O Silêncio-Narrativa Dos Jovens Umutina Balotiponé / Barra Do Bugres, MT, Brasil

 

Mas bien, se quiere enfatizar el interés en la “América profunda”, esa América que huele mal, de carácter indígena, indigente, campesina y rural, que no se preocupa por asegurar su ser, sino por su estar-siendo en su propia estancia y su raigambre. En ese sentido, estéticas decoloniales se trata de una búsqueda, no es un recinto en la casa del ser occidental, sino una estancia en la casa propia; es una búsqueda de lo propio, en cuyo camino se va desmantelando todo aquello que lo encubre, lo desodoriza, lo silencia y lo deforma.

Walter Mignolo e Pedro Pablo

 

Esse texto é um memorial da experiência artístico-pedagógica que compartilhei com jovens e crianças da aldeia Umutina Balatiponé, em Mato Grosso. Vi, no campo, que a estética do processo de criação artística é correspondente ao estado e percurso político e econômico da sociedade com a qual esse processo dialoga. Investigo como novas possibilidades comunicativas e processos de aprendizagem ocorrem em comunidades em que se manifestam formas ancestrais muito sofisticadas. (PEETERS, 2004: 61) Utilizo as referências de autores como Jacques Rancière documentando afetações sobre a relação entre o ensino de arte e a criação artística, que pode ser a própria prática; segui ideias presentes nas falas de pensadores como James Clifford e, especialmente, Walter Mignolo. Inicio com Mignolo e Pedro Pablo Gómez, em Estéticas y opción decolonial, publicação da Universidade Distrital Francisco Caldas, de Bogotá, por suspeitar que há um caminho crítico integralmente pertinente ao cenário de emancipação [1] cultural na América Latina; tal emancipação compreende um modo, em formação, propriamente latino de perceber e criar.

O trabalho de criação artística com jovens do grupo indígena Bororo, subgrupo Umutina Balatiponé, foi realizado por ocasião da Festa da Troca e Colheita das Sementes entre dez etnias de Rondônia e Mato Grosso, em julho de 2013, na Aldeia Umutina, como fechamento do PBA-I (Programa Básico Ambiental Indígena) para a qual prestei serviços técnicos na área de criação artística. Na equipe técnica colaboraram também, três comunicadores sociais, uma antropóloga, uma socióloga, um administrativo, entre outros. Tive colaboradores diretos: os comunicadores sociais que realizaram documentação de vídeo, de áudio e fotográfica. Cerca de 20 jovens estiveram presentes em cada oficina, ao longo dos cinco dias de campo, considerando crianças e jovens de 6 até 17 anos.

Utilizei como material de trabalho apostilas distribuídas com o planejamento para as atividades de recuperação de tradições orais e corporais; pendrives com áudios das histórias sagradas tradicionais, registradas previamente nas dez aldeias que participaram desse PBA-I; música para aquecimento das atividades de movimento, utilizando metodologia desenvolvida a partir das técnicas de Rudolph Laban e material bibliográfico das histórias sagradas Nambiquara, sobre a origem dos alimentos e dos povos. Além destes, utilizamos, como material para apresentações, trajes, instrumentos musicais e pinturas tradicionais com jenipapo, bumbo (não tradicional) para anúncio do início das apresentações e gravação em áudio da voz do jovem colaborador Itamar Maetana Tan Haurê, de 23 anos, da aldeia Umutina, da história sagrada da Origem dos povos na tradição Umutina.

 

Cada parte do corpo do menino transformou-se numa planta, cujos frutos iriam servir de alimento para os manoki: da cabeça nasceram as cabaças, utilizadas para carregar água e colocar na chicha; do coração surgiu o cará-branco; do fígado, o cará-roxo/preto (…). (SILVEIRA; BRÜSKE, 2011: 29)

 

Escutei muitas conversas e narrativas desde a primeira vez em que trabalhei na Aldeia Umutina, em 2012. A história do município de Barra dos Bugres, terra por Deus abençoada/Onde o índio da flora desfruta/Como outrora se fores ultrajada/Nós seremos soldados que lutam [2], é uma dessas narrativas brasileiras de um município formado a partir de invasões estrangeiras – territoriais e catequizadoras. Invadido por espanhóis protegidos por tropas de índios Guarani contra os portugueses, o município recebeu tal denominação pela localização à margem do Rio Bugres, que cruza o Rio Paraguai. Sendo “bugres” um nome pejorativo, que, “para denotar o indígena no sentido de “inculto”, “selvático”, “estrangeiro”, “pagão”, e “não cristão” [3], indica os fundamentos colonizadores através dos quais o Brasil foi fundado. O povo Umutina ocupava a região de Barra do Bugres originalmente e já foi quase totalmente dizimado durante o primeiro ciclo econômico e as expansões telegráficas de marechal Rondon, no final do século XIX. Segundo Antônio João de Jesus [4], cerca de 23 “Umutina independentes” sobreviveram aos ataques de extrativistas e às doenças por eles trazidas, das quais a cultura medicinal indígena não conseguiu dar conta. Além de 23 jovens adultos, 50 crianças foram encontradas por volta de 1911 na região. Somaram-se a estes outras gerações e grupos diversos, no chamado “posto da fraternidade” organizado pelo marechal Rondon, no território que hoje é delimitado como reserva indígena. Neste posto, há ruínas de alvenaria e de um prédio escolar considerado patrimônio histórico. Em conversas à fogueira, aprendi que o posto da fraternidade foi, de fato, uma espécie de prisão para onde levavam índios rebeldes das mais diferentes etnias, que, resistentes, não se deixavam escravizar. Hoje, vivem cerca de 400 moradores de grupos e subgrupos diversos, formados, principalmente, a partir da união entre pessoas das etnias Bororo e Pareci. Há também uma escola municipal, onde jovens aprendem, além do curriculum escolar tradicional, a língua e as tradições Umutina, estrategicamente de acordo e liderados pelo cacique Luís Fernando. Os professores são todos moradores e indígenas.

Assimilo a possibilidade de adequação de uma postura decolonial na atividade artístico-pedagógica e mapeio imagens que foram ou poderão ser referenciadas futuramente. Essas imagens são análogas aos “modos de ocupação do corpo” (PEETERS, 2004: 69) que pude perceber, ao longo do tempo, no campo.

 

Atividades de arte e educação e o município Barra do Bugres

As oficinas de criação artística ocorreram no período de 19 a 23 de julho. Das 58 pessoas inscritas, entre crianças, jovens e adultos, em média 20 participantes estiveram presentes ao longo dos dias de oficina. Foi observado, contudo, que as oficinas incitaram grande expectativa, principalmente, para seis participantes adolescentes, na faixa de 16 a 17 anos. Estes mesmos jovens já haviam participado das atividades artísticas de teatro-dança e documentação fotográfica direcionadas por mim, em maio de 2012, na ocasião do Curso de Licenciamento Ambiental, do mesmo PBA-I mencionado anteriormente. Um jovem, Juliano Matos, vice-cacique de uma ramificação da aldeia maior, ofereceu todo o apoio necessário para a divulgação e a organização do grupo. Os jovens, nesse sentido, se colocaram disponíveis e criativos em relação à preparação das performances, mantendo esse interesse inicial durante os quatro dias do curso e durante os dias em que realizamos as três apresentações performáticas, como parte da celebração da troca e colheita das sementes. O interesse foi, de modo geral, maior durante as oficinas do que para as apresentações em si.

As histórias de tradição Umutina – Origem dos Alimentos e Origem dos Povos – foram as fontes principais para metodologia de criação. Em razão do menor número de participantes, houve mais tempo para atenção individual, para atividades de aquecimento lúdico e corporal, estudo dos áudios de pesquisa e leitura de histórias tradicionais, por meio do material impresso para as oficinas. A apresentação do material corporal, por exemplo, foi recebido com muita atenção e seguido de um comportamento que entendi como dispersão criativa.

A dispersão criativa foi um modo de ocupar o espaço da oficina, por sua ampliação. A sinalização de uma necessidade foi sempre desnecessária, os participantes se mostraram independentes da minha opinião em muitas ocasiões, por exemplo, para decidir quem se pintaria com jenipapo ou não. Ajustei a metodologia visando a atender a essas faixas etárias tão distintas (6 a 17 anos) e ao fluxo de entrada e saída dos participantes, que não tem nenhuma correspondência com o que eu conhecia como disciplina, mas que, entretanto, pude administrar a tempo como uma possível forma de disciplina.

A primeira apresentação foi chamada “À margem” ou “A origem dos alimentos”, como o professor Umutina da escola municipal da aldeia, Márcio Monzilar, intitula o mito. [5] A segunda foi apresentada na quadra então organizada para a Cerimônia de Abertura; a “Intervenção” ou “Dança” foi criada a partir das experiências de atividades de dança de interesse dos participantes – dança pop, tradicional e, para minha surpresa, indiana/bollywood – e a partir das atividades propostas de Coreologia [6]. A terceira foi apresentada à Figueira, majestosa árvore da aldeia, tão relevante para o mito da Origem dos Povos, da tradição Umutina. Os participantes se mostraram altamente interessados pela linguagem artística de direção de movimento. Posso considerá-las apresentações de teatro-dança, porque os arquétipos encenados, embora trazidos para uma temporalidade de interesse dos participantes, comunicavam ainda um antepassado, distante da realidade da tecnologia da internet ou dos tratores, com a qual convivem. As histórias tradicionais Umutina selecionadas para pesquisa e outras histórias tradicionais narradas pelas crianças e jovens foram pontos de partida para as representações criadas.

 

O silêncio no trabalho de criação artística na aldeia Umutina

Rancière chama a atenção para a dificuldade em realizar montagens políticas com imagens de realidades intoleráveis; chama a atenção para o jogo estabelecido de denúncia e culpa que já foi incorporado pela economia mundial, e a dinâmica claramente simbolizada pelo mercado da arte. O autor argumenta: O simples fato de olhar as imagens que denunciam a realidade de um sistema já se mostra como cumplicidade nesse sistema” e, com exemplos como o filme de Guy Debord, convida a pensar soluções para criações que não se calem diante de uma atualidade que captura toda e qualquer operação, mesmo que a princípio esta operação seja de oposição às práticas destrutivas da economia e da política vigentes. Tudo é organizado em torno do capital. Rancière pergunta: não seria necessário opor-se à mentira do espetáculo? (RANCIÈRE, 2012: 84-86) Na aldeia, tive meus pensamentos intoxicados pela atualidade político-econômica brasileira, considerando todo e qualquer movimento justaposto ao passado intolerável de massacre indígena, que persiste hoje. (PEETERS, 2004: 67) Certamente, prefiro opor-me à dificuldade de movimentação ou de ação que a intoxicação prevê; mas quais são as imagens possíveis, o que representam, o quê produzir, como produzir?

O trabalho na aldeia Umutina foi uma das decisões mais problemáticas que tomei como artista independente. Não que recorde de algum trabalho realizado em plena harmonia com os ideais políticos que permaneço investigando e moldando. No entanto, como artista, percebo a duplicidade que já estava presente no uso militante da imagem intolerável, a qual Rancière se refere. (RANCIÈRE, 2012: p. 84) Há ainda a dificuldade de ser parte da geração latina que começa a regurgitar a postura decolonial e encontrar o capim alto, que toda ação inicial capina.

Os jovens com os quais colaborei não pareciam vulneráveis ou vitimizados em contato com a presença empresarial. Em oposição à representação ficcional do arquétipo indígena, me deparei com jovens proativos, entusiasmados, de acordo com a sua idade. Alguns deles perguntavam sobre a minha profissão, interessados, investigando possíveis futuros. Muitos jovens adultos da aldeia Umutina já completaram cursos de pós-graduação. Walter Mignolo afirma que a colonialidade não necessita do colonialismo: “la colonialidad se refiere a una estrutura compleja de gestión e control”. (MIGNOLO, 2012: 37) A postura decolonial, em um trabalho que serve ao modelo comercial mainstream, corre o grande risco de ser, já de início, incoerente ou, ainda, de vir a tornar-se facilmente moldada pelas estratégias comerciais. Como manter uma postura decolonial em relação ao direito de diversidade identitária e em relação aos grupos sociais classicamente reconhecidos como alvo do sistema econômico, como o grupo indígena? Há uma alternativa ao desenvolvimento desbravador, destruidor, poluidor, senão a o seu oposto total, a oposição total ao modelo político-econômico corrente? 

Enquanto planejo e escrevo este texto, visito a exposição de Meschac Gaba “Museum of Contemporary African Art”, na Tate Modern, em Londres, nos dias 28 e 29 de agosto de 2013. A expo é uma apresentação da figura africana diversa da que vemos em documentários etnográficos que exibem o aspecto tribal, uma das perspectivas de entendimento, entre várias, do corpo e dos rituais africanos. Entretanto, a expo de Gaba é simultaneamente fisgada pela isca da indústria quando se posiciona no espaço da instituição Tate Modern, apesar da tentativa de escapar do “epistémico que regula también las esferas de género y la sexualidad, de la classificación racial, del conocimiento y también de la estética”. (IBID., p. 37) Meschac Gaba participa da estrutura de inserção que o artista, para ser reconhecido em vida, deverá cumprir. Ele questiona a existência e a função do museu e a relação que com ele estabelecemos (GREENBERG, p. 1 [7]); ele cria uma escala de tensões táticas: seu uso de material e de espaço apresenta a ideia da experiência comum que unifica a diversidade, que Mignolo define como sendo a própria colonialidade. (MIGNOLO, 2012: 39) Entretanto, Gaba subverte esse projeto de colonialidade: organiza num cercado de madeira (que reproduz o espaço de um cômodo ou talvez de uma casa africana) vários objetos, pequenos totens de diversas religiões. Assim, desautoriza a tentativa iluminista de catalogar o mundo, porque certamente, ali, não estavam todos os objetos representativos dos infinitos sagrados universais. Os objetos catalogados por Gaba são tão aleatórios, em sua própria unidade, que desmerecem a noção de acumulação e captura da diferença, mesmo que sua intenção tenha sido incorporar “hierarquias de valores, exclusões, territórios do ‘eu’ governados por regras”. (CLIFFORD, 2011: 150) Toda apresentação de material produzido durante um percurso criativo é uma espécie de catalogar. Essa tentativa é sempre falha, há sempre uma tartaruga sagrada do arquipélago de Fiji em falta. Que tipo de disposição ética do outro é possível? É necessária?

Ainda caminhando pelos arredores do Southbank Centre, tentando administrar as temporalidades justapostas da recente experiência Umutina e a visita à cidade inglesa que me faz imaginar artista, percebo os anúncios para a primeira exposição em instituição pública (Hayward Gallery) da artista Ana Mendieta, orfã cubana criada nos EUA, morta aos 36 anos. Mendieta certamente inicia os trabalhos do discurso decolonial “conectando sensibilidades e políticas de personas fuera del radio de Europa Ocidental y de Estados Unidos”, embora tenha crescido nos EUA. Seu trabalho, ao contrário do de seu marido, e talvez assassino, o artista minimalista Carl Andre, foi negligenciado por ser desobediente à ordem kantiana do belo, que Mignolo revela racista. (MIGNOLO, 2012: 40) O trabalho de Mendieta registrou momentos de experimentação; seu trabalho nunca veio a ser, estava sempre sendo. Suas fotografias em sua maioria autoproduzidas – nua dentro da água, coberta de terra, encaixada em uma silhueta na terra, coberta por um lençol em lugar-nenhum – foram fotografias de dança, fotografias de processo, de momentos de assimilação. Confirmo o potencial do modelo comercial corrente de incorporação das operações oponentes: Ana Mendieta é iniciada no esquema: depois de uma longa trajetória de marginalização, sua exposição será realizada em uma das mais importantes galerias de arte do mundo. Ainda assim, Mendieta remanesce em silêncio, um silêncio desobediente e audível. Como é possível falar tão alto sem abrir a boca?

O trabalho de documentação produzido por meio do trabalho com movimentação na aldeia Umutina poderia ser exposto de acordo com protocolos formalistas acentuando o tráfego que Clifford estabelece entre a zona de conhecimento do mercado da arte e a história. (CLIFFORD, 2011: 156-157) Afirmo a problemática da documentação, que, tanto como a dança, o texto e a fala, é manifestação performática e, portanto, problemática como produção contrária à atitude colonial; Walter Mignolo, em texto sobre o trabalho de Fred Wilson e suas justaposições de objetos no espaço do museu, afirma: “A opção decolonial desloca o ‘espetáculo’ e a ‘performance‘ das exposições e instalações de museu e torna visível o que todo ‘espetáculo’ e ‘performance‘ escondem: colonialidade, portanto, o lado obscuro da modernidade, da qual o museu é a instituição soberana” (MIGNOLO, 2011, p. 388). Que material é esse que do campo atravessa meu território aqui, meu território posterior? É relevante? É através do meu corpo que posso assegurar uma tradução coerente das experiências de familiaridade e diversidade, reproduzindo e desdobrando “algumas produções atuais de povos do Terceiro Mundo”, que “estilhaçaram por completo o estigma da inautenticidade comercial moderna”. (CLIFFORD, 2011: 158)

 

Grupo de jovens na Aldeia Umutina Balatiponé, Oficina de Criação, ensaio de A Origem dos Alimentos, julho de 2013. Fotografia de Thiago Edel

 

Nathália Mello, Abscene: a young female from the Tupinimós tribe, from Water Which Hides Itself, says “I do” today, Londres, Inglaterra. Setembro de 2010. Fotografia de Hrafnhildur Benediksdóttir

 

Reencontro a trajetória que me leva à Aldeia Umutina; ao perceber a “herida colonial” e por “optar por la decolonialidad” racionalmente, como brasileira, nascida e criada em uma Baixada Fluminense, testemunha de seus últimos momentos de ruralidade, com sangue indígena, tanto operária quanto artista independente, posso garantir que a opção decolonial não é só um nome ou título de discurso. (MIGNOLO, 2012: p. 43) Mignolo exemplifica a decisão da arte de Calibán de deixar de ser somente um objeto de exaltação do clássico apelo ao natural para ser um “objeto que de repente adquiere voz, la capacidad de sufrir”. (IBID., p. 62-63) O decolonial está nos registros e apresentações do ainda incompleto ou ainda em formação. O decolonial compreende o esquecimento que a história sempre ficcional não recupera daquilo que não pudemos registrar.

James Clifford demonstrou que, no princípio, as definições de trabalho de campo estabeleceram ligações com a terra, relacionando o campo com as diversas disciplinas, como a antropologia e a geologia; além disso, viu a relação entre a terra e seus predicados, terreno, território. Notou a possibilidade de observar detalhadamente as “condições sine qua non” no campo. Clifford lembra do campo como espaço para o “circunscripto, empírico e interactivo”. (CLIFFORD, 1977: 71-72)

Na aldeia Umutina, percebi as cores da terra, as cores da pele, as variações de simbologias, como entre variações de linguagem e pinturas corporais. Percebi que o canto lá é harmônico, a voz se insere ad infinitum no percurso de uma outra voz. Uma menina da cidade, casada com um rapaz descendente Umutina, pintou meus braços usando uma caneta esferográfica, para rascunhar os traços da pintura do peixe Cachara e a pintura de mulher casada. Depois, então, preencheu a parte interior dos territórios delimitados pela tinta de caneta com o suco de jenipapo. Tive curiosidade ao perceber jovens de ambos os sexos de cabelos coloridos, jeans colado, maquiagem e sobrancelha fininha, se organizando e se expressando, sem problemas com os mais velhos. Atravessei muitas vezes o Rio Uruguai e acho que aprendi a guiar o barco. Tive dificuldades em falar, perguntar. A atividade de direção de movimento na aldeia Umutina foi introduzida a partir da atividade de assimilação dos planos corporais inspirados na Coreologia e das qualidades que Rudolph Laban pesquisou e categorizou, por exemplo, “escorregar”, “saltar”, “cortar”, “interromper”. O trabalho corporal era então perpassado pelas narrativas tradicionais e pela demonstração de danças tradicionais que todos os jovens sabem de coração. Mapeamos, então, o que as qualidades ali demonstradas, como “arrastar” (os pés no chão) comunicava. Para Juliano, arrastar o pé comunica “preparar” (para a caça); Gabriel não soube dizer. “Atacar” (com as mãos batendo no peito e com som) em adição ao movimento de “ressalto”, para utilizar as qualidades em Laban, para o jovem Itamar é qualidade fundamental na recepção tradicional Umutina, muito agressiva, razão pela qual em muitas ocasiões homens foram assassinados pela sua maneira de dizer “olá”. Pesquisando a movimentação chegamos ao material para apresentação. Nesta aldeia, as compras da cidade de produtos empacotados geram um lixo que não tem nem fim ou finalidade. Percebi como a terra participa como elemento dramático nas performances tradicionais, testemunhei o funknejo, a paixão da jovem Camila Amaju pela dança indiana, testemunhei como se performa o “fogo de palha”, na realidade, a fogueira de palha de coqueiro precisa ser constantemente alimentada. Eu estava lá para trabalhar nas oficinas de criação para produção de material performático e realizei minha tarefa; mas o campo é todo o contexto, um território de observações infinitas e o desejo de registrar e refletir é para não deixar aquele momento de formação se desmanchar.

Na aldeia eu só consegui, perceber, perguntar, duvidar, notar e anotar. Tive dificuldade em compreender, capturar. Resolvi não fotografar desta vez. Experimentei grande incômodo em relação à maneira como os colegas ou visitantes documentavam suas percepções, dúvidas, anotações. Ajustei o foco da minha especialidade: como recuperar certas tradições corporais – nesse contexto, simultaneamente orais –, utilizando exercícios e aquecimentos criativos que estimulassem jovens tão antenados (vídeos de youtube, facebook, e-mails, etc.). Minha intuição era exteriorizar somente o estritamente necessário àquela situação e exercitei um olhar que em si já estava comprometido. A profissão de educador na aldeia se confunde com um passado esquematizador cristão dispensável.

 

Esse trabalho poético de tradução está no cerne de toda aprendizagem. Está no cerne da prática emancipadora do mestre ignorante. O que este ignora é a distância embrutecedora, a distância transformada em abismo radical que só um especialista pode “preencher”. A distância não é um mal por abolir, é a condição normal de toda comunicação. (RANCIÈRE, 2012: 15)

 

A atividade artística é geralmente desdobrada durante um percurso que cria sua própria lógica, fortemente influenciada pelos fatores relacionais envolvidos: colaboradores, objetos e materiais. É a partir de sua própria lógica que o processo artístico encontra seu objetivo. A aprendizagem, portanto, se forma pelo reconhecimento de ignorâncias, distâncias e das respectivas transformações ou manutenção destas. Neste trabalho específico na aldeia Umutina, percebi que a apresentação dos objetivos encontrados em colaboração foi a parte menos relevante do processo. De alguma maneira, a representação do que acontece durante o processo é insuficiente. Neste caso, ela também estabeleceu um contrato íntimo entre colaboradores de só contar o suficiente, de não entregar gratuitamente uma expressão milenar para quem pode se apropriar dela sem autoridade para tal. Intuitivamente, percebo que a “expressão milenar” à qual tento dar um nome é indizível, não traduzível, mesmo atemporal, talvez porque transmitida por modos de assimilar que já não conhecemos. A ideia de mistério aí contida, ficcional, é um modo de assimilar o que só se pode ignorar. De modo irresponsável, divulgou-se, apropriou-se da tradição indígena, representando-a sem nome. O corpo indígena é “objeto de palavra sem ter palavra”. (IBID., p. 94) Há histórias que interessam às instituições que se responsabilizam pelos grupos indígenas, ou melhor, que se interessam pelas terras indígenas. São histórias que não necessariamente correspondem à realidade dos grupos.

A profundidade, extensão e interatividade da investigação no campo (CLIFFORD, 1977 : 73) é o que disponibiliza fonte para produção de material artístico. Mas que tipo de material é possível reproduzir? Como utilizar o material produzido? Posso justificar que a documentação realizada para relatório das atividades e apresentações que induzi são minhas também? Posso me apropriar da tradição? Como posso me relacionar sem usurpar material do campo? Na escrita crítica, encontro o testemunho póstumo como possibilidade menos incoerente possível; “pero en todos los casos, el trabajo de campo antropológico ha exigido que uno haga algo más que atravesar el lugar”. (IBID., p.79) Finalmente, percebo: o trabalho de campo não pode ser o de cavar objetos milenares e trazê-los a um lugar outro de exposição e congelamento; o trabalho de campo não pode ser o de capturar objetos imateriais de observação e traduzi-los, com a intenção de torná-los compreensíveis em vitrines de observação.

Para evitar “problemas de extrañamiento, privilegio, malentendidos, uso de estereotipos y negociación política del encuentro”, objeto de observação ou de relação só poderá estabelecer traduções e possíveis comunicações a partir da abertura: a pesquisadora deve permitir que o campo também a atravesse. (IBID., p.103) O trabalho começa e se efetiva no campo. A narrativa posterior ao trabalho de campo, por meio da dança, do texto, da fala, deverá evitar as manifestações instantâneas como vídeo, fotografia ou gravação de voz. O elemento de mistério percebido e compartilhado no processo é o principal objeto a perceber e traduzir: o mistério da relação de justaposição de temporalidades, desvelado pela crítica. Os jovens com quem trabalhei investiram maior energia corporal, criativa e produtiva durante as oficinas e menor esforço em apresentar seus efeitos. Devo considerar: nada é tão relevante quanto a atividade artística que ocorreu lá na terra indígena.

Considero que a atividade artística incitada pela experiência do campo deverá começar no trabalho de campo, alternando regras de percepção. “O trabalho deverá ser iniciado com as pessoas do local interessadas, seguindo a lógica de que o papel atribuído ao mestre é eliminar a distância entre o seu saber e a ignorância do ignorante.” (RANCIÈRE, 2012: 13) Deste modo, a artista estará se deslocando entre um posicionamento primordialmente colonial – porque pertencente a uma formação ocidental, acadêmica, hierárquica – e um posicionamento decolonial que dialoga com a ignorância como um outro saber. A atividade artística, portanto, prevê que o colaborador local, no campo, veja e exerça suas percepções de familiaridade ou diversidade em relação ao viajante. A atividade, consequentemente, também permite que o proponente, o elemento exterior ao campo, realize suas próprias anotações. Todo objeto trazido do campo para exposição e análise, análogo da memória, representa um perigo: o risco de representar menos suas próprias contaminações e majoritariamente a relação de usurpação, seja o objeto um texto, uma dança, uma fotografia ou um artefato. O objeto poderá ser trazido, mas a relação iniciada estabelecerá um diálogo crítico, no qual o artista é espectador e artista, assim como o espectador é também espectador e artista. Pondero se não é este tipo de diálogo que Homi K. Bhabha acentua como elemento de sobrevivência da arte:

 

A iminência da arte como atividade de posicionar o leitor ou espectador no lugar do surgimento do significado ou da percepção de uma obra, cuja revelação está de algum modo além de si mesma, sempre prestes a acontecer, mas sem nunca ter cessado de acontecer. (BHABHA, 2012: 24)

 

A sobrevivência da arte neste contexto escapa aos limites da bienal, sobre a qual Bhabha reflete. Aqui, a sobrevivência se refere à formação de uma linguagem artística a céu aberto, que é decolonial e dependente do relacionamento entre as diferentes partes, um relacionamento interdisciplinar, intersulamericano, desobediente. Um relacionamento que não poderá utilizar referências do projeto de museificação, acumulação de conhecimento ou riqueza (MIGNOLO, 2011: 374), porque é sobre a decolonialidade sul-americana e sua função de “revelar o que esteve escondido em histórias coloniais de escravidão” por meio de trabalhar um outro estado de pensamento. Como Mignolo revela, a opção decolonial não deseja ser totalitária, não é uma opção única, mas uma opção urgente. (IBID., p. 382-388) O diálogo, durante um processo de colaboração em campo, é uma opção – decolonial – de apresentação artística que é possível no contexto da arte-educação e parece muito necessária como modo operante de formação de uma linguagem desconhecida e que talvez permaneça assim por algum tempo.

Canclini ressalta o fato de que quase toda arte “supõe (…) a criação de uma linguagem convencional compartilhada, o treinamento de especialistas e espectadores no uso dessa linguagem e criação”. (CANCLINI, 1998: 38) O silêncio que me abateu durante o campo e o desejo de calar, anotar menos, não fotografar, perceber o essencial, pode diagnosticar uma maneira de performar o decolonial. O comportamento menos entusiasmado está apresentando uma dissincronia entre papéis sociais. Se o público-produtor (alunos, colaboradores) pode perceber tal desperformance, garante-se um passo decolonial. A compreensão do decolonial é em si uma opção pela performance, pela ação que se faz, se forma de modo contínuo. “O modo como os objetos são usados no cotidiano implica um conjunto de suposições quase autoritárias sobre o mundo.” (BAUDRILLARD, 1968: 61) Uma pista sobre essa opção decolonial é rever interpretações ocidentais sobre relacionamentos entre as microssociedades e seus objetos funcionais, mitológicos ou artísticos. Intuitivamente, considero o caminho do silêncio de Ana Mendieta, que se organiza como em uma canção indígena Umutina, harmonicamente – a voz que se insere no percurso de uma outra, ad infinitum.

 

Notas

[1] Considerando o entendimento de ‘emancipação’ por Jacques Rancière: “A emancipação, por sua vez, começa quando se questiona a oposição entre olhar e agir, quando se compreende que as evidências que assim estruturam as relações do dizer e do fazer pertencem à estrutura da dominação e da sujeição. Começa quando se compreende que olhar é também uma ação que confirma ou transforma essa distribuição de posições. O espectador também age, tal como o aluno ou o intelectual.” (RANCIÈRE, 2012: 17)

[2] Verso do hino do município de Barra do Bugres registrado no website da prefeitura.

[3] Ver em: <http://pt.wikipedia.org/wiki/Bugre>.

[4] Antônio João de Jesus: autor do texto “A Linha do Tempo, do Tempo Umutina”, divulgado na internet. Fonte retida em 3 de setembro de 2013: <http://www.overmundo.com.br/overblog/a-linha-do-tempo-do-tempo-umutina>.

[5] O professor Márcio Monzilar, da TI Umutina, contou a história (aqui transcrita como resumo, documentada em gravação de áudio): “antigamente, uma índia sem filhos agradou-se de um lambari muito bonitinho no rio e o levou para sua casa. Lá enrolou o lambari em uma esteira e saiu. Quando voltou o lambari tinha virado guri. O pai não dava atenção ao guri enquanto iam caçar; o guri, então, pediu para ser enterrado pela mãe. Desta terra muitos dos alimentos da aldeia, que hoje conhecemos, surgiram.”

[6] Coreologia é a metodologia de trabalho corporal desenvolvida por Rudolph Laban.

[7] Kerryn Greenberg assina o texto do programa distribuído na entrada da exposição de Meschac Gaba.

 

Bibliografia

BAUDRILLARD, Jean. The system of objects. Londres: Radical Thinkers, 1968. 

BHABHA, Hommi. Arte e iminência. 30ª Bienal de São Paulo: a iminência das poéticas. São Paulo: Bienal de São Paulo, 2012.

CANCLINI, Néstor García. Das utopias ao mercado. In: Culturas híbridas; estratégias para entrar e sair da modernidade. Trad. Ana Regina Lessa e Heloísa Pezza Cintrão. São Paulo: EDUSP, 1998.

CLIFFORD, James. Itinerarios transculturales. Barcelona: Editorial Gedisa, 1977. 

______. Colecionando arte e cultura. In: Gênero, cultura visual e performance. Braga: Edições Humus, 2011.

IRANTXE. Origem dos alimentos. In: SILVEIRA, Ema Maria; BRÜSKE, Joemir Alfredo (Org.). Manoki – Histórias sagradas. Curitiba: Cravari Geração de Energia, 2011.

MIGNOLO, Walter; GÓMEZ, Pedro Pablo. Estéticas y opción decolonial. Bogotá: Ediatorial UD, 2012. 

MIGNOLO, Walter. Museums in the Colonial Horizon of Modernity: Fred Wilson’s “Mining the Museum”. In: GLOBUS, Doro (Ed.). Fred Wilson: A Critical Reader. Londres: Ridinghouse, 2011

PEETERS, Jeroen. Bodies as Filters. Maasmechelen Cultural Centre, 2004.

RANCIÈRE, Jacques. O espectador emancipado. São Paulo: Martins Fontes, 2012.

 

 

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