A Inelutável “Presença” do Vazio: Diálogos

 

Mayra Martins Redin, O Vazio, 2009

 

Fecha os olhos e vê [1]

 

Quase dois meses e o vazio parecia que chegara para ficar e, com isso, a página em branco perdurava. Já acreditávamos que este artigo não seria possível. Como escrever sobre aquilo que está, também, para além dos limites vocabulares? Como falar de uma obra de arte sem domá-la através da palavra? O diálogo no vazio entre Mayra Martins Redin e Yves Klein ocupava a nossa página em branco.

Olhar o vazio, sentir o vazio, pensar o vazio. O vazio atravessa todas as coisas, pois é capaz de transportar em si todas as coisas. Mas o vazio, justamente por transpassar a existência das coisas, é presença. Traz à visualidade o que não pode ser visto de nenhum outro modo. Redin e Klein dialogam nesse espaço do possível, do variável e do mutável. A composição resulta num diálogo através do tempo, e que não respeita as condicionantes da física newtoniana do espaço/tempo. Nas camadas de tempos desiguais (os vazios de Yves Klein são do início da década de 1960 e os de Mayra Martins Redin, de 2009), o vazio se atualiza – apenas no sentido de se tornar novamente presença, pois é um tema atual que concerne à existência da própria arte bem como de todos nós.

Existe, portanto, duas formas de nos relacionarmos com o vazio, como aponta Georges Didi-Huberman: por um lado, preenchendo-o, o que nada mais é que refutá-lo, encobri-lo; por outro lado, podemos penetrar na sua consistência, na sua imaterialidade duvidosa, o que é, em certa medida, desvelá-lo. [2] É dessa última forma que o vazio habita a arte, e de dentro nos espia; logo, o que vemos também nos olha, para parafrasearmos Didi-Huberman. Convidamos, então, nossos leitores a adentrar esse denso vazio a partir do diálogo proposto pela obra de Redin.

Os trabalhos de Yves Klein da série Le vide, postos em conversação por Redin, assumem uma força consciente e consistente de revelar uma abertura. Uma abertura do possível num visível impossível: saltar no vazio ou entrar em uma parede branca são ações impossíveis apenas naquela forma do visível que se limita a reproduzir a aparente realidade. [3] Na arte de Klein, o espaço entre o chão e o corpo ou entre o corpo e o muro branco são infinitos. E igualmente infinitos são os sentidos que acontecem no plano da virtualidade.

Esse conjunto de trabalhos compõem o plano mais amplo das experiências do artista em torno das zonas imateriais de sensibilidade pictórica. Klein buscava alcançar algo que estivesse além da materialidade das obras de arte em si mesmas (incluso todos os valores financeiros a elas agregados). Pouco mais de um ano depois da série Le vide, Klein vendia parcelas dessas sensibilidades pictóricas, ou seja, vendia algo que não se pode vender; vendia zonas de sensibilidade pictórica como quem vende terrenos no céu. Mas o fazia para que se acordasse nos sujeitos a percepção de uma falta; uma falta estranhamente preenchível pelo vazio. O vazio que nos olha através da obra, mas não é, nem poderia ser, a própria obra. Ir a uma galeria e ver o vazio é esteticamente pleno.

Em seu diálogo, Redin retoma aquilo que existe de fundamental na arte, ao levar Klein para passear pelas praias de Nice. São outros vazios que aí se abrem. Na rochosa praia, no céu pálido do mediterrâneo, Klein caminha não mais ao encontro da fria parede de galeria.

No romance Ao Farol, Virginia Woolf descreve o desaparecimento de uma personagem através dos elementos que permanecem. Os objetos de sua antiga proprietária que “[…] largados pelos armários – um par de sapatos, um boné de caça, saias desbotadas e casacos – conservam a forma humana e deixam entrever no vazio como outrora estiveram ativos e plenos de vida; como outrora mãos ocuparam-se de colchetes e botões […]” [4]. A emoção origina-se em constatar o desaparecimento através daquilo que persiste em existir apesar do seu dono, apesar de seu desuso e de seu abandono. A falta não é, porém, de um corpo, mas sim da vida e de suas pulsões. Redin, ao transportar Yves Klein, não o homem, mas a sua arte, nos permite ver a forma de sua ausência; a ausência das questões plásticas e estéticas ainda tão atuais pautadas pelo artista. Essas ausências nos permitem rever o invisível que habita a obra, e pensar outros possíveis sentidos: vazios. Daí a posição de Didi-Huberman em relação a uma cisão no visível; ao acatarmos essa cisão, podemos seguir o conselho de Joyce citado por ele, que sugere fecharmos os olhos ao visível para encontrar outras experiências estéticas (imateriais, como desejava Klein). 

 

 

NOTAS

[1] JOYCE, James. Ulisses. Trad. Antônio Houaiss. Lisboa: Difel, 2009, p. 32.

[2] DIDI-HUBERMAN, Georges. Ce que nous voyons, ce que nous regarde. Paris: Éditions de Minuit, 1992.

[3] Cito aqui duas obras em particular: Le Saut dans le vide e La Salle du vide. A série completa pode ser vista em: <http://www.yveskleinarchives.org/works/works13_fr.html>. Acessado em: 15/05/2014. 

[4] WOOLF, Virginia. Ao Farol. Porto Alegre: L&PM, 2013, p. 110.

 

 

PARA CITAR ESTA PUBLICAÇÃO

MACEDO, Suianni Cordeiro. “A Inelutável ‘Presença’ do Vazio: Diálogos”. eRevista Performatus, Inhumas, ano 2, n. 10, mai. 2014. ISSN: 2316-8102.

 

Revisão ortográfica de Marcio Honorio de Godoy

Edição de Mãe Paulo

© 2014 eRevista Performatus e a autora

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