“Estado das Coisas”: Agir no Corpo, Agir na Arte da Performance

 

Neste artigo veremos o propósito da arte da performance a partir da diferença entre agir e fazer. O agir ao qual me refiro podemos encontrar na peça Este Corpo que me Ocupa, de João Fiadeiro, quando se coloca quase vazio, como coisa. Vemos este agir na maneira como se movimenta Yvonne Rainer em Trio A, retirando o virtuosismo da bailarina de cena e dando lugar ao movimento. O mesmo agir parece estar também na ação observada por Fernand Deligny nos traços dos mapas dos trajetos das crianças autistas na fazenda onde viviam na França. Nesse caso, o mapa substitui a fala, e nos possibilita enxergar um agir anterior ao sujeito subjetivado e quiçá mais livre dos efeitos dos dispositivos de poder que tendem a formatar a existência de corpos e de sujeitos no mundo.

Descrevo, nas páginas que seguem, as referências e inquietações que me mobilizam no âmbito do trabalho que cruza pesquisa e experimentação artística e que nomeio Estado das Coisas. Este resulta dos anos de minha pesquisa de mestrado em Artes Visuais na Escola de Belas Artes da Universidade Federal do Rio de Janeiro. Por meio de três séries, que vão sendo criadas com performances, fotografias e vídeos, a produção que leva este título ora evidencia a subjeção que pode existir entre sujeito e objeto técnico, ora propõe linhas de fuga a essa condição, abrindo possibilidades para novas formas de existências e outros usos, apontando, assim, a outras perspectivas além do antropocentrismo ao qual estamos acostumados. O objeto técnico ao qual me refiro está profundamente inserido em nosso cotidiano e tem especial relevância na formação de nossa subjetividade. Ele é produzido em linhas de montagem de fábricas, em escala industrial, e é parte de uma cadeia de extração, produção, venda e consumo.

O trabalho aqui apresentado está no limiar entre dança e artes visuais. Além disso, a tecnologia é trazida como tema e a sonoridade é tratada com bastante atenção. Na composição das performances utilizo, de maneira simples, a vibração e a ressonância que pode produzir a matéria de objetos técnicos em contato com o corpo e seus movimentos. Estado das Coisas vem problematizar esteticamente a centralidade do sujeito assim como a perspectiva que homogeneíza os modos de existência.

 

pessoa, objeto, pedra, planta

Deligny assinala, em suas pesquisas, a existência de um agir que abre possibilidade a modos de existência desprendidos de uma certa imagem unitária centrada em torno do sujeito. A questão de Deligny é como existir sem impor à pessoa os ditames do sujeito e as determinações da linguagem. Para ele, o autista é o indivíduo em ruptura de sujeito e, por isso, nos interessa aproximar alguns elementos da experiência de Fernand Deligny, com enfoque no que ele define como agir, a determinadas manifestações da arte da performance. Será possível encontrar na performance um sujeito que pode romper, enquanto age, com os a-sujeitamentos impostos a ele?

Deligny defende o agir como diferente do fazer, como algo que nos aproxima de um mundo onde “o balanço da pedra e o ruído da água não são menos relevantes do que os murmúrios dos homens” (PELBART, 2013: 261). O fazer seria fruto da vontade dirigida a uma finalidade, enquanto agir é o gesto desinteressado, o movimento não representacional, sem intencionalidade, que dá lugar ao intervalo, ao tácito, à irrupção, ao extravagar, à dessubjetivação (Ibidem).

Agir faz parte de um mundo onde a linguagem ainda não está ou já deixou de estar. Esse agir nos aproximaria do universo a-consciente do mineral, do vegetal e do animal, então “entregues ao inato que os anima” sem que seja necessário “fazer como ou imitar, como ‘paimãe’” (Ibidem, p. 263). Sendo assim, podemos dizer que existe um agir que pode ser procedimento não significante, não representacional, sem finalidade (não engendrado na lógica de causalidade do tempo), isto é, maquínico. O agir maquínico nos aproxima do desejo, do acontecimento, do atual, operando como uma linha de fuga aos dispositivos de poder, enquanto o fazer nos conecta como parte engendrada dos dispositivos de controle e nos mantém totalmente articulados com os enunciados de poder.

 

Cinthia Mendonça e Andreas Trobollowitsch, |Stand :: estado das coisas, 2015

 

Na série pessoa, objeto, pedra, planta realizo performances que trabalham a disposição sem hierarquia entre sujeitos e objetos técnicos. A ideia de trabalhar o sujeito frente ao objeto vem de um desejo de tensionar e questionar o lugar de poder ocupado por ambos. Quem manipula o quê? Somos manipulados pelos objetos na mesma medida em que os manipulamos? Exemplos do material criado a partir dessas indagações estão nas performances “a coisa muda”, “|Stand” e “Juntos”.

Nessa série, trabalho com operações que chamo de disposição e deslocamento, em que objeto, humano, vegetal e mineral são dispostos lado a lado sem hierarquias e, em seguida, deslocados de suas significações. A disposição está na simples organização de corpos no espaço, seguida de inércia e tempo para observação. O deslocamento do objeto está na identificação de sua tecnicidade, isto é, de sua estrutura principal e, em seguida, em sua modificação, dando a ele nova função, novo uso ou, ainda, desutilizando-o. A operação relativa ao deslocamento do sujeito consiste em deslocá-lo de seu lugar de manipulador do objeto. Já o deslocamento de plantas, pedras e demais representantes dos reinos vegetal e mineral se dá pela proposição de outras maneiras de uso. Os deslocamentos são operações de busca de novas formas, ou de novos modos de existência, sobretudo para o sujeito e para o objeto. Realizando tais operações tenho, por fim, um produto que está conectado, ao mesmo tempo, com o imaginário e com a técnica.

 

fábrica

Recorro à fabricação para tratar do agir no corpo. A fabricação de um corpo se dá com a ativação da potência de criação de cada indivíduo. Para entendermos melhor o processo de fabricação de corpos e sua conexão com o agir, que pode ser diferente do fazer, trazemos relatos sobre um outro modo de existir apresentados em estudos do antropólogo Eduardo Viveiros de Castro, que nos apresenta a maneira ameríndia de perceber o corpo (e com isso a subjetividade), em que, ao contrário da maneira ocidental, o corpo não é algo dado, mas sim algo a ser fabricado. Nessa perspectiva, age-se sobre o corpo porque ele é constantemente submetido a essa fabricação. Na puberdade, no casamento, no nascimento dos filhos, na doença ou no processo de transformação de uma pessoa em xamã, em todos esses momentos de movimento e mudança está a fabricação dos corpos.

O antropólogo cita o exemplo da cultura Yawalapíti [1], cujos membros necessitam ter o corpo submetido a processos intencionais e periódicos de fabricação, que consiste em um conjunto de intervenções sobre as substâncias que conectam o corpo ao mundo e sobre fluidos vitais, alimentos, eméticos, tabaco, óleos e tinturas vegetais, além da abstinência e da reclusão. O corpo é fabricado no âmbito natural e social, sem distinção. Ele passa por uma verdadeira metamorfose em que os processos fisiológicos e sociológicos não se distinguem da transformação do corpo, das relações sociais e dos estatutos que as condensam em uma só coisa. “Assim a natureza humana é literalmente fabricada ou configurada pela cultura. O corpo é imaginado, em todos os sentidos possíveis da palavra, pela sociedade” (CASTRO, 2002: 72).

Na natureza fabricada pela cultura do povo Yawalapíti, o corpo em metamorfose parece em estado constante e imanente de descentralização de si, na medida em que a materialidade do corpo é o foco da existência. Ou ainda, usando o termo de Giorgio Agamben, existe, nessa prática, um constante profanar, um trazer para si (para o mundo) a matéria que parece escapar. Seguindo esse raciocínio, podemos considerar a existência de um agir que sobrepõe tempos e símbolos numa condição atemporal e a-subjetiva. Além disso, o agir, nesse tipo de ritual, tem dimensão coletiva, na medida em que existe desde a perspectiva de uma coletividade que o mantém como operador de realidades.

Na série fábrica, trago, por um lado, a proposta de uma perspectiva animista e, por outro, a “coisitude”. Como seria ver o mundo considerando que tudo é dotado de humanidade? Ou, como seria se tudo fosse coisa? A matéria, nesse contexto, ora ganha vida ora a-sujeita-se enquanto coisa, abrindo, dessa forma, possibilidade para se ver além das ideias já estruturadas pelo antropocentrismo em nosso tempo. Fábrica se apresenta como um exercício de perspectiva que, por meio da performance e da fotografia, busca maneiras outras de se estar no ou de se ver o mundo.

É uma fábrica porque trata da matéria que fabrica corpos e objetos. É um experimento sobre contato e sobre as muitas partes que pode ter o todo. Na fábrica produzo fotografias em preto e branco de performances que tratam da matéria do corpo na relação com a matéria dos objetos técnicos por meio de perspectivas distintas: a ideia animista presente em algumas culturas ameríndias e um “devir coisa” como uma poética de resistência do objeto. [2] Segundo André Lepecki, a categoria coisa em sua coisitude pode, para além da funcionalidade, da utilidade do “objeto utilitário de consumo”, indicar-nos um possível devir fora de um regime de uso e mais valia e, então, quiçá, escapar dos dispositivos de poder. Em relação ao sujeito, pode ocorrer o mesmo ao deslocar-se de seu centro de gravidade em direção a sua coisitude. Aproximando-se de algo anterior ao conceito que tem de si mesmo, o sujeito poderá abdicar de sua posição soberana no mundo, dando passagem a outras formas de sentir e agir. Essa suspensão do objeto de sua usabilidade e do sujeito de sua própria subjetividade, apesar de momentânea, tem sua potência. A coisa que aqui propomos funciona como um escape. Anterior ao humano e a tudo que existe, a coisa talvez seja como uma involução, um processo de depuração em devir: cada vez mais simples, econômica e sóbria (PELBART, 2013: 282).

Quando me refiro à matéria, estou interessada no contato com a matéria manufaturada, isto é, com aquilo que foi desterritorializado e transformado para dar forma ao objeto técnico. Penso a tensão, a deformação e a reorganização que se dá neste contato entre matérias distintas. Também o tempo é um elemento a se considerar. Sobretudo, estou atenta às distintas temporalidades que há no acesso das pessoas às tecnologias, bem como observo o abandono proveniente do desgaste da matéria, seja ela do corpo ou do objeto.

 

Cinthia Mendonça, ding :: Estado das Coisas (díptico), 2015

 

Como exemplo, trago o díptico ding, composição fotográfica onde mostro, em detalhe, o contato da pele com o metal de um velho trator. No contexto dessa série, fotografo a matéria-objeto (alumínio, aço, cobre, plástico, entre outras) e a matéria-corpo (pele, pelos, articulações, estrutura óssea, entre outras), considerando o peso, a textura, a forma, o design e demais qualidades de ambos. E então mostro os detalhes do contato entre corpo e objeto, evidenciando: contraste; fricção; tensão; resistência; vulnerabilidade; deformação; reorganização.

As imagens produzidas na série fábrica levam como inspiração o exemplo de algumas culturas ancestrais que consideram o corpo físico, a alma e a psique como uma só e única coisa. Isto se mostra em rituais onde a matéria é trabalhada na liberação da própria matéria, por meio de uma identificação com a própria materialidade. Por exemplo: as vísceras de um animal morto são colocadas sobre a barriga de um paciente em tratamento xamânico. As vísceras do animal em contato com o corpo do paciente vivo transformam a simbologia em coisa concreta, e a parte do animal morto opera na cura da parte da pessoa viva. Quando o corpo de um animal é usado para curar o corpo de um humano, existe entre o humano e esse corpo de animal uma identificação. Não se trata de simbologia, posto que é evidente a relação material estabelecida entre a pessoa e a operação de cura. Trata-se, então, de uma matéria em devir que edifica um corpo em processo de cura. Nesse caso, não há mesmo separação entre corpo e espírito, ou espírito e matéria.

O mesmo poderia ocorrer em alguns casos da arte da performance? Acredito que sim, porque o agir na performance fabrica enunciados de ordem coletiva, assim como fabrica corpos, isto é, o maquínico, o ritual e a performance podem contar com o agir que promove agenciamentos de dimensões, aproximando o sujeito (o corpo) novamente do mundo, sem mediações, esvaziando-o de seus mecanismos dados e datados e, em seguida, conectando-o com seu próprio desejo.

 

transdução

Na série transdução trabalho a transferência que pode haver no contato de sujeitos e objetos. Essa operação pode ser via transdução ou ressonância. Segundo Gilbert Simondon, a ressonância interna “é o modo mais primitivo da comunicação entre realidades de ordens diferentes; ela contém um duplo processo de amplificação e de condensação” (SIMONDON, 2009: 31). Já a transdução, tem como resultado a transformação do que passou de um registro a outro, por um processo que mistura transmissão, tradução e deslocamento no espaço e no tempo. Ambas operações, ressonância interna e transdução, se aplicam ao processo de individuação do ser, que, na perspectiva do autor, não é algo estável, “o ser possui uma unidade transdutora, isto é, ele pode defasar-se em relação a si próprio, ultrapassar a si próprio de um lado e de outro de seu centro” (Ibidem: 110).

A transdução [3], que dá título a essa série, usada como modelo de operação pode nos servir para o entendimento do que vem a ser um sujeito de subjetividade parcial, isto é, em devir objeto, animal, substância e coisa.

Como sabemos, a ressonância interna é o que emana a matéria seja ela viva ou não. Ela é a via pela qual a matéria realiza trocas com o meio, com sua exterioridade. Portanto, a ressonância está presente na matéria, assim como os enunciados estão presentes nos objetos. Dessa forma, a hipótese da série transdução é de que as operações de deslocamentos, como, por exemplo, o “devir-coisa”, possuem uma ressonância que substitui o enunciado que se insere em objetos e sujeitos. Porque a coisa aproxima. Esta proximidade é o que nos faz perceber a coisa em sua concretude. Não é exatamente o olhar que debruçamos sobre ela, ou o tato, o que nos faz ter certeza de que estamos diante da coisa, mas sim a percepção da matéria através de sua ressonância. Sabemos que entre o objeto (ou sujeito) e a coisa o que existe é ressonância, a mesma ressonância que se encontra na nuvem semântica da palavra. Justamente por ressoar, e não por significar ou representar, a ressonância seria uma espécie de antienunciado da matéria?

Nessa série me interesso justamente pelo entre meio que há em cada sujeito e objeto, aquilo que os aproxima como “coisas”, isto é, em um devir sem contornos em que dentro e fora se misturam.

A aproximação, nesse contexto, não significa relação ou comunicação, mas sim espaço de contato ou disposição para contato. A transferência aqui vem a substituir a ideia de comunicação ou relação que, em geral, prioriza a existência prévia de contornos definidos para sujeitos e objetos. Neste caso, tentamos provocar o des-centramento de objetos e sujeitos, a exemplo do vídeo transdução [4], onde trabalho a proximidade de um objeto técnico, que, no caso, é uma roçadeira de motor de dois pontos, e uma pessoa. Com isso, propomos deslocar o objeto e o sujeito de seus centros de gravidade, apagando, assim, os contornos existentes na definição de cada um deles, propondo, com isso, um devir que seja um tanto animal e um tanto coisa.

 

Cinthia Mendonça, transdução :: Estado das Coisas, 2015

 

Guattari afirma que ter a máquina [5] como um agenciamento seria abolir tudo aquilo que representa entidades fechadas umas em relação às outras, pois um dispositivo fechado implica modos de comunicação, ou seja, é o universo da referência comunicacional que opera. Ao contrário, se invertermos essa perspectiva, “a transferência deve ser primeira, deve já estar lá” (GUATTARI, 2003: 49). A máquina de subjetivação existirá quando os limites do ser forem ultrapassados, abrindo espaço a uma autocriação (autopoiética) onde “alguma coisa sempre passa”. O agir, nesse caso, opera justamente onde “alguma coisa se passa”; sua dinâmica não é mesmo da ordem da comunicação, mas da ordem da afecção, da transferência, ou melhor, da transdução (SIMONDON, 2007: 10-11). Dessa maneira, podemos considerar que há uma potência transdutora e irruptiva que habita as artes performativas, mas isso dependerá do agir ou do fazer e não somente da dissidência de um artista.

O fazer pressupõe um sujeito enquanto o agir é conduzido por um agenciamento mais complexo da ação que envolve desejo, vontade do corpo, e uma série de fatores não conscientes que, por fim, dão à ação uma consistência relevante para além do sujeito que a realiza. Explicando de maneira simples, talvez seja como ter mais intuição e menos afirmação como sujeito.

Por não ser facilmente apreendida pela visão, a ressonância interna seria algo da ordem da motilidade, do movimento invisível que nos aproxima do outro (objeto, aparelho, coisa), sem que esta aproximação seja por meio de um sentido de funcionalidade, de interpretabilidade ou representabilidade. Trata-se talvez de um fenômeno de in-corporação seguido de ex-corporação. A in-corporação por ressonância se dá na assimilação, na digestão, na elaboração do efeito do outro em si (o sujeito, o objeto, o aparelho ou a coisa), enquanto a ex-corporação por ressonância se dá quando os efeitos desse outro em si começam a aflorar, a suar nos poros, a mostrar-se, a transbordar, a fazer o sujeito descentrar-se.

Falemos do agir a título de exemplo do que acontece na prática da dança butô. O butô será tratado, nesse caso, como prática e não exatamente como forma de espetáculo por conta do contexto que nos pede uma análise mais relativa ao processo do que ao produto em si.

Segundo o diretor do grupo de butô Sankai-Juku, Ushio Amagatsu, “o butô é mais uma tentativa de articular a linguagem corporal do que de transmitir alguma ideia e visa proporcionar a cada espectador uma viagem particular ao seu mundo interior” (BAIOCCHI, 1995: 17). No contexto da prática da dança butô, a vida do corpo é trabalhada para além de uma instância totalmente consciente, ou melhor, a consciência é compreendida como algo que se faz também desde a vontade do corpo e não somente da mente que supostamente comanda.

Denominado por Tatsumi Hijitaka [6] como a dança da escuridão, a dança butô extrai o movimento desde o interior do corpo, de suas vísceras, de sua energia mais primária, e não exatamente de uma forma coreográfica ou de um enunciado vindo do exterior para a superfície do corpo. O butô se compromete com o exercício constante de buscar na escuridão de um corpo, em seus meandros ainda não iluminados, o movimento da dança que está sob forma de energia. Tais movimentos, por vezes, são tão mínimos que a visão não nos basta para captá-los. Por vezes, a dança se faz na motilidade do corpo, em outras palavras, nos movimentos involuntários, invisíveis — os fluidos nas veias, as batidas do coração, isto é, na ressonância do corpo. A autonomia do corpo é ouvida, é sentida e transformada em movimento e em dança. Um pouco parecido a esse agenciamento de energia é o que faz Yvonne Rainer, quando estabelece a diferenciação entre energia aparente e energia investida. Pode parecer um tanto estranha a aproximação entre o trabalho de Rainer e o butô, porém, é possível perceber o que proponho justamente no agenciamento da energia do corpo que evidencia o movimento e não o artista que dança. Ambos parecem apresentar uma força de liberação, e ao mesmo tempo são disciplinados. Apesar da disciplina, o butô nem sempre será coreografado; ele não trabalha fundamentalmente dentro do conceito de coreografia. Já Rainer, parece querer fazer da coreografia “o lugar” para provar e refletir sobre a dança e sobre o movimento que se funde a ela. Com isso ela faz irromper dentro da coreografia a vontade de um corpo.

Os movimentos da contracultura do butô dos anos de 1950 entendem a escuridão que lhes propõe Hijikata como sendo algo, digamos, não interpretado, não significado, não explicado pela colonização ocidental. Existe, nessa ideia de escuridão, uma proposição de desfalque comunicacional, significativo, que evidencia que a linguagem não dá conta dos processos corporais e subjetivos. O modo ocidental de ver e sentir o mundo, que se estabelece desde os enunciados da linguagem, não pôde interpretar o corpo e a subjetividade japonesa daquela época.

As práticas do butô funcionam de acordo com a dança de cada corpo, conforme o desejo e a imaginação de cada um, ou ainda de cada mestre de butô. “Não importa a técnica, mas o fazer sem intenção” (BAIOCCHI, 1995: 18). Um exercício recorrente do trabalho de criação se faz por meio da imobilização. São longas sessões de inércia em que se coloca o corpo em um estado de esvaziamento. Esvaziamento dos gestos e memórias cotidianas, para abrir espaço a outras intensidades. Muitas vezes, nesse processo de tentar fazer com que o corpo não se mova, muita energia é contida nele e, do ato de deixar sair ou no escape involuntário dessa energia que foi contida na imobilização, é que muitas vezes nasce um movimento. Após esse processo, o movimento que então vai preenchendo o corpo vem da imaginação. O butô põe a mente para imaginar, ocupando-a com aquilo que parece ser imprescindível para a criação. É imaginação concreta, material, imaginar e deixar que a vida interna do corpo decida para onde vai o movimento. A relação estabelecida entre imaginação e ação é direta. Por exemplo, algumas vezes, enquanto praticava o butô, eu era instruída a não separar essas coisas, pelo contrário, era levada a tentar provar a fusão delas. Decerto, o movimento nasce da materialidade da imaginação, da energia agenciada pela vida interna do corpo. Talvez isso se dê porque de fato exista em algum momento a fusão entre a alma e a matéria (corpo) e entre a ação e a imaginação.

Enquanto pratico o butô, parece-me que o processo que leva ao movimento me coloca em proximidade com o contexto que, segundo Gilles Deleuze, propicia o encontro com o desejo. Praticando-o senti-me muitas vezes próxima do “vazio”, beirando o silenciamento dos enunciados do corpo. Essa sensação me coloca no limite entre a presença da consciência que vem da imaginação e do não controle do corpo que realiza um movimento não programado.

Concluindo, podemos dizer que o agir está conectado ao acontecimento. O conceito deleuziano não pode ser explicado segundo a ordem das causalidades por bifurcar a ordem do tempo: o passado não dá mais conta de explicar e agir sobre o presente e o novo que se instaura, não respeita uma lógica de causa e consequência. O acontecimento é uma ruptura brusca, intempestiva, que faz com que o corriqueiro se torne intolerável. Ele opera uma transformação, abre procedente a novas e outras possibilidades. Porém, segundo Deleuze, esse “possível” não é exatamente o que é realizável, mas sim a própria potência de criação, “algo novo sob o sol”. Novos modos de sentir, perceber e agir são resultados do acontecimento que tem em sua medida o mundo que está por vir.

Por ser exterior ao sujeito e funcionar como um fenômeno de vidência, enxergando o que extrapola, excede, transborda, o acontecimento motiva, ou pode motivar, o ato performativo. Acima de tudo, ele depende de um encontro com o outro: o acontecimento não se dá pela discursividade, mas sim pela dimensão afetiva da coletividade que se forma nele. Acoplamento, agenciamento, pertencimento: afecção.

Sendo assim, o acontecimento traz o corpo como medida ou desmedida: o que aguenta o corpo, ou o que o corpo não aguenta mais (LAPOUJADE, 2002: 82). Isso se explica, por exemplo, quando há uma incompatibilidade entre uma sensação de porvir e uma realidade intolerável, pois é aí que se inserem as linhas de força que podem nos levar a um deslocamento ou quiçá a uma transformação. O corpo por onde “algo passa” é a bussola da construção da nova subjetividade que tratamos nesta pesquisa. É por ele e através dele e de suas afecções que novos modos de ver e sentir o mundo serão pautados.

Desse modo, podemos dizer que o agir não repete, não representa, não cria metáforas, ele abre possibilidades ao acontecimento, opera como um desarticulador da dinâmica de alienação imposta ao corpo pelos dispositivos de mediação que alimentam a distância entre o sujeito e o mundo. Ele funciona como agente conector entre o ser e a ação, na medida em que não depende das mediações impostas pelos dispositivos de poder que operam na formatação dos sujeitos.

O deslocamento ou o desaparecimento do sujeito é característica fundamental para que se possa agir na performance. Nesse contexto de deslocamento, a performance tende a evidenciar a obra, ou o movimento, ou ainda o objeto e as outras coisas em detrimento do sujeito que manipula. No agir da performance, o que move o sujeito é a coisa, ou ele é a própria coisa que se move [7].

 

 

NOTAS

[1] Os Yawalapíti são um grupo étnico que vive na porção sul do Parque Indígena do Xingu, região que ficou conhecida como Alto Xingu.

[2] No ano de 2009, André Lepecki realizou a curadoria do festival In Transit 09, ocorrido em Berlim sob o título de Resistência do Objeto. Dentre os temas e questões levadas pelas obras presentes no festival, o conceito “coisa” aparece como denotação de uma força de fuga. Analisando algumas das obras apresentadas no contexto do festival, Lepecki afirma que a coisa é uma inapreensibilidade, um não utilitarismo, o inalcançável (e o mais próximo também), isto é, em objetos, em animais, em pedras, em plantas, em pessoas, existirá sempre algo que escapa ao que o objeto faz e é feito para fazer: funcionar de acordo com a vontade (ou plano) do sujeito. Sujeito-Objeto são um só. O que faz com que ambos deixem de o ser é a coisa em cada um deles. Assim, a coisa não se reduz ao objeto ou ao duro do ente, ao contrário, ela existe como uma potência de linha de fuga. (LEPECKI, 2012: 77-78). O tema do festival faz menção aos estudos de Fred Moten, poeta, professor da Universidade da Califórnia em Riverside.

[3] Em suas teses, Do Modo de Existência dos Objetos Técnicos [Du mode d’existence des objets techniques], de 1958, e O Indivíduo e sua Gênese Físico-biológica [L’individu et sa genèse physico-biologique], de 1964, Gilbert Simondon nos traz os conceitos de transdução e de ressonância interna.

[4] Disponível em: <https://vimeo.com/139866491>.

[5] Máquina, maquinismo, <<maquínico>>: não é nem mecânico, nem orgânico. A mecânica é um sistema de ligações em cadeia de termos dependentes. A máquina, pelo contrário, é um conjunto de <<vizinhança>> entre termos heterogêneos independentes (a vizinhança topológica é independente da distância ou da contiguidade). O que define um agenciamento maquínico é o deslocamento de um centro de gravidade sobre uma linha abstrata. […] A máquina é um conjunto de vizinhança homem-utensílio-animal-coisa que é anterior em relação a eles, uma vez que é a linha abstrata que os atravessa e os faz funcionar em conjunto. (DELEUZE; PARNET, 2004: 127-128).

[6] Tatsumi Hijikata nasceu em 1928 e morreu prematuramente aos 57 anos de idade. Ele influenciou toda uma geração de japoneses que são hoje referências para a dança butô: Mishima, Kazuo Ohno, Tadashi Suzuki, entre outros.

[7] André Lepecki, em “Moving as Thing: Choreographic Critiques of the Object”, p. 78.

 

BIBLIOGRAFIA

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DELEUZE, Gilles; PARNET, Claire. Diálogos. Tradução de Eloisa Araújo Ribeiro. São Paulo: Escuta, 1998.

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PARA CITAR ESTE TEXTO

MENDONÇA, Cinthia. “‘Estado das Coisas’: Agir no Corpo, Agir na Arte da Performance”eRevista PerformatusInhumas, ano 4, n. 15, jan. 2016. ISSN: 2316-8102.

 

Revisão ortográfica de Marcio Honorio de Godoy

© 2016 eRevista Performatus e a autora

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