Os Memes e a Dança-Teatro de Pina Bausch

 

No século XX, segundo Maribel Portinari (1989), surge na Alemanha um movimento artístico que buscava exteriorizar o inconsciente do ser humano: o expressionismo. Focado na tentativa de expressar o subjetivo – os sentimentos, principalmente os de perda e de dor, a intuição, o inconsciente e a emoção –, o movimento expressionista tinha como premissa deixar transparecer intensamente o sofrimento individual e coletivo do ser humano, a partir da representação de formas grotescas exacerbadas e distorcidas.

Dentro desse contexto, especialmente a partir das décadas de 1920 e de 1930, emerge uma corrente de demasiada importância para as artes cênicas, sobretudo no contexto da dança: a dança-teatro. Desenvolvida no bojo do movimento expressionista, a dança-teatro alemã tem como principal precursor, ao lado de Mary Wigman e Kurt Joss, Rudolf von Laban.

Laban, que foi professor, teórico, coreógrafo e dançarino, influenciado pelo taylorismo, que tinha como enfoque as ideias acerca do aprimoramento da produtividade e a tecnologia como promotor social, acreditava que a dança tinha que ser pensada como uma adaptação ou uma aplicação dos movimentos do trabalho, e, em contrapartida, os movimentos do trabalho como uma aplicação sistemática dos movimentos de dança. Sua dança-teatro preconizava a necessidade da compilação e diálogo contínuo entre dança e teatro, entendidas, na época, como artes independentes das outras existentes.

Mediante a reciprocidade entre a harmonia tempo-espacial e as dinâmicas qualitativas do movimento, os exercícios e coreografias labanianas eram alicerçadas em noções dinâmicas de tensão-relaxamento, contração-descontração, fluxo-refluxo, expansão-recolhimento dos músculos do corpo humano e dos gestos projetados no espaço. Laban entendia que a dança não era apenas simplesmente a expressão representada no tempo através do movimento, mas a partir da presença do corpo no espaço. Em decorrência desse fato, salientava que o movimento humano é inevitavelmente constituído pelos mesmos elementos oriundos tanto dos afazeres do indivíduo na vida cotidiana como da presença deste no fazer artístico.

Com o intuito de estudar a fisiologia e os aspectos psicológicos que promovem o movimento no tempo e no espaço, Laban elaborou um sistema de análise do movimento e notação coreográfica, também conhecida por Kinetography, que contribuiu para o surgimento e desenvolvimento da dança moderna alemã, haja vista que difundia a ideia de uma nova dramaturgia corporal. Contudo, não foi somente esta a contribuição do coreógrafo para a dança. Através da tentativa de suprimir a efemeridade do evento de dança e com a necessidade da existência de um sistema coreográfico que catalogasse os movimentos do dançarino, de modo que este não dependesse apenas da sua memória, produz a Labanotation: sistema de escritura universal com base na estandardização e fixação de cânones.

Mary Wigman, aluna de Laban e maior representante da dança expressionista alemã – Ausdruckstanz –, propôs uma dança livre e que consequentemente rompia com a tirania técnica e estética do balé clássico. Expressava, em sua dança, o destino trágico do indivíduo e da humanidade. Mas para alcançar isso, era preciso que o dançarino imergisse e se conscientizasse de seus impulsos interiores, para que através da escuta sensível de si mesmo e, consequentemente, do mundo, utilizasse seu estado emocional como artifício para a criação, o que, dessa maneira, permitia ao dançarino conhecer suas forças criadoras e adquirir meios para expressá-las corporalmente.

Compreendendo que a dança deveria se aliar à própria concepção de vida, para Wigman, o dançarino era interpelado pelos movimentos da vida cotidiana; daí a necessidade de se considerar o tempo histórico em que o indivíduo vivia [1].

Kurt Jooss, ao contrário de Wigman, não rompeu com a técnica do balé clássico; utilizava-a por meio de várias possibilidades capazes de expressar o gesto, eliminando o virtuosismo imposto pelo balé, e as formas do teatro dramático através da dança. Por conseguinte, desenvolvia, em sua dança-teatro, “temas sociopolíticos através da ação dramática de grupo e da precisão da estrutura formal e de produção.” (FERNANDES, 2007, p. 20).

Jooss postulava que era necessário disponibilizar instrumentos para que o dançarino descobrisse e adquirisse, em seu interior, capacidades para progredir artisticamente, com o objetivo de ser um indivíduo orgânico e autêntico em cena.

Porém, como os contextos artístico e político alemão vinham sofrendo grandes abalos desde a eclosão da Primeira Guerra Mundial até 1939, com a entrada da Alemanha na Segunda Guerra Mundial e em decorrência da repressão nazista comandada por Hitler, vários artistas, dentre eles, Laban e Jooss, se veem obrigados a mudarem quase completamente o curso normal de suas carreiras, e acabam emigrando para outros países do continente europeu. Embora Wigman tenha permanecido na Alemanha, dedicando-se unicamente à pedagogia, Laban e Jooss se asilam na Grã-Bretanha.

Em geral, no período da Segunda Guerra Mundial e do pós-guerra, a Alemanha, arrasada sociopolítica, econômica e culturalmente, passa os vinte anos mais conturbados de sua história. Nesse contexto, as teorias do movimento produzidas por Laban caem no esquecimento, e acabam corriqueiramente sendo utilizadas em poucas escolas e por alguns de seus alunos, em específico nos trabalhos e nas aulas de Jooss na Folkwang Hochsclule.

Desse modo, a dança-teatro, fundada e desenvolvida por Laban e seus discípulos nas décadas de 1920 e de 1930, volta à tona nas artes cênicas pós-modernas, a partir dos anos de 1970, com os trabalhos de uma coreógrafa alemã que contribuiu para a inscrição da dança-teatro na história da arte contemporânea universal: Pina Bausch.

Nascida na cidade de Solingen, no dia 27 de julho de 1940, Pina Bausch experienciou, no período pós-guerra, a difícil reconstrução de sua pátria. Como qualquer outra criança da época, teve uma infância bastante livre. Seus pais eram donos de restaurante, o que de certa forma a possibilitou iniciar o que posteriormente viria a ser considerada uma das principais referências de seus processos criativos e encenações: a observação das pessoas e suas relações interpessoais.

Estudando balé clássico até os quinze anos, Bausch, em 1955, decide se mudar para a cidade de Essen e começa a estudar dança na Folkwang Hochsclule. Lá conhece seu mestre, Jooss. A convivência com o discípulo de Laban influenciou incisivamente nas escolhas que fez, anos mais tarde, nos processos dramatúrgicos de suas encenações no Tanztheater Wuppertal. Em Folkwang Hochsclule também teve oportunidade de vivenciar e experienciar as relações entre as diferentes linguagens artísticas. Isso influenciou demasiadamente em sua formação, visto que “a criação, mesmo numa área aparentemente técnica como a dança, não deve partir apenas de si mesma, mas precisa buscar outras articulações possíveis e apontar para uma prática multidisciplinar.” (CYPRIANO, 2005, p. 25).

A respeito de sua formação na escola Jooss, Bausch afirma:

 

O magnífico daquela escola, ao lado de meus eminentes professores Kurt Jooss, Hans Zullig, Jean Cébron e outros, era que havia tantas coisas a aprender, e todas despertavam a imaginação: a dança clássica e a moderna, o folclore europeu. Particularmente importante era que, na época, todas as seções ainda se achavam sob o mesmo teto: a música, a ópera, o teatro, a dança, fotógrafos, escultores, gráficos, designers de tecidos, tudo isso podia ser mutuamente desfrutado. E nada mais natural que se conhecesse de tudo um pouco. (BAUSCH apud CYPRIANO, 2005, p. 24-25)

 

Após se graduar na Folkwang Hochsclule, Bausch ganhou uma bolsa concedida pelo Serviço Alemão de Intercâmbio Acadêmico para estudar como aluna especial na Juilliard School of Music, em Nova York, em 1960. Em solo norte-americano, familiarizou-se com as técnicas da dança moderna norte-americana, principalmente as criadas por José Limón e Martha Graham. Teve contato com os trabalhos de Paul Sanasardo e Donya Feuer e, dessa relação, surgiu o convite para trabalhar como professora convidada e solista da Paul Sanasardo and Donya Feuer Dance Company. Contudo sua vital influência no período que viveu nos Estados Unidos surgiu a partir da vivência com Antony Tudor, instrutor da Juilliard School, e da temporada em que dançou sob sua direção no Metropolitan Ballet Theater. É observável que a tendência do gesto emotivo de orientação psicológica elaborada por Tudor, levou Bausch a avaliar e reconfigurar algumas de suas experiências na dança alemã no seu tempo de graduanda.

Ainda vivendo em Nova York, Bausch teve a oportunidade de testemunhar a diversidade artística produzida pelos movimentos de contracultura da vanguarda norte-americana, que a levou a utilizar os seguintes procedimentos em sua dança-teatro pós-moderna: a quebra da quarta parede nas encenações, com o intuito de estabelecer uma relação direta e desalienadora com público por meio da presença dos dançarinos em cena; encenações que privilegiam o processo ao invés do produto cênico; poética cênica permeada pelo acaso, risco e sincronicidade; diluição das fronteiras entre as artes e a vida; reconhecimento do valor individual de cada espectador como agente compositor da cena, o que permite ao espectador estar consciente de seu papel de testemunha da ação; relação corpórea e espacial provocada pela proximidade dos corpos, favorecendo o contato imediato entre dançarino e público, em que cada sujeito, com sua própria presença, incita intencionalmente uma comunicação interpessoal.

Em 1962, decide retornar à Alemanha, pois aceita o convite de Jooss para participar como solista do Folkwang Ballet. Sua permanência na companhia foi de grande valia para o início de sua carreira como coreógrafa. Seu sucesso como coreógrafa no Folkwang Ballet fez Arno Wüstenhöfer convidá-la a assumir o cargo de diretora na Ópera de Wuppertal. Em 1973, torna-se coreógrafa do Tanztheater Wuppertal, permanecendo na companhia até o fim de sua vida.

Contextualizei até o momento o surgimento da dança-teatro alemã, seus principais representantes e a vida de Pina Bausch, para explicitar como os processos criativos e coreografias da artista são contaminadas por memes.

Em 1976, o biólogo evolucionista Richard Dawkins publica, em seu livro O gene egoísta, o conceito referente à unidade de transmissão responsável pela evolução cultural: o meme. Semelhante à transmissão genética, a transmissão cultural ocorre em algumas espécies de seres vivos, como os primatas e as aves, mas é no ser humano que a evolução cultural aparece mais lucidamente.

Tudo que não é geneticamente determinado, todos os comportamentos sociais, todas as ideias, conceitos e teorias, tudo o que uma pessoa é capaz de imitar ou aprender com outro ser humano, e, consequentemente, toda a cultura, é um conjunto de memes. Os exemplos de memes são imensuráveis, porém os mais comuns são: a linguagem, a moda, os hábitos alimentares, os costumes, os rituais, a dança, o teatro, as músicas, as tecnologias, ideias, arquitetura, maneiras de construir arcos, o alfabeto, a linguagem, o patriotismo, a religião, os artefatos, as ideologias.

A popularidade do livro O gene egoísta no meio acadêmico e científico, em especial na biologia, se dá pelo argumento de que a seleção natural não ocorre sob a predisposição das espécies, dos grupos ou dos indivíduos envolvidos, mas a partir do desejo dos genes em se propagarem. Embora a seleção aconteça especificamente em nível individual, é a informação genética a ser copiada que é mais importante no processo evolutivo. Por conseguinte, a evolução é conduzida pelos genes replicadores e pela competição entre eles no pool genético; o mesmo se sucede na evolução memética.

Assim como os genes se replicam de um corpo para outro por intermédio das células sexuais masculina e feminina no ato reprodutivo sexuado, os memes transitam de um cérebro para o outro por meio da imitação. Parecido ao que acontece na seleção natural, em que nem todos os genes conseguem se replicar, o processo de replicação dos memes também depende da capacidade de eles terem êxito e sobreviverem no pool de memes. É observável que, geralmente, tanto os genes como os memes, no processo de seleção, se substanciam reciprocamente, porém, do mesmo modo, podem ser contrários um ao outro. Dessa maneira, podemos considerar que os memes e os genes são egoístas.

Para que a evolução dos memes acontecesse, foi preciso que a evolução dos animais originasse a espécie humana – Homo sapiens. Esta era e é capaz de adquirir e espalhar a unidade de transmissão cultural por meio da imitação, o meme. Assim, ao mesmo tempo que o ser humano inventava as ferramentas de pedra, que eram utilizadas para suprir suas necessidades, ele imitava o novo comportamento ou habilidades de outro animal e/ou da sua própria espécie, o que proporcionou o aumento do seu cérebro. Com o aumento do cérebro humano, foi possível o desenvolvimento de hábitos de comunicação que favoreciam a transmissão de memes; o principal deles é a linguagem humana.

De acordo com Dawkins (2008), a sobrevivência dos memes é resultante das seguintes qualidades: longevidade, fecundidade e fidelidade de cópia. A longevidade da replicação de uma cópia única de um meme está alicerçada no tempo de vida que seu hospedeiro humano terá, ou seja, tal meme sobreviverá na mente da pessoa até sua morte, no entanto, caso o meme consiga se propagar nas mentes das outras pessoas, o mesmo se perpetuará durante muito tempo.

A fecundidade está relacionada com a maneira pela qual o meme utiliza para se espalhar e permanecer nos cérebros dos humanos, por exemplo: se o meme for a ideia religiosa da existência de Deus, a sua propagação derivar-se-á do grau de aceitação que conseguir na crença da população. A sobrevivência de um meme Deus onipresente, onisciente e onipotente poderá ser medida através das formas com que as pessoas demonstrarão sua fé pela entidade por gerações sucessivas. Isto é, a existência da fé em Deus satisfaz as pessoas por causa da necessidade que têm de saberem de onde e por que surgiram e para onde irão depois que morrerem. Na crença em um Deus que as protege, que vê seus pecados, que as manda ao purgatório caso não obedeçam a seus princípios e que só as punirá no juízo final, as pessoas não verificarão o motivo da invisibilidade desse Deus, pois, diferente da ciência, a fé não permite questionamentos. Exemplos dessa fé cega são: a construção e manutenção de edifícios religiosos, a formação de sacerdotes para demonstrar a benevolência divina em diversas questões, a criação de textos que explicam a origem do mundo e dos seres, a produção de objetos que permitem a interação das pessoas com o divino, dentre outros.

Já a fidelidade da cópia é passível à mutação e à combinação constante de memes, visto que mesmo aqueles memes bem-sucedidos no processo de fecundidade, quando alcançam seu propósito de se hospedar nos cérebros, não conseguem se replicar fielmente à sua cópia original.

Susan Blackmore (1999), ao comparar os memes aos vírus, e afirmar que são eles, mediante suas dinâmicas de sobrevivência nos cérebros e nos artefatos humanos, os responsáveis pela evolução cultural, nos permite, no presente escrito, atentar para o fato de que a dança-teatro bauschiana é promovida por fusões meméticas. Dentre os memes que compõem essa fusão encontramos os seguintes: meme Brecht, meme Stanislávski e meme Vanguardas pós-modernas norte-americanas. Mas se faz mister elucidar que Bausch, no processo de configuração cênica do seu fazer artístico, incorpora e reconstrói suas influências.

À respeito disso, vejamos:

 

O trabalho de Bausch combina seu treinamento com Jooss na Escola Folkwang e como solista na companhia dirigida por ele, a Folkwangballet, com sua experiência das artes e dança em Nova York nos anos de 1960. […] Ambas influências de Bausch – Jooss e os trabalhos norte-americanos de interartes – enfatizam as relações humanas, o vocabulário de movimento cotidiano e a colaboração entre as diferentes formas de arte. (FERNANDES, 2007, p. 22-23)

 

Bausch herdou de Jooss a compreensão de que a dança é essencialmente teatro e que cada movimento tem um sentido e uma história por trás. Por isso suas matrizes estéticas enfatizam as relações humanas, permitem o diálogo entre as diferentes linguagens artísticas e utilizam os movimentos cotidianos como tessituras do texto espetacular.

Como na companhia de dança de Jooss, os dançarinos do Tanztheater Wuppertal, embora não ficasse evidente nas coreografias, tinham que dominar a técnica do balé clássico. Devido a isso, Bausch escolhia, para participar de seu elenco, dançarinos mais experientes, na vida e na dança, com faixa etária que variava entre trinta e quarenta anos de idade.

Em relação ao corpo, Bausch divergiu de Laban e Wigman, pois não rompeu totalmente com a técnica do balé clássico, haja visto que Laban e Wigman, por não concordarem com a rigidez do tronco e com a valorização da verticalidade do corpo no espaço, romperam total ou parcialmente com a técnica e a estética do balé clássico – esse fator está relacionado a processos e coreografias que tinha como objetivo explorar a dança individual de cada um, ou seja, o dançarino era intérprete de si mesmo, seus movimentos representavam seus sentimentos, emoção ou pensamentos, o que estabelecia uma relação com o outro e o mundo que o cerca. Porém, Bausch coadunava com os três precursores da dança-teatro moderna alemã. Laban, Wigman e Jooss, embora estabelecessem os estados emocionais de seus dançarinos como suportes na criação, instauravam a importância do corpo humano enquanto instrumento expressivo; opuseram-se à dicotomização que perpassou séculos e culturas separando o material e o mental, e se contrapuseram ao ideal cartesiano em que o corpo é entendido como submisso à mente, pois acreditavam que o corpo é um organismo vivo indivisível e indissociável da consciência.

Resquícios das ideias brechtianas presentes nos trabalhos de Jooss [2], consequentemente propiciaram a Bausch, através da materialidade de suas coreografias, praticar sua política. Diferente de Brecht, Bausch não se engaja politicamente somente por meio de temas sociopolíticos, mas assume um posicionamento ético: interessada na dramaturgia corporal, Bausch, em sua dança-teatro, não permitia que qualquer linguagem interferisse no seu processo coreográfico, pois ela própria tinha como finalidade criar ambiguidades nos contextos ficcional e real que denunciavam, de inúmeras maneiras, as condições opressoras e as escaras psíquicas em que vive o ser humano na contemporaneidade.

Podemos perceber que Bausch incorporou, em seus trabalhos, o uso de alguns procedimentos do teatro épico descritos a seguir: a não representação psicológica, pois os dançarinos se distanciam dos personagens por meio da repetição; a cena teatralizada e literalizada; utilização de cenário anti-ilusionista; a quebra da quarta parede, com o intuito de mostrar aos espectadores os mecanismos teatrais e criticar as representações convencionais; confrontação direta com o público; não linearidade dramatúrgica; cena organizada a partir de colagens e justaposição de diferentes cenas apresentadas simultaneamente sem encadeamentos lineares.

Como Brecht em seu teatro épico, uma das propostas de Bausch consistia em estudar as pessoas e suas relações com os outros por meio dos gestos, assim como acontece no dia a dia. Nesse sentido, é visível que um dos mais importantes elementos constituintes da poética brechtiana foi o gestus social. Mas nem todo gestus é social. Para ser social, é preciso que o gestus traga à tona a forma como o indivíduo/personagem pensa, ou seja, ele deve explicitar, de maneira global, o que está escondido nas relações sociais dos indivíduos diante da complexidade em que se desdobra na esfera social.

Há duas definições que evidenciam o gestus:

 

[…] a primeira definição enfatiza que o gestus é definido por uma relação social, uma relação que nos permite tirar conclusões sobre a sociedade, consequentemente, isso nos fará assumir um ponto de vista diante da situação apresentada. A segunda definição nos traz a informação de que o gestus revela “o ser ou modo de ser da personagem dentro da ação dramática“, ou seja, nos remete diretamente à cena, à construção da personagem que age de determinada forma por pertencer a dado contexto social e histórico. (HADERCHPEK, 2005, p. 20)

 

Vale explicitar que Bausch, em sua dança-teatro, não utiliza o gestus brechtiano, mas os gestos individuais. Por conseguinte, os gestos, dissociados de suas funções e das atividades realizadas no cotidiano, adquirem uma função estética quando estão em cena, pois, estilizados e tecnicamente estruturados, perdem o caráter espontâneo e ganham, através das constantes repetições, uma significação crítica socioestética.

Nos processos criativos e, principalmente, nas coreografias, nota-se que Bausch rompe com a poética aristotélica e utiliza um elemento semelhante ao efeito de estranhamento da poética brechtiana: a repetição.

Brecht salientava que o efeito de estranhamento é uma técnica que permite ao espectador reorientar seu olhar de modo distanciado para determinadas situações representadas em cena. E é a partir desse efeito que tanto o espectador como o ator começam a examinar o comportamento da sociedade e tomar certas posições críticas diante de tudo que viram, isto é, assim como o gestus, o efeito de estranhamento tem como propósito provocar no indivíduo a consciência de que ele está inserido em um processo de alienação, permitindo a ele analisar de forma crítica as situações opressoras que têm passado despercebidas em sua vida.

Semelhante ao efeito de estranhamento, a repetição é um artifício coreográfico e método da dança-teatro bauschiana que procura explorar a proposta de estranhamento brechtiana. Os gestos e as palavras, quando são repetidos várias vezes nos ensaios e em cena, progressivamente se desvinculam de uma fonte emocional espontânea e perdem seus significados literais. Sendo a parte estrutural no processo criativo, a repetição permite reconstruir esteticamente as experiências passadas dos dançarinos, resultando, na plateia e no elenco, a consciência de que são sujeitos sócio-históricos em constante transformação.

A repetição revela a artificialidade do fazer cênico por meio dos movimentos e da dramaturgia fragmentada. O dançarino não mais representa personagens estereotipados como no balé clássico nem mostra seu corpo como discurso psicológico, mas dança explicitando sua relação consigo mesmo e sua vulnerabilidade perante o ato de dançar.

A aplicação da repetição nas coreografias e nos processos se dá por dois vieses: repetições formais e repetições informais. As repetições formais são organizadas nas seguintes subdivisões: repetição de eventos separados no espaço, mas simultâneos na mesma cena – Longo Alcance; repetição de uma cena alterada pormenorizadamente – Alterada; repetição precisa de uma palavra ou de um movimento – Obsessiva; repetição de um evento em contextos diferentes – Intermitente. As repetições informais são: a reconstrução de uma história e a reformulação cênica das experiências vividas, sobretudo na infância, pelos dançarinos.

 

No processo criativo de Bausch […], a repetição não confirma nem nega os vocabulários impostos nos corpos dançantes. Ao invés disso, é usada precisamente para desarranjar tais construções gestuais da técnica ou da própria sociedade. A repetição tornar-se um instrumento criativo através do qual os dançarinos reconstroem, desestabilizam e transformam suas próprias histórias enquanto corpos estéticos e sociais. O método é inicialmente usado para fragmentar as experiências dos dançarinos e a narrativa de suas frases de movimento. Eventualmente, produz uma continuidade distinta, transformando as histórias daqueles corpos, bem como nossos (pré)conceitos e percepções de nossa própria história corporal enquanto plateia. (FERNANDES, 2007, p. 46)

 

Como Constantin Stanislávki, Bausch, em seus processos de ensaios, utiliza o método da memória emotiva como ponto de partida para a construção de suas coreografias. Durante o processo de ensaios, emprega vários estímulos que vão desde perguntas simples a questões existenciais acerca da vida de cada um de seus dançarinos. As perguntas variam e continuam ininterruptamente, os temas sugeridos pela coreógrafa se desdobram diretamente das relações entre os indivíduos, produzidas subjetivamente, conforme as experiências pessoais, mesmo as mais íntimas, de seus dançarinos.

Em caminho à descoberta da criatividade individual de seus dançarinos, Bausch, ao aplicar uma busca contínua pelo comportamento natural prescindido de qualquer alicerce social e cultural, adentra nos universos existenciais mais enraizados e implantados no caráter de seu elenco. No ponto de vista de Leonetta Bentivoglio:

 

[…] Ao trabalhar com ela, os bailarinos imergem numa relação com as próprias emoções, exacerbada até aos mínimos detalhes, num processo “de arrancar a tampa” que nunca se esgota: esta sondagem, interior ou evidente, pode chegar a ser tão sofrida e fatigante quanto apaixonante e libertadora […] Durante os ensaios, a encenadora pede a todos uma extroversão absoluta e sincera: uma simplicidade esteticamente não calculada mas, pelo contrário, genuinamente reencontrada. (BENTIVOGLIO, 1994, p. 25)

 

A respeito disso, Regina Advento completa:

 

Há três tipos de respostas: por palavras, por movimentos ou ambos. Não somos obrigados a responder todas, mas tudo o que respondemos é gravado em vídeo e depois algumas cenas são selecionadas e retrabalhadas individualmente com a Pina. É importante ressaltar que ela não acha correto afirmar que esse método é feito por improvisação, pois temos um tempo para pensar e responder. Além do mais, tudo é revisto muitas vezes. Há até respostas, de texto ou movimento, que são repassadas a outros bailarinos. Em geral, não temos ideia de para onde vai o material, tudo é centrado na Pina. (ADVENTO apud CYPRIANO, 2005, p. 33)

 

Bausch elaborava suas coreografias com o advento de um vocabulário único: o corpo e a memória corpóreo-vocal de seus dançarinos. Primeiro indicava temas, depois elegia partes do que acontecia ao seu redor e produzia uma montagem. Toda sua obra dependia do que os dançarinos lhe dessem ou sugerissem como material. Como ela mesma dizia, o que mais interessava a ela eram as relações entre os seres humanos, por isso se interessava mais pelo impulso, pela vontade ou necessidade interna na qual se origina a ação, do que pelo movimento corporal dançante em si, que se mostra através de imagens em movimento.

Como já exposto, Bausch, durante a época em que viveu em Nova York, teve a oportunidade de testemunhar a diversidade artística produzida pelos movimentos de contracultura da vanguarda norte-americana. Nesse mesmo período surge a dança pós-moderna. Assim como as outras artes, essa nova dança vivia uma crise quanto à sua estética e seus procedimentos.

Sally Banes (1987;1993) diz que, diferente da dança moderna, na qual as temáticas se configuravam a partir de questões existencialistas, a dança pós-moderna de meados dos anos de 1940, gestada por Merce Cunningham [3], balizava-se na pesquisa de composição dos movimentos, sem necessidade de estes estarem relacionados a personagens ou enredos, como acontecia no movimento de dança moderna. A partir de 1960, artistas de diferentes linguagens como Judith Dunn, Douglas Duun, David Gordon, Steve Paxton, Trisha Brown, Yvonne Rainer, James Tenney, John Herbert McDowell e outros, criavam, no bairro Greenwich Village, coreografias que exploravam exaustivamente a movimentação cotidiana.

Em contato direto com a performance [4], a improvisação e happening [5], a dança pós-moderna diluía suas fronteiras e, dessa mistura, estabelecia novos procedimentos coreográficos, como: dramaturgia não linear; valorização do instante-presente; repetições; acontecimentos simultâneos; desconstrução das narrativas clássicas; idiossincrasia; experimentações; contextos cênicos alternados; multiplicidade de diferentes linguagens artísticas.

Perante o hibridismo entre as linguagens artísticas gestadas no seio do movimento pós-moderno, especialmente a dança e o teatro, na época brotaram implicações a respeito da necessidade de determinar o que seria a dança, na tentativa de compreender de que forma ela se relacionava com as outras artes e, sobretudo, o modo como era contaminada por elas, sem tornar-se submissa. E para isso, foi imprescindível entender e permear-se dos outros elementos da estética teatral, que não fosse somente o corpo.

O processo contínuo de hibridação presente na dança-teatro de Bausch aponta para o esfacelamento que se passa no interior da natureza da dança e do teatro, pois não procura somente a interação e a troca entre ambas as linguagens artísticas, mas a alteração das características inerentes e dos elementos que cada arte conhece de si.

Da mesma forma que as outras linguagens artísticas pós-modernas, a dança-teatro bauschiana é operacionalizada por procedimentos que captam, reconstroem e resignificam a vida cotidiana partindo de seus acasos e causas.

Investigando a fragmentação do tempo e do espaço, a poética bauschiana se instaura, se aproxima e apodera-se do imaginário sócio-histórico e cultural do ser humano pós-moderno para trafegar por particularidades temáticas existenciais que, por escopo, expõem criticamente as condições em que a sociedade contemporânea passa e se estabelece.

Portanto, ao analisar a dança-teatro de Bausch sob a perspectiva da memética, e, por conseguinte, observar os memes que se instalaram e se propagaram nos procedimentos de diferentes linguagens artísticas nos processos criativos e coreografias do Tanztheater Wuppertal, percebemos que a artista alemã, que universalizou a dança-teatro, ela própria se tornou um memememe Bausch – e aqueles que coadunam com seus procedimentos, pensamentos e ideias sobre a dança, irão perpetuar seu meme por muito tempo na história mundial das artes cênicas.

 

Notas

[1] Pina Bausch opera seus trabalhos por dois eixos: eixo vertical e eixo horizontal. O primeiro tem como princípio, no sistema de criação, a observação dos sujeitos e de suas relações com as pessoas. O segundo ressalta a importância do contexto no qual a pessoa está no mundo, seu entorno.

[2] Brecht influenciou, através do seu Teatro Épico, a dança-teatro alemã. Em oposição aos preceitos da poética aristotélica, que instaurava a identificação psicológica entre ator, personagem e espectador, aperfeiçoou as técnicas de encenação existentes para caracterizar, sobretudo, seu teatro como um projeto estético-político, cujo propósito é confrontar o público para fazê-lo questionar-se sobre a razão de ser das coisas. Brecht desejava que o espectador produzisse atitudes transformadoras para si e para a sociedade.

[3] Para Cunningham, a dança pode ser pensada nas seguintes formas: qualquer movimento pode ser material de criação; pode ser sobre qualquer coisa; qualquer técnica pode ser utilizada no processo criativo; pode ser criada e apresentada em qualquer espaço; as partes do corpo são autônomas; a dança é independente da música; qualquer dançarino pode ser solista.

[4] Seguindo por uma abordagem antropológica, não é mais uma tarefa fácil conceituar o que é ou não performance, pois seu conceito e sua estrutura se propagaram por diversos campos do saber. Muitos concordam que a performance é um modo de comportamento ritualizado relacionado à experiência humana codificada e transmissível, e que se categoriza por diversos modos de abordagem, sociológica e política, étnica e intercultural, estética e ritual, histórica e atemporal. No contexto da arte, a performance, sendo essencialmente uma arte de fronteira que penetra e se influencia nos díspares territórios artísticos, no seu contínuo movimento de ruptura com a arte estabelecida adentra por caminhos e situações antes não valorizadas como arte, propondo esmiuçar as fronteiras tênues que separam vida e arte. A performance está diretamente relacionada a uma nova maneira de se encarar a arte: live art. A live art é a arte ao vivo, no aqui e agora, e também é a arte viva que oportuniza uma aproximação direta com a vida, em que se preconiza o espontâneo, em detrimento do que é ensaiado. A live art é um movimento de ruptura que objetiva dessacralizar a arte, tirando-a de sua função elitista. A ideia é trazer à tona a característica ritual da arte, ou seja, fazer com que a arte saia de espaços institucionais e passe a assumir uma posição viva na sociedade. Esse movimento é dialético na arte contemporânea, pois se tira a arte de uma posição sacra e se busca uma ritualização dos atos cotidianos da vida. Sendo assim, a performance não enseja a representação do real, mas a reelaboração do real, na qual a obra de arte tem vida própria e não se limita a representar o objeto mimeticamente, como ocorre no teatro dramático. Influenciando-se pelas ideias da NÃO-ARTE e da arte de contestação, a performance propõe a intenção de considerar o fato de que qualquer ato é um ato artístico, desde que seja contextualizado como tal.

[5] Diferente da performance, no happening prevalece o trabalho grupal. Envolve o público diretamente nas improvisações criativas.

 

Bibliografia

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Felipe Henrique Monteiro Oliveira é doutorando em Artes Cênicas pela Universidade Federal da Bahia. Mestre em Artes Cênicas pela Universidade Federal do Rio Grande do Norte com bolsa concedida pela Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior. Graduado em Licenciatura em Teatro pela Universidade Federal de Alagoas. Performer do Cruor Arte Contemporânea e pesquisador do Núcleo Transdisciplinar de Pesquisa em Artes Cênicas e Espetaculares / NACE.

 

 

Revisão de Marcio Honorio de Godoy

© 2014 eRevista Performatus e o autor

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