Carina Sehn, In[penetrável]. Performance realizada em Porto Alegre, Brasil. Agosto de 2014. Fotografia de Raisa Torterola
Para que tudo na realidade seja processo.
Lygia Clark [1]
In[penetrável]. Objeto concreto, corpo, cubo; de madeira, não o cubo branco-galeria, mas o cubo aberto à rua. Somente as linhas do cubo, linhas moleculares, linhas de fuga que descapturam sem deixar de territorializar algo, algum ponto da linha do processo de se estar vivo, da duração de cada um. Uma vida, uma imanência. Um plano cheio de linhas e pontos, vibrações e frequências que se encontram aqui e agora, no momento presentíssimo! Que é e já deixa de ser, que está e já deixa de estar, que é impermanente, efêmero, atual. In[penetrável] aconteceu no coração do centro de Porto Alegre, no Largo Glênio Perez, por onde passam mais de 150 mil pessoas por dia. Eu estava nua, dentro do cubo vazado. A posição do meu corpo havia sido previamente estudada e esboçada para que não ficassem aparecendo os seios e a genitália. Estava sentada dentro do cubo, em posições de ensimesmamento, de alguém que se voltou para si a parte do mundo à sua volta. Queria testar a possibilidade de estar sozinha hoje, mesmo entre os outros. Como é que posso estar sozinha no meio da multidão? Como se dá a solidão hoje? Existe? Você consegue ser sozinho?
Meu corpo e minha ação apresentavam uma imagem a quem passava, uma imagem que não buscava uma localização, mas uma vaga, um espaço para existir. Uma imagem acentrada e viva, no meio do fluxo da multidão. Uma imagem que não era facilmente capturável, pois continha a vibração viril do que é vivo e não precisa de legenda. Uma espécie de naturalidade, despojamento de representações, que não quer demonstrar algo específico, mas está ali para fazer perguntas, para produzir pensamento. Precisavam saber qual era a origem daquilo, qual era a essência daquele fato, queriam saber detalhes e não conseguiam ver o processo ali instaurado. Fotografavam, não viam. Fotografavam! Com avidez! Ligavam para a polícia para obter respostas – o aval da lei dos homens, criadas sempre a favor de alguns e em detrimento de outros. No entanto, não existe uma essência, um único caminho possível seja na arte e também na vida; pois a natureza instintiva do indivíduo é produzir e ser produzido, visto que estamos em movimento constante dentro de um universo heterogêneo movente.
Não podemos petrificar a vida, congelá-la para comer depois! A vida não se submete à nossa memória, ela não dura para sempre e nem permite que algo dure imutável. Portanto, o que é o “para sempre senão o existir contínuo e líquido de tudo aquilo que é liberto da contingência, que se transforma, evolui e deságua sem cessar em praias de sensações também mutáveis?” [2] O que é o para sempre do momento, do instante em que se vive algo, que se vibra em uma desconhecida sensação: intempéries do corpo que vive na terra? E quando a vida vem e te surpreende, te faz viver algo que já há algum tempo estás buscando, desejando lá dentro do estômago? É o devir cósmico, cosmogônico, aquilo que vem, nos afeta e amplia, fazendo-nos perceber mais aguçadamente tudo o que está a nossa volta, tudo aquilo que nos produz do modo como somos hoje. E esse devir cósmico, podemos experimentar sempre que nos entregamos à vida, sempre que sentimos aquele frio no estômago de quem não sabe exatamente o que vai acontecer, mas que é indispensável viver. É este “inevitável para sempre do instante”, aquilo que insiste em acontecer mesmo que não nos demos conta que já está acontecendo. Pois é com este estado de inevitabilidade, de urgência da vida, do instante, que o meu corpo deseja se relacionar quando está em performance.
Na performance, a vida acontece no corpo do artista e não em um objeto apartado dele. É no corpo que o acontecimento de estar vivo se manifesta ativo, existe simplesmente: como as árvores, as pedras, os animais. O corpo do performer está acordado, desperto, atento, reptilizado. Ele vive o processo, os instantes, um após o outro, a inexorabilidade do que é vivo e acontece. A urgência da vida e não a do ego. Aliás, quando se trata de um devir cósmico, o ego centrado em si não tem vez, é pequeno e irrevogável demais para a efervescência voraz do que é dinâmico, do que não segue nenhuma programação anteriormente sintetizada, pois se relaciona com o desconhecido, com o que surge na existência da ação, com que é traduzido pelo público. Entretanto, em nosso afã de disciplinar as forças cósmicas, nosso devir energético, que quer se expandir, se afirmar e criar vida, nós criamos sistemas, ordens, leis e lógica, construímos uma casa e nos resguardamos dentro da representação. Preferimos a segurança ilusória daquilo que já codificamos, da imagem impressa na memória.
(…) o corpo estaria presente não como representação, nem como elemento figurativo ou narrativo, mas quase como um pré-corpo, ou um pré-objeto, numa intensidade anterior a qualquer formalização. [3]
A performance defronta o homem com sua capacidade de se reinventar, de se saber outro e não desejar ficar grudado a uma representação píer de salvação. Ela o provoca a perceber o seu “existir como uma mudança radical do mundo em vez de ser somente uma interpretação do mesmo” [4]. Quando vemos algo, de súbito, temos a necessidade de categorizar, de classificar ainda que lá no fundo do falso inconsciente, lá onde nem percebemos de imediato a nossa necessidade de representar. Damos significado, nome às coisas, e isso nos deixa mais tranquilos, mais confortáveis. Vemos uma coisa sempre em função de outra, e esse problema a performance nos coloca, uma vez que faz um convite a não significarmos de imediato, a percebermos de uma vez por todas que a vida e as pessoas são únicas, são processuais, estão ou deveriam estar em permanente processo de reinvenção de si, de seu modo de existir, afinal é o imponderável que se revela em nós a cada nova ação que fazemos, a cada novo instante que experimentamos.
É intolerável, portanto, que nos conformemos em sermos sempre os mesmos e, se não os mesmos, uma representação/reprodução de nós mesmos. A solidão em sermos quem somos, a autenticidade da solidão, pois “o interior da caixa jamais é passivo, possui uma tensão constante” [5], uma energia aguçada. Esse interior é livre de acessórios, de objetos, de badulaques, está nu, desprovido de elementos, apenas respira, é um ser, um corpo vivo e atento à vida que se lhe passa ao redor. Em 1967, Hélio Oiticica apresenta a obra ambiental Tropicália, um penetrável, que visava apresentar o Brasil ao Brasil, levar a favela para dentro do museu, oferecer um chão de britas, de terra, araras, paredes de zinco, cortinas de chita e plantas típicas da umbanda. Hélio refere na sua trajetória, a partir dessa sua obra, uma superação do estruturalismo, da imagem de representação, pois faz o seu trabalho vazar, crescer por todos os lados, o objeto não acaba mais ali onde ele está, não tem um limite preciso e concreto, mas sim uma abertura para a imaginação, para o indivíduo que experimentará o contato com a obra, livremente.
O penetrável do in[penetrável] a tramar a vida, permitindo que ela se alastre como raiz rizomática. O processo da imagem e não um pequeno detalhe da mesma. Nós nos identificamos com o detalhe e não com a integralidade. Apegamo-nos à forma e não à existência mesma. Agarramo-nos no significado e não soltamos as rédeas para a sensação. O corpo pede passagem na aridez do racionalismo. O corpo quer mais da imagem. O meu corpo vivo ali, dentro do cubo, produz uma imagem viva e mutante, pois será diferente para cada pessoa que se relacionar com ela, que se permitir olhá-la sem predeterminações, sem um celular na mão, sem a fala tagarela e racionalizante. Ver uma performance é também ver o corpo do artista, é também enxergar o seu próprio corpo. In[penetrável] foi interrompida depois de 40 minutos pela polícia que comunicou à equipe de produção ter recebido uma denúncia por eu estar nua e avisou que ou eu me tapasse ou teriam que me levar. Eu, imediatamente, me cobri e sai do cubo, como antes entrara. À minha volta havia se produzido um círculo de muitas pessoas que se fechava cada vez mais sobre o meu corpo-imagem – criando um centro significante abarrotado e enfumaçado de cigarros e senso comum. Do alto do para sempre do instante performático, eu seguia vazando por todas as partes, tramando a vida na arte, a respiração na estética, o in[penetrável] no penetrável.
NOTAS
[1] Lygia Clark, no livro Cartas 1964-1974 (Rio de Janeiro: Editora UFRJ, 1996), organizado por Luciano Figueiredo e lançado em 1996 em uma tiragem de apenas 1000 exemplares. Lygia corresponde-se com Hélio Oiticica e este trecho encontra-se na página 60.
[2] Lúcio Cardoso, no seu livro pouco conhecido e maravilhoso, Crônica da Casa Assassinada (Rio de Janeiro: Editora Record, 1999). Este trecho encontra-se na primeira página do romance. Para mim, desde que li, tornou-se quase um mantra de vida.
[3] Rodrigo Guerón, em Da imagem ao clichê, do clichê à imagem: Deleuze, cinema e pensamento. Rio de Janeiro: Nau Editora, 2011, p. 238.
[4] Lygia Clark, no livro Cartas 1964-1974, p. 59.
[5] Hélio Oiticica, em Cartas 1964-1974, p, 23.
PARA CITAR ESTE ARTIGO
SEHN, Carina. “In[Penetrável]: Performance de Carina Sehn”.
eRevista Performatus, Inhumas, ano 3, n. 13, jan. 2015.
ISSN: 2316-8102.
Revisão ortográfica de Marcio Honorio de Godoy
© 2015 eRevista Performatus e a autora
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