Sem Título

 

Esta conversa começou enquanto colávamos moedas de um cêntimo na parede. Umas estavam com a cara para cima e outras para baixo. No processo descobri que estavam coladas erradas; o trabalho não era meu, por isso preocupei-me, mas ele não ligou (afinal, não estavam assim tão erradas).

Nessa altura já havia conversa, conversa que já aconteceu, mas continua em intervalos; uns maiores e outros menores, depende.

Foi-me proposto e eu propus, ele aceitou porque já tinha visto. Isto, em sua simplicidade, é uma conversa no papel, mas a conversa era informal e não teve um início ou um fim (em parte, nem estávamos presentes). O tema era processo e espaços, públicos e privados. Falamos disso e de outras coisas, e este texto é meu, com questões dele. Mas, no final, este texto não é meu, ou não é só meu, logo, as coisas podem não se corresponder, porém aceitamos esta estrutura devido à inexistência de um guia. Houve lugar para surpresas.

 

*

 

Era para ser um projeto, mas houve alterações e passou a ser outro. Não é maior nem menor, apareceu em tempos diferentes, o primeiro já estava aqui, este apareceu agora, e ainda bem, porque veio a tempo!

São três ou quatro vídeos e uma fotografia, ou só três vídeos, isso porque os vídeos vivem sem a fotografia e a fotografia sem os vídeos, mas num certo momento fazem parte de um todo se o local assim o acolher.

Admito que este projeto não passou pela fase do lápis. Sendo iniciado no fascínio, passou diretamente para a certeza da caneta, pelo impulso, pulso certo.

Falando melhor desta confusão: a fotografia era para aparecer primeiro, mas surgiu por último, os vídeos já estavam lá, mas eu nem sabia da sua existência até chegar ao local, um local ambíguo, que tanto podemos estar dentro como fora, sentimo-nos fora como os espectadores/participantes se sentem fora, ou dentro. Podemos ver uma aproximação a uma outra realidade, a captação de um “outro” mundo, quase ou tão fascinante como a descoberta de um novo planeta, de um ecossistema que não é o nosso mas é procurado. Como não estamos dentro, procuramos a barreira entre as realidades existentes.

Aqui aparece o meu interesse: o espaço inacessível, um espaço em que queremos entrar e explorar, mas que nos é negado tal curiosidade (coisas estranhas acontecem nos momentos de captar imagens dessa realidade).

Toda imposição implica em uma transgressão. Gostamos de congeminar ambiguidades, estabelecer teorias, criticar objetos, invadir espaços sem espaços, rompendo barreiras físicas que nos impedem de olhar e, assim, de participar no conhecimento de um mundo outro, inacabado, explorado, experienciado. Somos seres feitos de curiosidade, de vitalidade inerente ao simples ato de querer instintivamente, como que por impulso, transgredir as “barreiras” do real, fragmentando-o, desviando-nos de um aparente guia estruturado para nos lançarmos no ritual de espreitar através da porta cerrada, um apelo imediato à nossa indômita imaginação. Esse é o nosso momento, a nossa situação, a primeira imagem, a primeira palavra de uma obra que se pretende aberta a perspectivas inesperadas, a interpretações contínuas e prolongadas. Esta pequena introdução era para ser uma pequena introdução, mas, entretanto, mudou de opinião e decidiu converter-se numa espécie de testemunho passado de mãos em mãos, ininterruptamente, até à criação de um fim que não haverá. Só por impulso. Um momento inacabado num território sem definição.

 

I

 

Boa noite!

Bem estou a enviar este email para te falar sobre a ideia que tive para a tal conversa informal.

Visto que a tua proposta foi estar na conversa mas num formato diferente, pensei que estas trocas de emails poderiam ser aproveitadas, a nossa conversa ser via email com partilha de opiniões e conversas de ocasião e no final criar um “texto” se possível e apresentar uma ideia de publicação (book) sobre esta mesma conversa.

Acho que seria uma coisa interessante e a criação de um objecto parece-me algo diferente, que poderia ser o ponto de partida da conversa informal.

Esta proposta/ideia seria o ínicio desse mesmo texto 🙂

Diz-me o que achas! Espero que aproves 😉

Um forte abraço.

P.s. “Troca de emails que originou uma publicação – Des-carregamento”, seria o título do objecto.

Bem, sentei-me finalmente! Eu sei que estou atrasado mas estou aqui. Os últimos dias foram pesados, rápidos, mas rápidos porque já nem sinto, sei que passaram mas nem lembrar bem consigo.

Fiquei contente por aceitares a minha proposta e concordo com a ideia de que há algo que se vai desenrolar sem esse destino/porto de chegada, nem sei se vamos chegar mas partir é garantido!

Falando do que queres ouvir (imagina a minha voz mas com bastantes pausas) os vídeos foram um impulso, levantei-me e achei que seriam o melhor momento, um aparecer sem um convite, apanhar o espaço desprevenido, mas como percebemos o desprevenido fui eu, fui com o material mas não sabia que iria usar um e não o outro, mas são assim os impulsos, são o que são, podemos pensar que o espaço também teve esse impulso sobre quem lá foi.

Apesar de desprevenido alguém levou a máquina, e graças a ele o vídeo apareceu (e como tu bem sabes eu ia à procura de uma fotografia).

Vou escrever sobre o espaço de uma forma ambígua, sim? Penso que tanto poderia ser esta doca como outra, esta estava aqui e eu fui lá. Sei que posso acabar por não responder, mas de certa forma não o quero fazer e penso que me percebes.

Não procurei essas actividades, elas lá estavam e fazem parte do espaço, atrai-me, atrai-me esse habitat onde vemos o quotidiano desse mundo procurado. Claro que a imagem, o vídeo levanta questões, o transporte, o ponto A e B, a existência de um “mundo” e poderia continuar mas são outras conversas.

Aqui vemos a captação desse mundo, momentos, actividades que aparecem no local, estão lá e eu sou o outsider, sou quem quer entrar sem convite, ou não, mas mesmo assim lá estou. Não quero dizer estou fora, quero pensar quem está fora quem está dentro, se existe alguém nessa situação e procurar essa barreira. Não sei se existe, fisicamente está lá, mas isso podemos muito bem trepar!

Estou a escrever seguido porque acho mais natural para esta conversa, desculpa coisas fora de contexto.

O trabalho, é a parte difícil de falar mas tentar faz parte. O território é Portugal, aqui aparece o interesse, o território Português. Sendo algo contínuo sempre em desenvolvimento a questão de outro território dentro do inicial aparecem, juntamos aqui o fascínio de contentores e temos uma ideia da receita, sem quantidades tudo a olho! A marca de um ponto e outro, a barreira, a fronteira são tudo coisas que me chamam, penso e penso e esqueço também, mas é nosso e é onde crio, base de algo que está sempre em mutação. A doca é um momento, onde enviamos e recebemos, entra e sai do território mas sendo esse mesmo um outro. Achei interessante o inacessível do espaço, quero ir e procurar, ver o movimento e vida do espaço.

INACESSÍVEL – Que não é acessível, a que não se pode chegar e incompreensível.

Sendo inacessível quero aceder!

Por agora acho que é o que tenho a dizer, num outro momento devo acrescentar algo mais.

Forte abraço

 

II

 

Por mim avançamos como apontas! Gosto que alguma coisa se vá desenrolando nestes emails, onde quer que vão dar… gosto mais especialmente que se vá produzindo alguma coisa em paralelo ao que inicialmente se tinha pensado.

Parece-me que isso é uma característica que muitas vezes pode acontecer em termos de produção artística, uma espécie de desvio ao guião que tantas vezes serve de âncora e que por um lado neutraliza outro tipo de possibilidades, pois está sempre como matéria fundamental para estruturar um determinado projecto; mas por outro lado pode não ser mais do que uma miragem, porque constantemente os resultados finais surgem mais através dos desvios que acontecem (ou são mesmo auto-impostos por alguns criadores e os métodos de trabalho que usam) do que pela finalização ‘impoluta’ de determinada ideia, que se consegue levar até ao fim.

Isto arrasta logo uma série de questões, tipo, o que é produzir arte, e em que é que essa produção se distingue de outras (não estou a pensar nos resultados ou efeitos, estou a pensar apenas em termos estruturais de produção, e como é que isso co-habita com os modelos de trabalho que temos em cima da mesa, hoje em dia, nos vários outros campos de actividade).

Mas por agora gostava de te ‘ouvir’ sobre os teus vídeos – por exemplo, a forma como eles ‘aconteceram’ no local, ou seja, fugindo a um modelo de algo programado, que acontece quando se vai ‘ao encontro de’ mas sem grande agenda; mas também a forma como eles inscrevem ideias de actividade, de produção e circulação, pelo que é gravado e dado a ver, até mesmo nos momentos em que há um inesperado que acontece e que passa a dar forma ao que é previsível, o que de certa forma introduz um contraste com essa primeira tensão mais ‘liberta’ que apontei atrás; e também, porque os trabalhos convocam uma zona de fronteira, que tu próprio sublinhas quando falas em “barreira entre realidades existentes”, queria saber um pouco mais sobre a tua zona de conforto no que diz respeito ao que produzes (como é que habitas esse espaço de produção, como é que te desafias, e como é que isso se liga às tuas temáticas).

Isto pode ser mais interessante se esta nossa troca estiver num terreno mais inclinado: não são tanto questões que impliquem respostas directas que te lanço, mas talvez mais possibilidades a partir das quais podemos lançar várias perspectivas e explorar outras pistas. Não precisamos de acertar 🙂

abraço!

ps – gosto muito da ideia do des-carregamento, mesmo

Alô, desculpa a demora mas cá vai mais uma achega…

fiquei a pensar sobretudo em duas questões, circulação e escape. acho que se desenha uma espécie de coreografia entre as duas (há uma coreografia presente nos vídeos, que provavelmente e à distância, também contribuiu para esta minha ideia): existem pontos de tensão e de atrito, tal como há território para ocupar por cada conceito. ou seja, não são corpos parados e definitivos, mas vibrantes (e aqui acho que se reflectem um pouco as palavras do teu texto, o ânimo que elas comunicam).

circulação é em si mesmo um campo de antagonismos, portanto político. a palavra em si tem ressonâncias muito simpáticas, emancipatórias, mas se não somos cautelosos fecha-se sobre nós. tudo na circulação implica movimento, por defeito, a falta de estar parado e a perda dessa capacidade e do que a caracteriza. circulam imagens, conceitos, autores, debates. a circulação dentro de um corpo estrutura-o, dá-lhe a própria forma e os seus limites, um circuito fechado. o porto aparece aqui como um ponto de passagem num fluxo que é fantasmático, muito assombrado pelo que não se vê, mas que é temporariamente habitado por um olhar – e, para o que aqui nos interessa o teu.

Por sua vez esse olhar é-o na condição de ser ele próprio ponto de fluxos – pensamentos, aprendizagens, experiências, réplicas – e impulsos.

Essa condição parece-me ser muito especial para ti: porquê? (é também isto que acontece com a circulação: um obstáculo que interrompe ou desvia o fluxo).

Por um lado, o impulso pode aparecer quase como motivo heroico, herdeiro de uma certa circulação (o artista emancipado, romântico, maldito, punk, etc); isto interessa-te enquanto formato de produção?

Por outro lado, e para nos perdermos novamente, o impulso aparece como escape. creio que isso não é como naquelas personagens cinematográficas quase planas, que apenas reagem algures ‘fora’ das regras e dos sistemas. ou melhor, pode ser, mas tal como no potencial da circulação, desdobra-se em vários sentidos, por vezes contraditórios. impulso faz-me sempre pensar na capacidade do que emerge; recordo um texto do brainmassumi, muito livremente parafraseado, em que ele está a comentar o que é que ao nível da engenharia do pensamento acaba por ser solidificado, em termos de ideia. ou seja, de uma massa informe acaba por se formar uma ideia, um pensamento, uma frase discursiva, uma decisão, etc. o processo, segundo ele, é menos mecânico e provavelmente mais subordinado à química, à física, à biologia. mas num certo sentido, a excepcionalidade do impulso desaparece aqui, porque tudo é reconduzido a essa propriedade: ‘somos’ micro-impulsos, constantemente agitados por um fenômeno absolutamente não-linear de construção de ideias, mas do seu ‘borbulhar’ meio anárquico, mas não errático.

Isto são apenas umas considerações em esboço, provavelmente não vamos mesmo ter tempo para as estender muito mais. é pena, acabei de perceber que temos mais elementos nesta nossa paisagem que talvez valesse a pena explorar, mas pelo menos fica a referência… por exemplo, o filme L’Intrus da clairedenis, feito com ligação ao texto do jean-lucnancy que acho que tem o mesmo título, em que ele se ocupa do ‘intruso’ no seu próprio sangue – e lá está, circulação, intrusão; escape? (há também uma conversa entre a denis e o nancy que poderá ser interessante ver ou rever, está no youtube.)

ficam algumas coisas, para podermos ou não ir ancorando no teu trabalho, mas sobretudo a esta troca…

abraço!

 

III

 

A perspectiva artística de trabalho dos vídeos cruza o impulso e o inesperado, um processo de desvio do guião previamente estabelecido. É uma comparência relacionada com uma espécie de trabalho empírico. Aborda-se um possível diálogo entre o indivíduo e o espaço.

O vídeo surgiu por impulso. Estava a trabalhar sobre a doca, mas estava à procura de uma fotografia, e não de um vídeo. Mas, de repente, a câmara de filmar ganhou mais sentido que a fotográfica. Interessava-me mais registar o momento de actividade do que captar uma imagem fixa, apesar das duas terem a sua própria força. Eu nunca tinha trabalhado vídeo, apenas cinema, e existe algo que os separa. Estive na doca quase quatro horas, a deambular pelo espaço à procura de uma fotografia, mas apareceu o vídeo. E, no final, quando estava a vir embora, a fotografia também surgiu, mas o vídeo acabou por ser mais forte. Apareceu por impulso, estava lá, proporcionou-me um momento e comecei a gravar.

Eu trabalho a psico-geografia – a relação do espaço com o indivíduo e do indivíduo com o espaço. O trabalho de campo acontece algumas vezes, depende do meu estado de espírito. Por exemplo, a experiência de ires à casa de alguém sem seres convidado é interessante, porque as pessoas não estão a contar contigo e vais encontrar coisas que não encontras quando combinas um encontro. Há um projecto que gostava de desenvolver que seria percorrer a cidade do Porto, a bater de porta em porta, e pedir para entrar e estar durante um bocado nas casas. Sem um acolhimento planeado, algo apenas natural.

A imprevisibilidade é uma condição criadora e transformadora: era para ser um projecto, mas alterou-se e passou a ser outro.

O ateliê colocou-me uma grande questão: quando é que o que está lá dentro pode transformar-se num momento expositivo? Todos estes objectos já estavam aqui desde o início e eu só reconstruí este conceito de exposição e mostra, com uma parte irônica, que é a ideia de ter o papel com o projecto que era para existir, atrás de um vidro baço, num espaço onde não se consegue aceder bem a essa informação. Algo que era para estar, mas está agora num canto. De resto, tentei jogar com os objectos e o próprio espaço, e questionar quando é que estes objectos podem ser apresentados. Claro que para algumas pessoas pode não haver um grande interesse em questionar esta situação – isto é uma situação – quando é que um objecto transitou e mudou o seu contexto. Sei que nunca mais vou conseguir utilizar este aquário na sua ideia original. Mas, ao mesmo tempo, sinto que não perdi nada, até ganhei uma nova peça, ganhei um novo momento, algo que está a evoluir, quase que me ‘caiu no colo’, sem eu fazer nada por isso.

Fechei esta porta, aconteceu algo dentro deste espaço que não dominei, transformou-se e daí aconteceu a coisa de uma forma diferente. O que eu tinha transformou-se, e isso foi uma surpresa. É como quando estás a ler um livro e uma história rica fica pobre: acontece e tu continuas, aceitas e lês o livro até ao fim, ou não.

A obra é encarada como um momento, um permanente devir em transformação. A obra só está acabada enquanto objecto fisicamente definido. Assume-se como um processo conceptual e interpretativamente inacabado.

Olho as obras como pequenos momentos – são momentos. Momentos de um projecto, que podes juntá-los num todo e criar as suas desconexões, mas não a obra acabada. Claro que podem dizer que está acabada, é uma peça em si, mas depois dessa peça pode nascer algo mais, que pode juntar-se a esta e apresentar-se como uma obra. Uma obra que apesar de não ser isso fisicamente, está ali a rever-se e a transformar-se, vive em contínuo processo. Prefiro assumir mais esse contínuo, do que algo que acabou. O acabar também pode significar estagnar e o que me atrai é a ideia de que se pode ir transformando, aliás nós somos o melhor exemplo disso: não estagnamos, estamos sempre em transformação.

A relação com o espectador surge quase como ‘capítulos inacabados’. Um livro que vais lendo, mas demora, é difícil de ler. Acontece muitas vezes comigo, zango-me com o escritor ou com a história e paro. Alguém vai ver, em momentos vai zangar-se e parar ou ver mais. Pode-se chamar de narrativa, onde a ideia de continuação, também, está implicada. Se eu assumo que o trabalho é algo contínuo, é isto que eu digo às pessoas: vocês viram isto, mas vai continuar, quem achar interessante vai criar essa ligação. Quando disseram-me que iam fazer esta entrevista, pensei igualmente que poderia ser algo ao contrário: a pessoa que está a ser entrevistada, pode entrevistar com as próprias respostas. Há sempre estes dois lados.

Um Portugal ironizado, um Portugal político, um Portugal fragmentado em miríades de pedaços. A condição de ser português, de habitar o território português, desencontrado de uma identidade geográfica.

Na altura, estava a debater-me sobre a ideia de território e, ao mesmo tempo, a ler o livro A Jangada de Pedra, do Saramago. Neste romance, a Península Ibérica separa-se da Europa, e deambula pelo mar. Achei interessante esta ideia de haver a separação de algo unificado, como a Europa, que anda a deambular. Apareceu o livro, apareceu a ideia, as coisas começaram a unir-se e demorei três meses a construir o trabalho, porque fui adquirindo peça a peça.

O aquário surgiu como um símbolo simplificado de como eu vejo o território de Portugal. E, nesse espaço, coloquei os pedaços, que posso exemplificá-los como sendo um bolo – quando o desfazes em dois, ficas com dois pedaços, e se os quiseres juntar já não o consegues totalmente, porque caíram migalhas. Era essa a ideia que queria: não era um puzzle ou um jogo interactivo, mas sim esta ideia de que algo já esteve junto e agora é impossível conseguir ligar. Era isso que apresentava com as ilhas, que andavam alheadas de tudo e deambulavam dentro do aquário. Havia várias perspectivas do projecto, um espelho por baixo do aquário impedia a percepção total da parte de cima e de baixo. Acabava o trabalho com um toque irônico, a ideia de um objecto que é a bandeira – o símbolo de uma nação e de algo unificado – eu separava, individualizava cada uma das bandeiras e retirava-lhes o que tinham de mais precioso, o brasão, a sua própria identificação. A partir daí podiam debater-se várias narrativas. Aliás, no início, até pensei em construir um livro para cada um dos pedaços e, cada um dos pedaços, constituir-se como uma terra diferente, com uma narrativa individual, onde eu escreveria pequenos contos, histórias.

Contaminação pode ser um sinônimo de influência ou cosmos de influências, sejam estas de natureza cinematográfica ou literária. No limite, nenhum acto que se tenha por artístico pode proclamar a sua absoluta independência deste vastíssimo panteão de referências culturais.

Tenho um fascínio por aquelas imagens clássicas do cinema, de uma biblioteca enorme com um velhinho sentado a ler, porque tenho a ideia de que um dia vou ser esse velhinho. Eu gosto de ler, e os livros permitem-me voar. A última obra que li foi o Mr. Vertigo, do Paul Auster, onde há uma criança que aprende a voar, e no próprio livro aprendes a voar, porque ele ensina-te nas últimas páginas do livro. Criar-te várias imagens na cabeça é a riqueza do livro: a tua imagem nunca vai ser igual à minha, como a percepção que tens sobre uma obra de arte, nunca vai ser totalmente igual à minha.

A contaminação vem de textos, de livros, mas não é algo exclusivo. Muitas outras coisas acontecem, surgem do acaso, por exemplo na rua. O meu trabalho na doca aconteceu quando estava a ver vídeos de naufrágios, a leitura de um livro sobre naus portuguesas, juntamente, com um fascínio meu por contentores. Contaminei-me pelos vídeos, pelo livro, pelas coisas que vi na rua, como construções civis da cidade com andaimes. Começou tudo a acumular-se na minha cabeça e surgiram as coisas. É uma contaminação que vai acontecendo, não é propositado.

 

 

Revisão de Marcio Honorio de Godoy

© 2014 eRevista Performatus e o autor

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