

[2] Trata-se de uma performance onde Hsieh se jogou do segundo andar de uma casa. Em uma entrevista de 2009, ele declarou que até hoje sofre dores nos tornozelos e que passou por duas cirurgias recentes por conta disso. (Hsieh, 2009)

[3] Tradução livre feita a partir do site do artista Tehching Hsieh. Ver em: <http://www.tehchinghsieh.com>. Acessado em: 19 de janeiro de 2016.

[4] Tradução livre feita a partir do site do artista Tehching Hsieh. Ver em: <http://www.tehchinghsieh.com>. Acessado em: 19 de janeiro de 2016.

[5] Tradução livre feita a partir do site do artista Tehching Hsieh. Ver em: <http://www.tehchinghsieh.com>. Acessado em: 19 de janeiro de 2016.

[6] Tradução livre feita a partir do site do artista Tehching Hsieh. Ver em: <http://www.tehchinghsieh.com>. Acessado em: 19 de janeiro de 2016.

[7] Uma possível tradução talvez se dê com o verbo “dever”, que, no caso da declaração, estaria conjugado na primeira pessoa do singular, “devo”.

[8] “Ir”, em português, conjugado na primeira pessoa do singular, “vou”.

[9] “I kept myself alive. I passed the December 31st, 1999”. Ver em: <http://www.medienkunstnetz.de/artist/hsieh/biography>. Acessado em: 16 de agosto de 2016, tradução livre.

[10] Vale ressaltar que o conceito de “arte socialmente engajada” discutida por Thompson nesse seu livro diz respeito a outra temática não explicitada no trabalho de Hsieh. Thompson pretende discutir, com esse conceito, trabalhos artísticos que articulem, de maneira clara e direta, algum campo de engajamento político. Um exemplo de obra discutida por Thompson é a da artista Tania Bruguera, que traz em seus trabalhos temas relacionados à situação política de Cuba, questões de gênero, classe, direitos humanos, opressão às minorias, dentre outros.

 

BIBLIOGRAFIA

DELEUZE, Gilles. “A imanência: uma vida”. In: VASCONCELLOS, Jorge; FRAGOSO, Emanuel Angelo da Rocha (orgs.). Gilles Deleuze: imagem de um filósofo da imanência. Londrina: Editora UEL, 1997.

FABIÃO, Eleonora. “Performance e Teatro: Poéticas e Políticas da Cena Contemporânea”. In: ARAÚJO, Antônio; AZEVEDO, José Fernando; TENDLAU, Maria. Próximo ato: Teatro de Grupo. São Paulo: Itaú Cultural, 2011.

_________________. “Programa Performativo: O Corpo-em-Experiência”. In: Ilinx – Revista do LUME, n. 4, dez. 2013.

FISCHER-LICHTE, Erika. “The Transformative Power of Performance”. In: The Transformative Power of Performance: A New Aesthetics. Londres/Nova York: Routledge, 2008.

HEATHFIELD, Adrian. “Alive: (Ao) Vivo”. eRevista Performatus, Inhumas, ano 2, n. 9, mar. 2014.

THOMPSON, Nato. “Living as form”. In: THOMPSON, Nato (ed.). Living as Form: Socially Engaged Art from 1991-2011. Massachusetts/Londres: MIT Press, 2012.

 

WEBGRAFIA

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_________________. “Tehching Hsieh: One Year Performance 1980-1981”. Das Platforms, 30 de abril de 2014. Ver em: <https://youtu.be/tvebnkjwTeU>. Acessado em: 23 de janeiro de 2016.

_________________. Site do artista Tehching Hsieh. Ver em: <http://www.tehchinghsieh.com>.

MENEGOI, Simone. “A Question of Time”. Mousse Magazine, n. 11, nov. 2007. Ver em: <http://moussemagazine.it/articolo.mm?id=62>. Acessado em: 22 de janeiro de 2016.

SCHWABSKY, Barry. “Live Work”. Frieze Magazine, 01 de outubro de 2009. Ver em: <https://frieze.com/article/live-work>. Acessado em: 22 de janeiro de 2016.

 

 

PARA CITAR ESTE TEXTO

REZENDE, Diogo. “Passando o Tempo: Considerações Sobre Arte/Vida na Obra de Tehching Hsieh”. eRevista Performatus, Inhumas, ano 4, n. 16, jul. 2016. ISSN: 2316-8102.

 

Revisão ortográfica de Marcio Honorio de Godoy

© 2016 eRevista Performatus e o autor

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