Corpo – Escultura

 

Rita Queiroga, Bárbara, 2012. Gesso, 230 x 120 x 70 cm

 

No fundo dos meus olhos vejo algo que vai tomando forma. Procuro os volumes e os negativos que aí possam surgir, nesse buraco negro que tudo contém e no qual me permito entrar. Mergulho, então, no precipício do ser em busca da origem, da semente que possa germinar em mim, permitindo o rompimento do óvulo: útero inicial. Exploro o corpo, universo invertido para dentro, conhecedor da verdade, túmulo dos mistérios do mundo. Em ti, carne que és, posso descobrir a árvore que nasce da terra, a seiva que percorre a matéria e os ramos que crescem para cima, como a barriga que expande quando o ar libertador penetra na cavidade.

Nesse mesmo vazio, ecoam as palavras de Carneiro, Alberto de primeiro nome, e escultor de primeira categoria, que me dizem para percorrer os leitos interiores da Árvore em mim [1], perdendo-me no embalo do barco que navego e no qual atravesso oceanos sanguíneos que desaguam nesse mar de ruas e cafés / Com vagas de olhos a rolar / Que nem me viam no convés / Tão cegas no seu vogar / E assim fui na monção / Perdido na imensidão / Deparei com uma ilha / Uma pequena maravilha [2]. Vi então que o cosmo se reflete no meu âmago, que o macro está contido no micro, que o micro espelha o macro e que o corpo é universo ele próprio.

Sem barreiras, a matéria fluí entre o dentro e o fora; o braço de Serra, que violentamente sacode o chumbo, transforma-se a pouco e pouco na fonte de onde o rio metálico nasce e depois percorre esse leito menos orgânico que é a quina de uma sala. O escultor é o feiticeiro que conhece os segredos da matéria e que através da sua manipulação pode desvendar o conhecimento cósmico em si guardado. A magia está contida no dobrar do ferro, no escavar da madeira, no espalhar do gesso, na modelação do barro; ela está na verdade do material [3]. Sensorialmente, o cosmo é revelado ao artista da matéria, cujo corpo é o local operativo da revelação estética; da transformação do sujeito. Assim, vamos medindo o mundo à nossa passagem através da fusão com essa grande escultura que ele próprio é, e cujas dimensões se intersectam entre si, construindo um enorme texto tridimensional, tal qual a hélice que gira no interior das nossas células.

Como o escultor que vai desbastando o excesso da pedra, também eu procuro descarnar a semente de mim, essa obra original onde a verdade está contida, esse Começo do mundo [4]. O meu corpo é a matéria da minha escultura e a minha escultura dá corpo ao que sou. Ele é um instrumento de trabalho que me permite organizar a matéria-prima no espaço, modelando a forma, numa ação criadora idêntica àquela que a partir do barro criou o Homem. Se modelo esse mesmo barro é porque desejo desvendar, desventrar, despojar. Procura constante pela libertação:

 – Salve Michelangelo, pelos teus Prisioneiros! [5] Ensinaste-me a colher o caroço da maçã, pérola contida na efêmera polpa da fruta. Por isso, eu te agradeço.

 

O ritmo da viagem começa agora a diminuir. Depois da fusão do corpo-meu com o corpo-escultura, com o corpo-universo, o Corpo transforma-se agora numa grande escultura, cuja matéria foi sendo modelada, escavada, lixada, rebarbada, perfurada, soldada, estirada, dobrada… tantas quantas as ações necessárias para a revelação do essencial, da síntese que me define. Lentamente, retorno desse buraco negro por detrás do fundo dos meus olhos, regresso desse universo particular onde as estrelas do céu brilham em cada átomo de mim; regresso da viagem ao som de Lucy in the sky with diamonds [6].

 

NOTAS

[1] Alberto Carneiro, “Árvore em Mim”, 2010-2011. Nogueira e castanheiro.

[2] Canção “A Ilha” do álbum “Guardador de Margens” de Rui Veloso lançada em 1983.

[3] “Truth to materials”, movimento modernista que defendia que o material do objeto artístico era o aspecto principal da obra e que, como tal, deveria ser respeitado técnica e plasticamente.

[4] Brancusi, “The Beginning of the world”, 1916. Mármore, 75.2 x 28.9 cm.

[5] “Os Prisioneiros” são obras não terminadas de Michelangelo, que demonstram como o artista trabalhava os grandes blocos de pedra.

[6] Canção de The Beatles do álbum “Sgt. Pepper’s Lonely Hearts Club Band” lançada em 1967.

 

 

PARA CITAR ESTE TEXTO

QUEIROGA, Rita. “Corpo – Escultura”. eRevista Performatus,

Inhumas, ano 3, n. 13, jan. 2015. ISSN: 2316-8102.

 

Revisão ortográfica de Marcio Honorio de Godoy

© 2015 eRevista Performatus e a autora

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