“As pessoas estavam a precisar disso!” – João Vieira e as Artes Performativas

 

Ao começar a escrever sobre João Vieira (1934-2009), não posso deixar de reparar na ironia de tentar aprisionar em letras e palavras algumas ideias sobre aquele que as procurou libertar. Muito haveria a escrever e muito foi escrito, mas é notório que uma grande parte dessas abordagens se prende com a sua relação com a poesia e com o trabalho como letrista, que (não) é. São, deste modo, as letras, aquilo que associamos mais imediatamente à obra de João Vieira, caindo na tentação de ignorarmos uma outra dimensão da sua obra, intrínseca e simbiótica às temáticas abordadas: a das matérias, das técnicas, das disciplinas, das ações, das criações, das artes.

Será na sua relação com as artes performativas que me centrarei, procurando convocar aspetos da vida e obra deste transmontano, mas afastando-me daquilo que seria um resumo de uma biografia artística para me concentrar nas obras. Um interessante documentário, justamente intitulado Pinto Quadros por Letras – João Vieira [1], apresenta-nos aspetos da vida e obra do artista, orientados pelas palavras e figura do próprio, em entrevista gravada em 2002. Parece-me oportuno referir a impressão que me causou o próprio João Vieira, tendo em conta que me centro nas artes performativas e que sou, deste modo, inerentemente convocado a intervir. Como descendente de transmontanos, reencontrei na figura do artista muito daquilo que foram as minhas experiências de menino da cidade na província, e de convivência com os seus habitantes que vieram para cidades como o Porto ou Lisboa. Reencontrei memórias e vivências na voz, na candura e nas próprias palavras de Vieira e sinto-me assim predisposto a salientar o modo como a experiência quotidiana emerge na sua obra, o que se encontra em sintonia, uma vez mais, com as artes performativas.

João Rodrigues Vieira nasceu em Vidago, Distrito de Vila Real, Província de Trás-os-Montes e Alto Douro, como se aprendeu na escola em outros tempos. Neto de lavrador, filho de professores de instrução primária, transportou para Lisboa as vivências de província, crescendo “numa casa de mulheres” [2] que era também uma escola primária. Como nos diz o próprio artista, a escola primária foi determinante para o contacto “com aquelas escritas todas” [3], e aqui é importante recordar todo o material escolar do Estado Novo em Portugal, com os seus conteúdos e grafismos particulares. Foi igualmente na escola, na sala onde era anteriormente guardada a fruta que vinha de Trás-os-Montes [4], que João Vieira teve o seu primeiro atelier.

Impulsionado por um professor a cursar arquitetura, seguiu um caminho de investigação individual, a contragosto do pai, e acabou por ser admitido na Escola Superior de Belas-Artes de Lisboa em 1951. Esteve lá dois anos, onde começou por ser muito bom aluno e depois muito mau aluno [5], desiludindo-se com o ensino académico e chegando à conclusão que lá não aprenderia nada [6]. Começaram aqui os primeiros contactos com artistas como Júlio Pomar, Lima de Freitas, Rogério Ribeiro ou Lourdes Castro, José Escada e René Bertholo. Partilhou, com os dois últimos, um atelier por cima do Café Gelo, em 1956, e integrou o ambiente do café, frequentado pelo “grupo dos pintores”, pelo “grupo dos poetas” e por pessoas ligadas ao cinema [7]. “Era uma fé na arte […] algo que não se explica muito bem” [8], que os animava a vivê-la profundamente, a reencontrar o Primeiro Modernismo, nas histórias que Raúl Leal lhes contava ou no convite feito a Almada Negreiros para colaborar na revista da faculdade.

Ouvir João Vieira falar da novidade que era a esferográfica, das suas quase mágicas possibilidades, em que as pessoas não reparam [9], e da sua relevância para o desenvolvimento de um novo processo de gravura, criado por René Bertholo, é perceber a importância do processo, da técnica e, finalmente, do gesto quotidiano, na obra deste artista que, ao longo da sua vida, desempenhou diversos trabalhos, desde os ateliers de publicidade e serigrafia à pintura de tecidos à mão para os grandes costureiros. Veremos como estes esparsos elementos biográficos irão emergir na sua obra, embora, naquele tempo, ele se desse “mais com os poetas” [10]. Pelo meio, passou uma temporada em Trás-os-Montes, onde “se confrontou com a leitura de alguns dos textos fundamentais do existencialismo” [11]. Partiu para Paris, em 1957, onde, mais tarde, os seus companheiros do Gelo se vieram juntar e onde conheceram e privaram com Vieira da Silva e Arpad Szènes. Frequentou a Académie de la Grande-Chaumière sob a orientação de Henri Goetz [12]. Recebeu, em 1959, uma bolsa da Gulbenkian, e só então começou a descobrir-se como pintor [13]. O convívio com outros artistas, como o pintor espanhol gestualista António Saura (1930-1998), e outros membros do Grupo El Paso, foi fundamental para a sua autodescoberta. Em 59-60, começaram as letras, e começou também a “idade adulta” [14], escapando assim à dicotomia entre abstração e figuração que parecia asfixiar a discussão estética portuguesa da década anterior [15]. A sua ação no Grupo KWY e na publicação da revista homónima, não pode igualmente ser ignorada. E foi assim que João Vieira começou a pintar quadros por letras, e isto aconteceu, na sua opinião, em grande medida por ter vivido numa escola até aos 21 anos e pela “mania das letras” [16] que o seu pai tinha. O convívio com os letristas franceses fê-lo perceber que o que queria mesmo era a pintura [17], e foi somente no final dos anos 60 que, através da performance e do objeto, começou a explorar novos meios de expressão.

Mas os tempos de Paris iriam terminar e, em 1962, João Vieira estava de novo em Lisboa, onde ensinou pintura na Escola de Artes Decorativas António Arroio, a primeira de diversas experiências no ensino em contexto nacional e internacional de um artista que afirmou ter igualmente herdado do pai: “uma obsessão didática: a preocupação de ensinar, de revelar, de dizer coisas, de analisar. As letras, como se costuma dizer, «são um instrumento válido de cultura»” [18].

Em 1964, uma curta estadia em Paris, marcada pela doença e pelo trabalho num atelier de construção de cenários, fê-lo partir para Londres. E foi nesta swinging London que privou com poetas e artistas portugueses como Mário Cesariny, Alberto de Lacerda, Hélder Macedo, Bartolomeu Cid, Paula Rego, Menez e João Cutileiro [19]. De regresso a Lisboa, em 1967, começou uma intensa atividade no domínio da cenografia, recebendo, em 1968, o Prémio do Círculo do Teatro Latino de Barcelona pela cenografia de D. Quixote de Carlos Avilez, e, em 1971, o Prémio Nacional de Encenação pelo trabalho na peça Quem Tem Medo de Virgínia Woolf de Jacinto Ramos. Integrou, como cenografista, a equipa da Radiotelevisão Portuguesa, onde permaneceu até 1972 e onde conviveu com nomes como Moniz Pereira e Manuel Pires. Em 1970, empreendeu visitas e investigações em Londres (BBC e ITV) e Tóquio (NCK), bem como investigações para produções televisivas relacionadas com o teatro. Partiu de novo para Londres, em 1973, onde trabalhou e investigou nas áreas das artes plásticas e do teatro [20], voltando para Portugal com o 25 de Abril de 1974.

Mas temos que recuar um pouco para perceber o começo das artes performativas em João Vieira. Fixemo-nos nesta frase “a pintura é luz […] pois é a luz que nos faz ver os objetos” [21], uma afirmação nitidamente pinturesca, embora proferida pelo artista após incursões em diversos meios e servindo de suporte à justificação do seu trabalho com acrílicos e na construção de vitrais [22]. Nesta expansão do seu trabalho para outras matérias, João Vieira trabalha as letras, ou sinais alfabéticos [23], nos quais se havia descoberto como pintor. Assumindo-se como bom desenhador e salientando a facilidade com que desenha um retrato, o artista afirma que a não incursão na pintura “com naturalidade” foi uma opção [24]. Aqui, encontramos um quase corolário da sua autodescoberta na pintura de letras. O pintor investiga e terá que se manter fiel a si mesmo. Embora incorrendo em novidades no panorama artístico português (e não só) [25], João Vieira não procura captar o público, mas antes chegar a ele e devolver-lhe a arte, abrindo-lhe as suas possibilidades.

Ao longo dos anos 60, desenvolve o seu trabalho “entre o sinal e a letra” [26], após os anos de gestação do Gelo, entre artistas e poetas, que catalisaram o quotidiano da infância e do ambiente da casa-escola. João Fernandes diz, referindo-se à obra de Vieira que “[a] letra é utilizada precisamente a partir da reivindicação de uma libertação semiótica, num exercício de transferência entre os códigos pictórico e textual” [27]. Esta consciência advém da descoberta do gesto e, com ele, da descoberta do sinal [28]. Existe assim uma “inscrição do corpo no texto através do uso das suas possibilidades gestuais” [29], corporizada no binómio gesto-corpo que tão bem suporta e justifica o seu abraçar das experiências performativas.

Os gestos do pintor, quer através da linha, das diferentes pinceladas ou da utilização da espátula, para raspar a superfície pintada e revelar a imagem interior aprisionada, estabelecem, para mim, uma curiosa relação com as palavras coevas de José-Augusto França:

 

Entre o cinema que o reproduz, a fotografia que o aprisiona e as artes do desenho que o renegam ao representá-lo, o gesto experimenta as suas chances, ao nível da imagem, quer dizer, ao nível do conhecimento exterior.

O homem que gesticula pode portanto ver como o faz, pode ver-se agindo […]. Fazendo isso, porém, o homem age, comete gestos: é actor na altura em que se julgaria espectador. Pode também acontecer que ele seja apenas actor, que recuse o papel de espectador, que renegue o conhecimento dos gestos cumpridos, para apenas se ligar aos gestos que está cumprindo. Ele assume-os então, não como uma imagem exterior, mas como a exteriorização de uma imagem interior que se confunde com ele próprio, imagem-ser ou imagem-alma, ao mesmo tempo motor e reflexo, quer dizer, expressão. [30]

 

Não demoraria muito até João Vieira ser o ator na sua arte. Em 1965, pinta Cesário Verde, com o confessadamente autobiográfico excerto do poema Nós:

 

Pinto quadros por letras, por sinais,

Tão luminosos como os do Levante,

Nas horas em que a calma é mais queimante,

Na quadra em que o verão aperta mais.

 

Além da relevância para a compreensão das suas pesquisas como pintor, a obra marca também um ponto de viragem, em que o fundo da tela se torna progressivamente mais branco, semelhante ao “branco matricial da página” [31], em que o gesto criador da letra emerge de uma forma cada vez mais evidente. Do mesmo modo, começa a surgir a figuração em algumas telas, é explorada uma deliciosa provocação do espectador através dos anagramas [32].

Em 1970, João Vieira começa um conjunto de experiências com novos materiais e linguagens. Vivia-se então a Primavera Marcelista, um período de esperançosa, mas, igualmente frustrada abertura do regime, agora que Salazar se havia afastado. Neste clima de otimismo, dá-se uma fresca e importante experiência televisiva com o programa Zip-Zip [33], em cuja primeira emissão participou justamente o modernista Almada Negreiros. Zip espelha logo no seu genérico informado pelo universo Pop, da autoria de Manuel Pires [34], este enorme desejo de novidade, frescura e provocação. Mas seria uma primavera (ou Outono) de pouca dura, com a última emissão a ir para o ar em Dezembro de 1969.

Este preâmbulo articula-se com aquilo que o artista comenta a propósito das suas “ações-espectáculos” [35], no início dos anos 70:

 

Mas foi bem aceite. As pessoas estavam a precisar. Portugal é uma terra muito triste […] naquela altura era triste e deprimente. Era uma coisa tremenda. E [com] o marcelismo, as pessoas parece que se animaram um bocadinho […] enganaram-se. […] Mas havia uma certa euforia e portanto, as coisas modernas e avançadas, as pessoas aceitavam bem [mas] não havia para ver. O facto de eu ter aparecido a fazer estas coisas foi uma grande surpresa e agradável. Eu não penso que houvesse polémica. Houve uma grande abertura. [36]

 

Fiel a si mesmo, João Vieira prossegue as suas investigações através dos novos meios, não abandonando os seus “conceitos essenciais” [37]. Embora com raízes anteriores, incluindo assemblages desde 1962 [38], os objetos que começa a criar em 1970, letras fabricadas com poliuretano rígido, pintadas a tinta de automóvel, e que “descobre no contexto de uma produção industrial de fábrica” [39] ou as letras fabricadas em espuma flexível, proporcionam-lhe o suporte para as ações que acompanham as exposições do seu trabalho. E aqui demonstra estar atento às incursões da arte nos domínios “físicos e vivenciais, da tecnologia e dos territórios não artísticos” [40]. Note-se que me afastarei aqui da terminologia (e inerente discussão) de performance ou happening [41] para me centrar precisamente na ação de João Vieira e no seu impacto no contexto português.

Na exposição O Espírito da Letra, realizada na Galeria Judite Dacruz, uma galeria “muito fina” como referiu o artista [42], um conjunto de letras de madeira, de grandes formato e que constituía a própria exposição, foram destruídas pela ação do artista e de um conjunto de crianças, numa “destruição quase neodadaísta do alfabeto” [43]. Foi atribuído ao seu “autor-inventor” [44], uma Menção Honrosa Soquil “pela originalidade da sua proposta de envolvência na exposição realizada na Galeria Judite Dacruz” [45].

É neste tempo/espaço próprio da ação que o gesto criador/destruidor se revela perante o público, se materializa no seu desdobramento espácio-temporal e convoca o outro (espectador-ator) e os outros (não artistas, artistas em potência, e porque não artistas ou arte, se nos lembrarmos do coevo Joseph Beuys e do seu contexto de escultura social) para a própria obra. Será o início de um convite declarado ao espectador para integrar a obra, para ser também o ator. Mas será este aspeto que se acentuará nas “ações-espetáculos” seguintes. À “exposição dura”, seguiu-se a “exposição mole” [46], Expansões, de 1971. João Vieira escreve a propósito desta exposição:

 

Quero dedicar esta acção-espectáculo ao pessoal da Flexipol, sem cuja compreensão seria impossível a revelação desta matéria.

Não me refiro apenas à contribuição tecnológica, mas também, sobretudo, à humana contagiante alegria de descobrir para revelar a beleza da matéria. A minha intervenção foi mínima: marquei-a com as estruturas mais significativas de que os homens se apoderaram. Assim apareceram estes pães expansivamente artísticos, esta armadilha-leito de letras, este convite à Festa e à descoberta. [47]

 

Atentemos no texto, que estaria na própria exposição, na escolha das palavras, no salientar do processo, da colaboração da Flexipol de São João da Madeira, onde foi designer de 1974 a 1975 [48], da revelação, e da descoberta. Saliente-se também o papel que o artista atribuiu a si. Expansões corporizou-se numa instalação, como lhe chamou Ernesto de Sousa em 1979 [49], que consistia no preenchimento do chão da galeria com as letras em espuma flexível, formando um terreno instável, onde o espectador não sabia como se comportar [50]. Esta “armadilha-de-letras” [51] provocou uma “festa” na inauguração da exposição e que envolveu “uma clientela” que, como explica João Vieira [52], era curiosíssima. Além dos artistas, e pessoas ligadas à arte de vanguarda como Jorge Peixinho (cuja composição música estudo 1 acompanha o registo em filme a cores de 16mm realizado por Manuel Pires que documenta a ação), Melo e Castro ou Fernando Calhau, havia um conjunto de convidados de um jantar da NATO, que, por uma coincidência, acabaram por aparecer, vestidos a rigor, pensando que se tratava de uma “exposição séria”. A interação com o solo desconhecido e instável dificultava a circulação pelo que as pessoas acabaram por se sentar e deitar no chão. Seguiu-se uma passagem de modelos organizada por Maria Gonzaga, em que as modelos profissionais vestiam as letras, provocando ainda mais interação com o público. Sobre a ação comentou Ernesto de Sousa:

 

performance com a matéria, os modelos, os plásticos e a sua, diríamos, antropo-morfização contagiante alegria: chama-se a alegria como se chama a chuva, a arte deve ser feita por todos

revelação da matéria: eu diria, contos largos dar-o-corpo ou na minha: o teu corpo, é o meu corpo / o meu corpo é o teu corpo. [53]

 

Este depoimento, de quem se deixou enredar pela “armadilha” e que levará a exposição mole a outros contextos [54], ilustra bem esta expansão do papel da letra na sua relação, por um lado, com o espaço, e, muito especialmente, com o(s) corpo(s), propondo ao espectador-ator uma interação, e permitindo-lhe manipular e combinar o alfabeto (lembremo-nos das potencialidades inerentes à utilização de letras) em gestos de libertação e de festa ou alegria, que contrastam “com os tempos de censura e de falta de liberdade de expressão que então se viviam” [55]. Maria Antónia Palla deixa-nos uma importante e divertida descrição [56] em que se percebe o caráter espontâneo da ação e do seu efeito no público, o que enfatizou a sua contribuição para o decorrer da mesma. Palla refere que a própria ação adveio da intervenção do artista na fábrica que fez com que o trabalho não fosse mais “aquela tarefa monótona de vazar líquido e obter uma placa uniforme, invariavelmente triste” [57]. Conta-nos ainda que o encenador João Lourenço disse ao artista, ao entrar, que parecia estar a entrar num dos seus quadros, e salienta que confrontado com a interrogação dos visitantes “isto ainda é pintura?” a resposta do pintor era um inequívoco “Sim” [58].
Do mesmo modo, já desde as experiências com novos materiais, mas, sobretudo, desde o contexto de produção industrial, é também através destas ações que se percebe a importância do material, e do processo de fabrico, numa prática semelhante à de muitos artistas ingleses e americanos dos anos 60 [59], relacionando-se com as reflexões da Pop Art [60], que, paralelamente ao gesto, libertado da síntese pictórica, contribuem para as múltiplas leituras permitidas, inclusivamente no campo da própria História da Arte [61].
E será, precisamente, uma reflexão sobre a História da Arte (e, neste primeiro momento, da pintura) que protagonizará um novo patamar da investigação deste artista detentor de uma “nunca proclamada, mas bem funda, cultura erudita” [62]. Falo da ação Incorpóreo I, que teve lugar na EXPO-AICA 72, na Sociedade Nacional de Belas-Artes de Lisboa. Integrada na seleção Do Vazio à Pro-vocação por Ernesto de Sousa, Incorpóreo é, nas suas palavras, “a mais bela e das primeiras performances autênticas e puras e não só em Portugal: deu-nos o corpo de Maria…” [63]. O nome da ação provoca especial deleite [64] quando percebemos que esta consistiu no encerrar do corpo nu de Maria Gonzaga num sarcófago de plástico dourado. Foi precisamente a propósito desta ação que João Vieira afirmou que se sentiu que “as pessoas estavam a precisar disso” [65], o que explica que a ação não foi propriamente polémica, mas, antes, escandalosa. Foi, de qualquer forma, revolucionária [66]. Segundo o artista, o sarcófago, nova letra [67], feito à medida da performer, estaria relacionado com os filósofos estoicos, mas simultaneamente, com algumas das suas “obsessões pessoais”, a Vénus, e o seu ideal de beleza, e a obra O Nascimento de Vénus de Sandro Botticelli, podendo Incorpóreo representar o “enterro de Vénus, mas também o renascimento” [68]. Na preparação da ação, que se encontra documentada por Manuel Pires em filme a cores de 16 mm, acompanhada pela música harmónicos de Jorge Peixinho, era de tal maneira patente a novidade e as possíveis reações, que houve muita dificuldade em encontrar alguém disposto a ser a performer, pelo que foi pedido a Maria Gonzaga que, na altura, nem percebeu o porquê de tanto nervosismo [69].
A performer passeava-se por entre o público da exposição, como se fosse um qualquer espectador, até ao momento em que o artista lhe desapertou o vestido caicai e o seu corpo se revelou. O público foi completamente apanhado de surpresa. Maria subiu então para o sarcófago, que flutuava num pequeno lago artificial manchado por diversos pigmentos, sendo então encerrado. O público, espantado, irrompeu em salvas de palmas e, por entre o nervosismo, indagou sobre o possível desaparecimento de Maria. Quando o sarcófago foi aberto e dele emergiu Maria-Vénus, seguiu-se nova salva de palmas. João Vieira diz que havia uma tal necessidade deste tipo de libertação que o seu trabalho foi muito bem recebido [70].

Maria era observada como uma obra de arte [71], o sarcófago “ritual surpresa dignidade: o ouro das metáforas” [72], foi posteriormente depositado em Malpartida de Cáceres, na ação Incorpóreo II que decorreu no Museo Vostell Malpartida em 1978. Poder-se-ia falar do nu, do corpo, do seu respetivo papel na arte e na vida, nesta ação igualmente perene de potencialidades. Mas importa, sobretudo, salientar, uma vez mais, o caráter inovador, sobretudo no contexto português, e a pertinência deste ritual no Portugal marcelista e na obra de Vieira. Na ação Pele Integral, que era parte da EXPO-AICA 74, deu, metaforicamente, as suas próprias mãos, moldadas igualmente em poliuretano e transformadas através de diversos materiais, de acordo com o destinatário.

Na Exposição Alternativa Zero, organizada por Ernesto de Sousa numa procura das tendências conceptuais e realizada na Galeria de Belém em 1977, João Vieira propôs “um espaço vazio, aberto à criatividade de qualquer dos seus visitantes que o poderiam transformar continuamente ao longo da exposição” [73], sendo as suas ações captadas e mostradas através de um circuito interno de televisão. Era uma nova “dádiva” ao outro, ao outro artista, ao ator-espectador, uma nova oportunidade para uma re-criação do espaço e do tempo, para a integração do público na execução da obra e na própria obra, para uma nova escrita.

Seria com Mamografias [74], de 1981, que o artista retomaria uma nova provocação concreta no campo da História da Arte. Na exposição, diversos modelos de espuma são feitos a partir dos seios da cópia da Vénus de Milo existente na Escola de Belas-Artes de Lisboa [75]. Numa “caricatura da celebração académica da representação de um corpo mutilado” [76], à qual se juntam caixas-porta ou caixas-janela em que os precursores Duchamp e Man Ray são evocados. Diversas termografias, multicoloridas, aludem simultaneamente à representação e ao retrato “aliando a imagem médica do cancro à mutilação académica da arte num paradoxal espaço de festa e de participação colectiva” [77]. O público pode caminhar por cima de seios de espuma onde se encontram maçãs e cordas. A performance, bem como a videoperformance realizada por Manuel Pires em U-Matic, contava ainda com a participação de três modelos, Maria, Manu e Mandinga, que procuravam reconstituir as atitudes de uma possível Vénus de Milo, através da ação do artista. Como nos diz João Fernandes: “Do mármore à espuma, a Vénus torna-se mulher, numa exaltação do corpo que sobreleva a doença, a mutilação e… a história da arte…” [78].

Importa ainda referir uma outra ação, que integrou a inauguração da exposição Caretos, de 1984, na Galeria Quadrum, em Lisboa e que contou com a presença do Grupo de Janita Salomé. Caretos (e a subsequente videoperformance registada por Cerveira Pinto em U-Matic), corporizou uma nova etapa, em que aquilo que são as artes performativas, que é a representação, que é a obra de João Vieira e que é a pessoa João Vieira, me parece estar particularmente sintetizado. Dá-se um duplo regresso às origens. Caretos resulta de uma pesquisa e recolha feitas em Trás-os-Montes pelo próprio artista [79], onde procura compreender, do ponto de vista etnográfico mas também artístico, o ritual dos Caretos. Para compreender as obras e a performance a um nível mais profundo, seria necessário compreender o ritual pagão que a tradição cristianizou, o que ultrapassaria largamente o âmbito deste escrito [80]. Foquemo-nos sobretudo em elementos como a máscara [81], os materiais, a cor (o vinho, cor do sangue), os fatos e a forma ou o gesto, e as suas simbologias nestes rituais de Inverno, bem como nas diversas personagens, como a ciganada, os burros roubados ou o Rei Mouro. Lembremo-nos também do fogo, e da sua ação criadora/destruidora, na importância do ritual, tanto na vida da aldeia, como na arte. Recordemos também que, como diz Pinharanda, Caretos “não trouxe qualquer desvio em relação à sensibilidade plástica exposta na sua obra anterior” [82]. Cor, matéria, forma, gesto, corpo e palavra, estão presentes de novo aqui, bem como “o longo imaginário familiar transmontano” [83], o que faz com que a “reelaboração artística erudita dos dados seja toda a interioridade que se lhe pode buscar” [84], tornando Caretos um exercício de reencontro dentro do próprio artista e da sua obra. Desde a composição dos fatos, a partir de materiais estáticos e pré-existentes, passando pelas cores, até à máscara. E é no gesto, de novo no gesto, que João Vieira dá o duplo sentido a este reencontro/regresso às origens, pois são de novo as letras, agora mascaradas, que João Vieira corporiza na tela como os elementos do ritual. Do ritual do (um seu) quotidiano, para o seu quotidiano de artista, enfatizado ainda na apropriação de elementos, ready-made, que são apostos à tela. Como assinala João Pinharanda, o próprio objeto vê o sentido da troca subvertida [85], pois o tento do pintor é o cetro do Rei Mouro, o que transporta o binómio forma-conteúdo para um nível muito profundo de significação interior e de múltiplas referências.

E dá-se, na minha opinião, uma outra inversão, na linha das ações anteriores, em que o sujeito da pintura, e do ritual, se identifica com o artista e com a sua obra, o que, consecutivamente o torna simultaneamente ator-espectador-objeto. É este reencontro profundo que está presente na ação, em que, num espaço estranhamente ambíguo, o artista é o careto, sem máscara (com a sua?), que recupera elementos do ritual, interagindo com um burro, “atado como o cordeiro na ara do sacrifício” [86], comungando com ele do pão e do vinho, e criando à sua volta um sulco-auréola, por onde o vinho-sangue correu. Neste ritualizar de um ritual que perdera os seus referentes originais, o artista consegue, como nos diz Jorge Pinharanda:

 

 Caminhar ainda no sentido de, através de abstrações e sínteses, recuperar para uma esfera claramente estética, por isso novamente mágica, a relação entre os símbolos das coisas e dos homens e o homem-creador. [87]

 

João Vieira fez ainda mais ações até 2009, recuperando e reinterpretando algumas das obras anteriores. A sua redescoberta através da exposição de Serralves foi, segundo o artista, uma surpresa para aqueles que a viram. Importa salientar o pioneirismo destas ações e o papel que as artes performativas desempenharam no desenrolar (para não dizer evolução) da sua obra, sem nunca perder de vista as suas pesquisas e, sobretudo, sem nunca deixar de procurar a relação com o gesto, talvez o grande leitmotiv da sua obra. Este interessante processo de autodescoberta e partilha tem nos Caretos uma devolução, através da ação artística, das propriedades mágicas ao ritual, o que está intimamente ligado com aquilo que são as artes performativas.

Lembrando as palavras de Maria Antónia Palla, a propósito de Expansões:

 

Não estamos na América, nem na Inglaterra, quem quiser que entenda, na inauguração da exposição de João Vieira, na Galeria Judithe da Cruz, cremos que, pela primeira vez, qualquer coisa verdadeiramente aconteceu. [88]

 

Na procura do gesto, da ação, do outro (espectador/artista) e do seu papel, João Vieira percorre os caminhos da autognose e da História da Arte, convoca para as suas ações um tempo e um espaço transformados, utiliza meios alheios à arte que integra com serenidade e trabalha com os ingredientes da performance num meio que precisava delas desesperadamente, sendo uma e outra vez aquele que analisa, ensina e revela.

 

Notas

[1] Da autoria de Gabriela Cerqueira e datado de 2003. A utilização das palavras do próprio artista, em jeito de transcrição, revela-se como uma fonte muito importante para a compreensão da sua obra. Aparecerá referido como “documentário” ao longo das notas.

[2] Retirado do documentário.

[3] Idem. Veja-se também o artigo de Melo e Castro: CASTRO, E. M. de Melo e – Letra a Letra. In: João Vieira. 25 Anos de Trabalho. 1959-1984. Lisboa: & ETC, 1985, pp. 9-19.

[4] Retirado do documentário.

[5] Idem.

[6] Idem. Este período aparece desenvolvido na bibliografia.

[7] Retirado do documentário.

[8] Idem.

[9] Idem.

[10] Idem.

[11] FERNANDES, João – A letras e o corpo na obra de João Vieira. In: RAMOS, Maria [Ed.] – João Vieira. Corpos de Letras. Porto: Fundações de Serralves, 2002, pp. 20-31, p. 23.

[12] JOÃO Vieira. 25 Anos de Trabalho. 1959-1984. Lisboa: & ETC, 1985, p. 79.

[13] Retirado do documentário.

[14] Idem.

[15] Cf. FERNANDES – A letra e o corpo, p. 24.

[16] Retirado do documentário.

[17] Idem. As obras dos letristas assumem-se como manifesto para o fim das possibilidades da pintura, enquanto que a obra de João Vieira nunca a põe em causa. Cf. FERNANDES – A letra e o corpo, p. 22.

[18] PALLA, Maria Antónia – A Arte é uma Festa. In: João Vieira. 25 Anos de Trabalho. 1959-1984. Lisboa: & ETC, 1985, pp. 20-23, p. 23.

[19] JOÃO Vieira, p. 79.

[20] Idem.

[21] Retirado do documentário.

[22] Idem. Patentes na exposição que decorreu na Fundação de Serralves em 2002.

[23] JOÃO Vieira, p. 79.

[24] Retirado do documentário.

[25] Cf. SOUSA, Ernesto de – Da Letra ao Texto do Texto ao Contexto. In: João Vieira. 25 Anos de Trabalho. 1959-1984. Lisboa: & ETC, 1985, pp. 26-33, p. 31.

[26] FERNANDES – A letra e o corpo, p. 24.

[27] Ibidem, p. 22.

[28] Cf. Ibidem.

[29] Ibidem.

[30] FRANÇA, José-Augusto – Oito Ensaios sobre Arte Contemporânea. Lisboa: Publicações Europa-América, 1967, pp. 77-78.

[31] FERNANDES – A letra e o corpo, p. 25. Algo que se acentua ainda mais com Uma Rosa É, de 1968.

[32] Cf. Ibidem, p. 25.

[33] Concebido e apresentado por Raúl Solnado, Carlos Cruz e Fialho Gouveia.

[34] Artista plástico e funcionário da RTP que colaborará com João Vieira na documentação das suas performances e no registo da maioria das suas videoperformances.

[35] FERNANDES – A letra e o corpo, p. 27.

[36] Retirado do documentário.

[37] FERNANDES – A letra e o corpo, p. 26.

[38] SOUSA – Da Letra ao Texto, p. 30.

[39] Ibidem, p. 26.

[40] SILVA – João Vieira, p. 68.

[41] Ambas são utilizadas pelos diversos autores em referência às mesmas ações. Ernesto de Sousa discute a aplicação da terminologia em: SOUSA – Da Letra ao Texto.

[42] Retirado do documentário.

[43] FERNANDES – A letra e o corpo, p. 27.

[44] SOUSA – Da Letra ao Texto, p. 30.

[45] Citado, com itálico, em: SOUSA – Da Letra ao Texto, p. 30. O Júri era constituído por José-Augusto França, Fernando Pernes e Rui Mário Gonçalves.

[46] Denominações do próprio artista.

[47] Transcrito por Ernesto de Sousa em SOUSA – Da Letra ao Texto, pp. 29-30.

[48] E que seria responsável pelo material da ação Incorpóreo I.

[49] Cf. SOUSA – Da Letra ao Texto, p. 30.

[50] Descrição recolhida a partir de diversas fontes, incluindo o depoimento do artista no documentário que tenho vindo a citar.

[51] SOUSA – Da Letra ao Texto, p. 30.

[52] Descrição presente no documentário. Para sintetizar, optei por não fazer uma transcrição direta.

[53] SOUSA – Da Letra ao Texto, p. 30.

[54] Cf. FERNANDES – A letra e o corpo, pp. 27 e 28.

[55] Ibidem, p. 27.

[56] PALLA, Maria Antónia – A Arte é uma Festa. In: João Vieira. 25 Anos de Trabalho. 1959-1984. Lisboa: & ETC, 1985, pp. 20-23.

[57] Ibidem, p. 22.

[58] Cf. Ibidem, p. 23.

[59] Cf. SILVA, Raques Henriques da – João Vieira: das letras aos corpos. In: RAMOS, Maria [Ed.] – João Vieira. Corpos de Letras. Porto: Fundações de Serralves, 2002, pp. 66-73, p. 70.

[60] Cf. Ibidem, p. 71.

[61] A erudição de João Vieira e o seu interesse pela História da Arte transparecem na sua obra e na bibliografia.

[62] SILVA – João Vieira, p. 67.

[63] SOUSA – Da Letra ao Texto, p. 31.

[64] Cf. Ibidem.

[65] Retirado do documentário.

[66] Cf. SILVA – João Vieira, p. 67. É bastante enfatizada pela autora a receção política das ações na conjuntura coeva.

[67] Atente-se na analogia de materiais com a exposição mole.

[68] Idem.

[69] Idem.

[70] Idem.

[71] Como a própria Maria Gonzaga afirma no documentário e como nos diz Ernesto de Sousa.

[72] SOUSA – Da Letra ao Texto, p. 31.

[73] FERNANDES – A letra e o corpo, p. 29.

[74] Ernesto de Sousa chama Mamografias à ação de João Vieira na Alternativa Zero. Cf. SOUSA – Da Letra ao Texto, p. 31.

[75] Saliente-se a proveniência e a sua relação com o percurso do artista, note-se igualmente que um modelo da Vénus de Milo, ainda mais mutilado, serve de cariátide a um dos cenários que João Vieira criou para o programa Hermanias de Herman José de 1985.

[76] FERNANDES – A letra e o corpo, p. 30.

[77] Ibidem.

[78] Ibidem, p. 30.

[79] Esta recolha etnográfica foi objeto de um registo em vídeo realizado por Manuel Pires em 1982 e intitulado Festa dos Caretos em Torre de D. Chama. João Vieira participou em vários programas de televisão explicando as tradições associadas aos Caretos.

[80] PINHARANDA, João – O segredo das máscaras. In: João Vieira. 25 Anos de Trabalho. 1959-1984. Lisboa: & ETC, 1985, pp. 50-53.

[81] Que aparecera já nas cenografias que criara nos anos 60.

[82] Ibidem, p. 51.

[83] Ibidem.

[84] Ibidem.

[85] Cf. Ibidem, p. 52.

[86] Ibidem, p. 53.

[87] Ibidem.

[88] PALLA – Arte é uma Festa, p. 20.

 

Bibliografia

 

Livros:

CASTRO, E. M. de Melo e – Letra a Letra. In: João Vieira. 25 Anos de Trabalho. 1959-1984. Lisboa: & ETC, 1985, pp. 9-19.

FERNANDES, João – A letras e o corpo na obra de João Vieira. In: RAMOS, Maria [Ed.] – João Vieira. Corpos de Letras. Porto: Fundações de Serralves, 2002, pp. 20-31.

FRANÇA, José-Augusto – Oito Ensaios sobre Arte Contemporânea. Lisboa: Publicações Europa-América, 1967.

JOÃO Vieira. 25 Anos de Trabalho. 1959-1984. Lisboa: & ETC, 1985.

JOÃO Vieira. Percursos 1960-2001. [S.l.]: ACD – Edições, 2001.

PALLA, Maria Antónia – A Arte é uma Festa. In: João Vieira. 25 Anos de Trabalho. 1959-1984. Lisboa: & ETC, 1985, pp. 20-23.

PINHARANDA, João – O segredo das máscaras. In: João Vieira. 25 Anos de Trabalho. 1959-1984. Lisboa: & ETC, 1985, pp. 50-53.

RAMOS, Maria [Ed.] – João Vieira. Corpos de Letras. Porto: Fundações de Serralves, 2002.

SILVA, Raques Henriques da – João Vieira: das letras aos corpos. In: RAMOS, Maria [Ed.] – João Vieira. Corpos de Letras. Porto: Fundações de Serralves, 2002, pp. 66-73.

SOUSA, Ernesto de – Da Letra ao Texto do Texto ao Contexto. In: João Vieira. 25 Anos de Trabalho. 1959-1984. Lisboa: & ETC, 1985, pp. 26-33.

 

Documentário:

Pinto Quadros por Letras – João Vieira. Produzido por Gabriela Cerqueira, 2003.

 

 

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