Diretrizes Profanas nos Trajes e Acessórios de Flávio de Carvalho e de Márcia X.

 

Injuriados por grande parte do público beatificado que se deparou com o encadeamento lógico dos seus conceitos, os artistas brasileiros Flávio de Carvalho e Márcia X. não hesitaram em engendrar intranquilidade generalizada; mantiveram-se resolutos na insistência de atos habilmente pirrônicos, ironizando uma sociedade calcada na “fé cega” das suas crenças religiosas com pujança criativa. Ambos os artistas difundem suas atrevidas concepções como modo de explicitar a versão hipotética de certezas; desestabilizam as supostas “verdades absolutas” e essa pode ser, talvez, a maior de todas as qualidades que vemos nas suas realizações.

O atrevimento cético move Flávio de Carvalho a pervagar na busca de “provocar a revolta para ver alguma coisa do inconsciente” [1], quando atravessa a procissão de Corpus Christi em sentido contrário e usando um boné de veludo verde na cidade de São Paulo em sua Experiência n. 2 (1931). Assim, ele prova a existência de um fanatismo insólito, o qual só pôde ser bem avaliado por conta da sua vivência, que é escopo para uma meticulosa análise.

No início, o artista não é notado em sua pose arrogante a molestar a lógica e sentido daquele evento, mas, aos poucos, desperta o furor, o ódio, a sanha de uma massa única a exigir que o seu corpo seja literalmente linchado. “O comportamento de uma procissão sobre o domínio de um chefe invisível é parecido com o comportamento de outras aglomerações chefiadas” [2], conclui. Um “emblema totêmico” (que representa deus e pátria ao mesmo tempo) é então o que rege a violência daquela massa na condenação à atitude de Flávio de Carvalho em não renunciar o uso do seu acessório diante de um evento religioso. Segundo o artista, com relação ao cidadão beato, “nivelado ao deus e à pátria, ele se considera um ser privilegiado” [3] e, por esse motivo, não tolera que seja rebaixado e ridicularizado a ponto de ver seu gozo narcisista desmantelado, como se fosse atropelado pelo “automóvel que atravessa um rebanho” [4].

 

Experiência n. 3, 1956. Flávio de Carvalho desfilando seu novo estilo na rua (foto superior; © Arquivo J. Toledo) e em uma sala de redação (foto inferior; © Biblioteca e Centro de Documentação do Museu de Arte de São Paulo Assis Chateaubriand)

 

Na sua Experiência n. 3 (1956), o artista detona com a autoridade da moda que estabelecia, para um país de clima predominantemente tropical, uma transposição do traje pesado, fechado e calorento do continente europeu, o qual era sofridamente incorporado no Brasil. Prontamente, ele propôs o uso de um saiote com pregas e blusa com mangas bufantes, sugerindo um traje fresco, ventilado, adequado para o país, mas, para fazer valer a sua ideia, teria que demolir os imutáveis acéfalos que não conseguiam abstrair o juízo de calça como um artefato masculino e saia como um item feminino. Seria quase impossível (e ainda é) evidenciar que essa condição é de ordem cultural e que pode ser alterada. Obviamente, Flávio de Carvalho, com a composição do seu “traje tropical”, expôs apenas um deboche da cópia que estabelecemos dos europeus e norte-americanos e dos padrões que consideramos corretos no que diz respeito ao gênero de um indivíduo. Mas não estaria ele também colocando em xeque, mais uma vez, a presença do elemento sagrado fortemente incorporado em nossa sociedade? Tida por feminina na grande maioria das culturas modernas, a saia, usada como cerne de uma performance em um corpo masculino, imbrica no questionamento da seguinte afirmação bíblica: “Uma mulher não poderá usar coisas de homem e um homem não poderá vestir-se com roupas de mulher, porque o SENHOR, teu Deus, abomina quem assim procede.” (Dt 22, 5). [5]

Talvez não haja a intenção explícita de romper com tabus de ordem judaico-cristã, mas tão somente de rescindir com todo um conjunto cultural, embora o signo do estranhamento seja justamente o de expor o conforto do indumento feminino sobre a recalcada macheza social, afinal é o calor que o leva a isso. O discurso de Flávio de Carvalho desvirtua a lógica normativa e paira sobre o questionamento dos comportamentos sociais estigmatizados, fazendo valer também os “desviantes”; logo acaba, em certa medida, por funcionar como um vislumbre da Queer Theory.

 

New Look, blusa: 60 cm, saia: 60 x 50 cm, traje do “Novo Homem dos Trópicos”, Flávio de Carvalho, 1956. [Exposição Sob um Céu Tropical. James Lisboa Escritório de Arte, 25 de agosto a 26 de setembro de 2009]

 

Anteriormente à saia, antes da existência da calça, o humano não se diferenciava pelo indumento; todos vestiam peles de animais, adornos quaisquer, ou andavam nus. Embora a religião se oponha ao desejo sexual, quando há a diferenciação no vestuário masculino e feminino, a humanidade fica mais sexualizada através dos códigos que valorizam os sexos opostos. É uma contradição, mas a Igreja eleva o prazer carnal quando reprime os corpos a usarem padrões correspondentes aos seus sexos. O ser humano é impuro para a Igreja e deve evitar cair em tentação mediante às exigências comportamentais impostas por um cruel ditador, a quem dá-se o nome de Deus (com d maiúsculo).

A relação humana com o corpo nu, segundo Agamben, comentando o que o autor Erik Peterson apresenta em Theologie des Kleides, é que o corpo antes do pecado original estava “coberto” e que, após o pecado original, foi “descoberto”. “Antes estava velado e vestido o que agora é desvelado e despido.” [6] Essa noção de corpo vestido de indumentária, portanto, implica justamente na ausência de pureza, tornando, então, necessária a ocultação da corporeidade desprovida do intermédio sagrado, da “veste sagrada”, do “traje divino”, elemento que impediria o olhar desaprovador para as marcas da sexualidade presentes nos corpos dos seres humanos.

A artista brasileira Márcia X. (ex Márcia Pinheiro) fantasiou-se com esse mesmo véu sagrado quando despiu seu corpo em sua performance Cellofane Motel Suíte (performance feita em parceria com Alex Hamburger), durante a II Feira Internacional do Livro na cidade do Rio de Janeiro em 1985. Dentro desse evento, a artista ia cortando um figurino preto de plástico (chamado pela própria artista de não-roupa) que revelava uma não-roupa igualmente de plástico, dessa vez transparente, e que não escondia seu corpo, mantendo-o desnudo. Uma simbologia da mesma “nudez” cristã e que faz referência ao corpo de Eva antes do pecado original.

Repercutindo na mídia local, a ação foi criticada por uma estilista também chamada Márcia Pinheiro, a qual se mostrou revoltada pela associação de seu nome e, então, afirmou que julgava aquela performance um rebaixamento do seu posto profissional, que era vestir e não despir pessoas. Foi esse episódio que fez com que Márcia X. adotasse essa incógnita no lugar do seu nome original, algo que pode ser interpretado por “ex” (pronunciado em inglês tal e qual a letra “X”). Na transição entre os nomes Márcia Pinheiro e Márcia X., a artista permaneceu por um tempo como “Márcia X. Pinheiro”, o que pode também dar a conotação de Márcia “versus” Pinheiro, ou seja, a artista que profana a sacralidade quando brinca com a ideia de expor a nudez coberta por um manto sagrado de plástico transparente versus a estilista que veste e oculta a silhueta corporal, reprimindo a natureza humana instintiva. [7]

 

Cellofane Motel Suíte, Alex Hamburger e Márcia X., 1985. [Exposição Arquivo X, curadoria Beatriz Lemos, Museu de Arte Moderna do Rio de Janeiro, 02 de fevereiro a 14 de abril de 2013]

 

Lacônicos na forma, mas densos no conceito. Ambos os artistas brasileiros não economizaram acidez e, tampouco, o completo desprezo pela falta de questionamento de uma sociedade robotizada em sua conduta inabalável. Perceberam que era necessário puxar o tapete, criar incertezas, desestabilizar padrões. A relação freudiana em seu processo incestuoso com a obra é o ponto em comum dos dois artistas que conjeturam os elementos sagrados como elementos fálicos. Analisando sua Experiência n. 2, Flávio de Carvalho conclui que, com a sua conduta diante da procissão de Corpus Christi, “os acessórios-fetiches reclamavam logo o seu lugar simbólico na família patriarcal divina” [8], ou seja, “as moças, as velhas, os padres, liam o breviário com mais afinco, apertavam as velas com mais fervor” [9]. O artista, assim, relacionava velas e cabos de estandarte com órgãos sexuais. Márcia X. não pensaria de forma similar (ou idêntica) quando ironizou alguns dos acessórios usados nesses eventos religiosos na sua composição da série Fábrica Fallus ou em Desenhando com Terços, por exemplo?

 

Márcia X., Sem título, da série Fábrica Fallus, 1992-2004

 

“O artista deve ter uma visão erótica do mundo” [10], proclama a afamada artista performática Marina Abramović em seu Manifesto Sobre a Vida do Artista, e quiçá esse seja um dos grandes motivos que torna as obras desses dois artistas brasileiros em veículos para conversações tão atuais.

 

 

NOTAS

[1] Flávio de Carvalho, Experiência n. 2 – Realizada sobre Uma Procissão de Corpus Christi: Uma Possível Teoria e Uma Experiência, p. 16.

[2] Ibidem, p. 51.

[3] Ibidem, p. 53.

[4] Ibidem, p. 37.

[5] Bíblia Sagrada. Tradução do Centro Bíblico dos Capuchinhos. 5. ed. rev. Fátima: Ed. Difusora Bíblica, 2008, p. 288.

[6] Erik Peterson apud Giorgio Agamben, Nudez, p. 75.

[7] A interpretação sobre a performance de Márcia X. e Alex Hamburger apresentada aqui é completamente pessoal. Usei essa mesma ideia na segunda edição do livro dedicado à trajetória dessa artista brasileira, intitulado Discursos Críticos Através da Poética Visual de Márcia X., lançado em 2013 pela Paco Editorial, no Brasil.

[8] Flávio de Carvalho, op. cit., p. 65.

[9] Ibidem, p. 64.

[10] Marina Abramović, Back to Simplicity, s/ pág.

 

BIBLIOGRAFIA

AGAMBEN, Giorgio. Nudez. Lisboa: Relógio d’Água, 2009.

BÍBLIA Sagrada. Tradução do Centro Bíblico dos Capuchinhos. 5. ed. rev. Fátima: Ed. Difusora Bíblica, 2008.

CARVALHO, Flávio de. Experiência n. 2 – Realizada sobre Uma Procissão de Corpus Christi: Uma Possível Teoria e Uma Experiência. Rio de Janeiro: Editora Nau, 2001.

FREY, Tales. Discursos Críticos Através da Poética Visual de Márcia X. Jundiaí: Paco Editorial, 2013.

VISCONTI, Jacopo Crivelli (org.). Back to Simplicity. São Paulo: Luciana Brito Galeria, 2010.

 

 

PARA CITAR ESTE TEXTO

FREY, Tales. “Diretrizes Profanas nos Trajes e Acessórios de Flávio de Carvalho e de Márcia X.”. eRevista Performatus, Inhumas, ano 1 , n. 4 , mai. 2013. ISSN: 2316-8102.

 

Revisão ortográfica de Marcio Honorio de Godoy

© 2013 eRevista Performatus e o autor

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