Malograr Como Tentativa

 

Texto escrito e lido no Seminário Criadores Sobre Outras Obras (CsO), na Faculdade de Belas Artes de Lisboa, em março de 2013.

 

Vitor Butkus, Livro de artista
20,7 x 14,6 cm
Papel telado 180g (capa) e sulfite 120g (miolo)
12f.

 

Malogramos sempre ao falar do que amamos é um trabalho do artista brasileiro Vitor Butkus. Obra em processo apresentada em três momentos: primeiro, foi uma performance (2010), que consistiu na cópia manual dos últimos textos escritos e, por vezes, inacabados de escritores, filósofos e artistas.

Ainda, em 2010, ‘Malogramos’ foi uma intervenção no pátio do Hospital Psiquiátrico São Pedro da cidade de Porto Alegre. Nove páginas datilografadas, emolduradas e afixadas no local, onde cada uma era a última daqueles últimos textos transcritos anteriormente. A intervenção permanece nas paredes do hospital e, assim como os musgos e mofos, começa a se mesclar ao cenário de ruína e à carga histórica do lugar.

Num terceiro momento, ‘Malogramos’ tornou-se uma publicação artesanal, onde a cada página encontramos datilografada a última palavra escrita por Clarice Lispector, Caio Fernando Abreu, Friedrich Nietzsche, Italo Calvino, Gustave Flaubert, Andy Warhol, Walter Benjamin, entre outros.

 

Esboço da performance Malogramos sempre ao falar do que amamos de Vitor Butkus

 

Malograr é

Perder, inutilizar. Frustrar-se, não vingar, 
desaparecer prematuramente. Falhar.

Para que uma perda, uma falha aconteça, inevitável uma tentativa.

Portanto, este texto será feito de tentativas.

 

Primeira tentativa:

Este texto é uma espécie de reescrita. Neste texto, a reescrita de algo é entendida como criação. Ao reescrever, criamos um novo lugar, porque apostamos na potência da arte de abertura para novos sentidos. Reinvento um modo agora, nesta apresentação, porque Vitor também o fez ao tentar falar do (dos) que amava.

 

Segunda tentativa:

Há mais de dois anos que acompanho o processo Vitor Butkus (nascido em 1983, Porto Alegre, Brasil). Esta aproximação se deu por duas vias: primeiro, por uma identificação, entendida por Barthes (2005), não como uma comparação, mas como um imaginário desejante, que se vê identificado com uma prática, ou seja, interessei-me por seu trabalho, pelo seu jeito de fazê-lo e pelo pensamento que o compõe. A segunda aproximação deu-se pelo convívio: acompanhamo-nos nos nossos percursos poéticos.

Butkus parte do último texto de Roland Barthes deixado em sua máquina de escrever em 1980. Este título de Barthes “malogramos sempre ao falar do que amamos” foi adotado por Vitor para falar do paradoxo existente no gesto de deixar um texto como registro que é, ao mesmo tempo, atestado de obra, de vida, e, ao ser interrompido, também de morte. Butkus propõe uma concomitância entre ele, criador e os criadores que ele ama e que com quem supostamente não divide o tempo presente. Ao reescrever, datilografar, emoldurar, seus últimos textos, ele está também os escutando silenciosamente. Escuta, mas também os faz falar uma vez mais, lhes dá uma nova atenção, e, assim, um novo lugar através da sua reescrita.

 

Terceira tentativa

Este texto, disparado pela obra de Butkus, parte de registros oferecidos por ele, das leituras dos autores que ele escolhe para reescrever, de textos que Butkus escreve sobre seu processo, conversas por e-mails e, também, da minha experiência enquanto artista que, também, opera poeticamente partindo de um desejo provocado pelo encontro com traços de vida e obras de outros autores/artistas.

Sou influenciada pela obra de Butkus e Butkus é influenciado por textos de autores da sua prateleira. Sobre a ideia de influência, Barthes (1975) diz o seguinte:

 

O objeto indutor não é (…) o autor de que falo, mas antes aquilo que ele me leva a dizer dele; eu me influencio a mim mesmo com sua permissão: o que digo dele me obriga a pensá-lo de mim (…) os autores que a gente lê; mas estes, o que é que me vem deles? Uma espécie de música, uma sonoridade pensativa. (pág. 115)

 

Quarta tentativa

Que sonoridade é esta que vem deste projeto de Butkus?

Nesta quarta tentativa, busco clarear minha escolha por este projeto. Não explicá-la mas dar a ver o funcionamento deste tipo de escolha, porque isso tem a ver com a metodologia deste texto, que, por acaso, assemelha-se a metodologia do artista Butkus ao desenvolver o seu ‘Malogramos’.

Tomarei o último texto de Barthes (2005) onde ele descreve o amor de Stendhal pela Itália, sendo este compreendido como um objeto de transferência:

 

(…) o que caracteriza a transferência é sua gratuidade: instaura-se sem razão aparente. (…) o sintoma, isto é, a coisa que entrega e mascara ao mesmo tempo o irracional da paixão (…) os sinais de uma verdadeira paixão são sempre um pouco incongruentes. (pág. 371)

 

Butkus escolhe os autores que terão seus últimos textos reescritos por ele em sua performance, mas como se deu essa escolha?

 

o projeto nasceu (e é apresentado assim) como um ato (…). da ação, da indicação com o dedo indicador. apontando pra morte, pro malogro de cada instante, pra perda de si.

esse primeiro impulso fala de morte. ele é rock.

um segundo impulso, bolero: daí fui buscar últimos textos, alguns eu já tinha na minha frente, como o do Barthes, os outros fui buscando na minha estante. sem critério determinado. mas meu universo restrito me fez encontrar com esses (…) alguma coisa aconteceu no depois (…) fui percebendo uma constelação afetiva entre esses escolhidos. Os escolhidos que me escolheram, porque a escolha deles a princípio tinha sido o tamanho do meu braço (…). É algo da ordem de uma paixão, que não sabe muito bem por quê. (Butkus, 2013)

 

E por que eu escolho Butkus e seu ‘Malogramos’ para andar ao lado, escrever, em tentativas de fazer inscrever uma possível crítica? É algo da ordem de uma paixão, que não sabe muito bem por quê, digo.

Chegar a esta conclusão acerca da paixão envolta na criação deveria ter sido a primeira tentativa deste texto, ou a última.

 

Quinta tentativa

Este é um texto que busca se conectar com uma ideia de história que vai ao encontro do que Butkus (2010) diz: “A rememoração tem esse teor de conflagração temporal: o de retomar, de um passado, os seus enigmas, e restituí-los de um futuro” (pág. 19), sendo assim, as aproximações com elementos, objetos, textos, registros, documentos, imagens, relacionados ao projeto ‘Malogramos’ partem de uma transferência e (por isso) deseja inventar possíveis futuros (neste caso, através desta escrita e leitura). Os elementos que encontro e que me instigam no projeto deste artista são, um tanto, enigmáticos e abrem-se para inúmeras formas de dizê-lo.

E me deparo, na criação de Butkus, com uma busca semelhante, onde os acasos encontrados em sua estante (onde seu braço alcança) determinam um possível disparador de percurso.

 

Sexta tentativa

Malogramos sempre ao falar do que amamos é uma obra em processo sobre criar apesar de malograr. Talvez, sobre criar justo porque malogramos. Aqui falo sobre as singulares estratégias artísticas de Butkus para deixar registrado encontros que acontecem entre ele e textos últimos de escritores (e que também são atestados do fracasso: tudo que vive vai um dia morrer).

Todas estas tentativas são costuradas pelo exercício que ele inventa de fazer coexistir autor, artista, último texto do autor, texto (novo?) do artista ;

Exercício de fazer coexistir:

a) uma morte e uma vida;

b) a impossibilidade da obra de seguir (em decorrência da morte real de seu autor) e a aposta num futuro desdobrado, ensaiado, provocado.

 

Sétima tentativa

Há nesta obra de Butkus uma possível ideia de concomitância de tempos:

a) o tempo (passado, vivido) de cada um dos escritores que escreviam seu último texto, talvez sem saber disto;

b) o tempo da morte de cada um destes autores, que é atestada pela fatalidade de nos depararmos com a finitude de seus escritos justo porque estamos diante do invariavelmente último dos seus textos;

c) o tempo do artista vivo que se coloca num lugar de leitor-escritor, disparando uma literalidade acerca da não-autoria do autor, já que ao reescrever estes textos e dar a eles outras organizações, outros suportes, Butkus está a reinventá-los, tirá-los dos seus estatutos de obras fechadas;

d) o tempo que reúne autores distantes ou próximos, geográfica, temporal, de áreas distintas ou não, autores reunidos pelo intercessor da morte (este que também nos agrupa a eles), mas também da obra, no caso a de Butkus que o reúne. Autores reunidos por um denominador comum: a biblioteca do artista Butkus, que ao buscar o que de “último” texto haveria em sua estante, também descobre uma “constelação afetiva entre esses escolhidos” (Butkus, 2013). E assim acaba por falar de si também,

 

(…) descobri alguma coisa lendo de novo esses autores, nessa situação muito especial de dizer sua morte. Era como um autorretrato que eu fazia de mim mesmo, da biblioteca que me formou.

 

Penúltima tentativa

Há uma vida ainda viva que convive com a obra ao refazê-la.

Há um corpo que cansa e que se estafa, há um corpo que se experimenta em um limite ao colocar-se a reescrever tais textos. Este limite é também o da tentativa de fazer viver o que amamos. Diz Barthes: “toda sensação, se lhe quisermos respeitar a vivacidade e a acuidade, induz à afasia” (Barthes, 2012: 377, 378).

E Há um artista a desafiar essa afasia.

 

Vitor Butkus, Malogramos sempre ao falar do que amamos. Performance realizada no Plataforma Performance, em 2010, na Galeria de Arte do DMAE (Porto Alegre) e continuada no Trampolim, em 2011, na Galeria de Arte e Pesquisa da UFES (Vitória). Foto de Fernanda Bec

 

Esta penúltima tentativa foi provisoriamente a última.

 

Vitor Butkus, segundo desdobramento do trabalho intitulado Malogramos sempre ao falar do que amamos, 2010. Foto de Leandro Selister

 

Referências Bibliográficas

Barthes, Roland (2005). A preparação do romance I: da vida à obra. Trad. Leyla Perrone-Moisés. São Paulo: Martins Fontes.

Barthes, Roland (2012). O rumor da língua. Trad. Leyla Perrone-Moisés. São Paulo: Martins Fontes.

Barthes, Roland (1975). Roland Barthes por Roland Barthes. São Paulo: Cultrix.

Butkus, Vitor. Conversas por e-mail com Mayra Martins Redin. 2013

Butkus, Vitor (2010). Rafael França: Grafias de uma vida em obra. Trabalho de conclusão de curso apresentado ao instituto de Artes da UFRGS.

 

 

© 2013 eRevista Performatus e o autor

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