Caminhos – Intervenção Urbana Da Cia EnvieZada: A Escrita Do Corpo No Chão Da Cidade

 

Crédito da Foto: Fabricio Moser/Cia EnvieZada

 

Há sempre pontos de partida, cruzamentos e nós que nos permitem aprender algo novo caso recusemos, em primeiro lugar, a distância radical; em segundo, a distribuição dos papéis; em terceiro, as fronteiras entre territórios (RANCIÈRE, 2008, p. 21).

 

O áudio é iniciado. Percebo um tom de voz que remete à ideia de tom teatral e o que vejo são corpos no cotidiano do espaço. Corpos que se empenham em estar no espaço cotidiano, presentes nesse espírito de dia-a-dia, entretanto, com maior convicção que outros passantes. Caminhos é uma intervenção urbana, realização da Cia EnvieZada. A companhia teatral carioca foi formada em 2003 e iniciou seu percurso na Universidade Federal do Estado do Rio de Janeiro – UNIRIO. Atualmente tem como corpo: Adriano Petermann, Helen Miranda, Helga Nemeczyk, Preta Marques, a equipe musical Quatrilha, Raphael Cassou, Samantha Gilbert, Tato Teixeira, Viviane de Oliveira, além de Zé Alex na direção. [1]

A partir do material de documentação de Caminhos (programa, trilha sonora, fotos, projeto, registro em vídeo disponibilizado no site da Cia EnvieZada), adotei como análise um exercício inspirado na maneira como Thomas Clerc [2], em seu prefácio para O Neutro de Roland Barthes, analisa a estrutura organizacional da escrita geral do autor. Clerc percebe tal escrita como um corpo no espaço. Ao relatar a formatação do espaço da página, “180 páginas escritas com tinta azul em folhas de 21 X 29,7 cm”, desperta uma atenção coreográfica ao movimento realizado pelo pensamento de Barthes. Segundo Clerc, as elipses, nos documentos de Barthes, marcam anotações referentes a sintaxe do texto; ele também percebe que os sinais de pontuação substituem “articulações lógicas”. Thomas Clerc nota um encadeamento entre o ritmo de movimento cerebral e o grau de participação corporal de Roland Barthes em seus próprios textos. Tal integração, entre movimento invisível (do pensamento) e movimento visível (da escrita), direciona o leitor a um espaço em que a dança do pensamento se organiza como coreografia no papel. Em O Neutro, essa coreografia ocorre através de uma lógica de apontamentos, assim como em Caminhos.

Visualizo um texto que se organiza de modo espiralado com pausas e suspensões. Os corpos, em Caminhos, deslocam-se com intuito de apontar o fato de que “todo espectador já é um ator de sua história; todo ator, todo homem de ação, espectador da mesma história” (RANCIÈRE, 2012, p. 21). Traço, neste estudo, a perspectiva coreográfica da escrita corporal que Caminhos realiza na cidade. Visualizo frases sobre corpos que se expandem ora como flecha ora como arco.

“Como as palavras e as imagens, as histórias e as performances, podem mudar alguma coisa no mundo que vivemos”? (ibidem, p. 26). A Cia EnvieZada responde à uma fórmula antiga e simples que, insolúvel, sempre recobra sua relevância na discussão sobre a dimensão estética da arte: afinal, o teatro cumpre necessariamente uma função social transformadora? Será que este é o ponto de compatibilidade, ainda que questionado pelas diversas etapas históricas, entre o artista e a cidade? Caminhos é arte por performar através de um conjunto de “condições necessárias e suficientes” (DANTO, 2006, p. 105), sendo uma dessas condições a acentuação de movimentos, falas, ações.

O enquadramento de uma “realidade abjeta”, que Jacques Rancière nomearia “intolerável” ou, ainda, o enquadramento de uma “imagem pensativa” no sentido que o autor esmiúça como “presença do ser qualquer” são exageros ou acentos de “disposição plástica intencional”. Esse exagero – e suas gradações – é o que torna artístico o movimento, a fala, a ação comum. No caso de Caminhos, essa acentuação acontece via a coreografia de apontamentos para “semelhanças desapropriadas”. Quando observo a mulher que a atriz Helga Nemeckzy produz, apoiada em um poste e comendo maçã, atravesso uma experiência de semelhança que não me remete exatamente a um ser real, apesar dessa imagem preencher uma certa leitura de “caracterização social” (RANCIÈRE, 2012, p. 110-111).

 

Crédito da Foto: Viviane de Oliveira/Cia EnvieZada

 

Percebo um enquadramento de “realidade abjeta” quando a atriz Viviane de Oliveira, sentada na calçada, bebe, com toda delicadeza, um líquido espesso e vermelho, espremido de um absorvente íntimo no copinho transparente. A boca da atriz ali, sob dos Arcos da Lapa, é uma imagem quase tão intolerável quanto os olhos de Gutete Emerita, citada por Rancière que, a partir do trabalho de Alfredo Jaar, articula sobre o potencial da imagem do olho metonímico como indicador do que se vê, do olhar de Gutete Emerita, parte, e o que ela viu, o todo: “a metonímia que põe o olhar dessa mulher no lugar do espetáculo de horror também subverte a conta do individual e do múltiplo” (ibidem, p. 95).

Os atores, em Caminhos, são definitivamente atores de formação, plenos em sua profissão. Entretanto, o que destaco é a presença desses atores como cidadãos que justapõem corpos e vozes às narrativas da rua, talvez suas próprias. De certa maneira, enxergam com o corpo inteiro, apontam o que estão vendo no Rio de Janeiro e seu estado atual de violência e sobreposições de decadências, cimento, misérias e hiperfaturações. Assim, subvertem a máquina da representação por “mudar os lugares e a conta dos corpos” e por escreverem com corpos no chão da cidade (ibidem, p. 95).

 

Essa criação é trabalho de ficção, que não consiste em contar histórias, mas em estabelecer relações novas  entre as palavras e as formas visíveis, a palavra e a escrita, um aqui e um alhures, um então e um agora (ibidem, p. 99).

 

A moldura, em Caminhos, é uma fronteira diluída, não é de madeira, não é dourada. Quando o corpo do performer realiza um apontamento foco em uma área de imagem; a abertura da imagem, a espécie de obra de movimento e o espaço de criação na cidade, sem margens, com horizonte de céu, permitem uma experiência de observação amplificada. Arthur Danto fala do olhar sem propósito como característica humana elementar, da naturalidade da contemplação. Ao mesmo tempo, chama atenção para testes científicos que mais ou menos comprovam o interesse animal por características orgânicas exageradas, ou acentuadas, que facilitam a percepção de um outro. Tal percepção de um outro estaria atrelada ao interesse em suas respectivas propriedades ou qualidades procriativas, produtivas, reprodutivas. “A ruína conota o caráter implacável do tempo, a decadência do poder, a morte inevitável” (ibidem, p. 109). A assimetria coreográfica, a cena que se desfaz, o jornal que apaga memória da cidade são elementos que direcionam atenção ora à decadência de uma beleza ora à beleza da decadência. Esses elementos são acentos em situações comuns e, talvez, sejam atrativos ao público como saídas emancipatórias: apontamentos, desdobramentos, reflexões, novas ideias. O ciclo criativo se expande em um processo como de Caminhos, que enquadra situações urbanas afim de incentivar uma observação mais acentuada, sem intenção de conclusão rigorosa. O ciclo criativo alcança o participante-espectador em um movimento leve e de transformação em cadeia. A beleza em Caminhos é poder perceber.

 

Repensar transgressão não como uma ruptura produzida por uma avant-garde heroica exterior à ordem simbólica mas como uma fratura traçada por uma avant-garde estratégica dentro dessa ordem (FOSTER, 1996, p. 132).

 

O movimento contrafluxo recorrente nas artes propõe uma constante possibilidade de reinvenções. Quando Jacques Rancière destaca a metonímia como “figura política por excelência” (RANCIÈRE, 2012, p. 95), ele revela o jogo de justaposições que ocorre cada vez mais no campo das artes. Peggy Phelan vai propor uma tática; Phelan avalia que a “performance toca o Real através de sua resistência à redução metafórica de dois a um. Distanciando-se dos objetivos da metáfora – reprodução e prazer em direção aos objetivos da metonímia – deslocamento e dor, a performance marca o corpo pela falta”. E completa: “A performance é essa tentativa de atribuição à valores não-reprodutivos, não-metafóricos” (PHELAN, 1996, p. 152). Entretanto, o risco atual é o de um objeto artístico que se constrói a partir de táticas contrafluxo, por exemplo, de falha ou fracasso, já que com isso seja quase automaticamente admitido pelo monstro de Rancière; mesmo as táticas de produção contrafluxo são “absorvidas no ventre do monstro” (RANCIÈRE, 2012, p. 35).

Em Caminhos, as direções são dadas pela sinalização de bandeirinhas verde, vermelha e amarela nas mãos do diretor e, principalmente, pelo áudio que acompanha o espectador do início ao fim. Ouço direções de caminhos a seguir, ideias corriqueiras de status social, adjetivos para áreas e ruas. Surpreendo-me com uma poesia em voz de telemensagem ou mensagem de carro de som, lembrança de uma cidade em que vivi e que já não existe mais. É como se essa voz fosse comercial de modo arrebatador, nenhuma emoção a perpassa. Ouço, em seguida, outras vozes, ruídos de falas, tons banais, tons teatralizados. “Então talvez se você olhasse tudo de um outro ponto de vista, percebendo cada pessoa que cruza, tudo parece ganhar outra importância”, diz uma voz. Nossos olhares são convidados à observação de uma cena em que homem e mulher se relacionam à la mode. “Quando a coisa é com a gente, nós nos tornamos imbecis, burros”, ouvimos pela voz justaposta ao movimento de fala da atriz Fernanda Sal. A ansiedade corporal da atriz já é um prenúncio da ampliação gradual dos aspectos formais. Inicia-se uma cena gestual entre homem e mulher e sua repetição da mesma dança. A repetição coreográfica vai apresentando outros bailarinos que entram em cena atravessando os Arcos da Lapa de costas em direção ao público, segurando ou lendo jornais.

Os espectadores atravessam as ruas, acompanhando o fluxo de atores-bailarinos que interrompem o fluxo do trânsito, rasgam jornais, tem sua visibilidade perpassada pelo atravessamento de ônibus, bicicletas, táxis, pedestres. A música incidental vai definindo um clima justaposto ao próprio clima da cidade, ora agressiva, no tempo presente, violentamente iminente, ora melancólica, passado recente ou passado “Rio antigo”.

Atos banais são desenhados de modo lento ou acelerado e, algumas vezes, destacam-se por estarem descontextualizados. Mulher de cabelo vermelho, em cena, bebe um líquido espesso, vermelho, espremido de um absorvente íntimo; mulher de saia jeans, no público, coloca a mão em uma barba inexistente. Mulher de meia calça vermelha come uma maçã enorme apoiada em curva no poste, mulher de vestido azul no público boceja. Mulher de saia vermelha lava cabelo com detergente, mulher de touca prateada lê revista apoiada no chão da rua como se estivesse no território privado da casa e homem empapuça o pé de talco. Enquanto isso, um núcleo-público recém-nascido se pergunta “o que é isso?”, o núcleo supõe “isso é o quê?”. Ator de terno, com andar endurecido, firme, olhar duro, talvez por vestir terno, alinhava o quadro móvel que se forma bem abaixo dos Arcos da Lapa, ao lado de uma das subidas para Santa Teresa. Como um riscar de fósforo, seus corpos se acendem numa dança eletrizante, uma movimentação iniciada por um impulso e continuada. Pedestre segurando garrafinha de água desce o trajeto que bailarinos sobem, pedestre sente-se observada e dança com a cabeça, sorri, seu pensamento nos é desconhecido. Curioso imaginar: quase todos os pensamentos são desconhecidos. Que reflexões atravessam o corpo daqueles atores naquele momento? Mulher de saia jeans, no público, coça barba inexistente afim de, inconscientemente, repetir um gesto tradicional de observação da obra de arte; seu pensamento é quase uma fala que posso ouvir daqui do futuro: “interessante” ou ainda, “belo”.

Uma coreografia de movimentos aparentemente preparados acontece entre os atores. A metodologia ocorre via contaminação e técnica de improvisação afinada com olhar periférico. Um atendente de bar está sentado em um banco alto, do lado de fora do bar e faz parte das cenas múltiplas. Nenhum espetáculo que conheço trabalhou a técnica de Viewpoints [3] de modo tão favorável: no andar de cada ator vejo esquinas diversas das que ali estão arquiteturadas, cada ator decide quando mudar de trajeto e ângulo. A repetição da mudança de pensamento instantânea sugere que um pensar que pode também transformar-se instantaneamente e por influência. Um click e um ângulo de 90 graus é construído, em um click o ator decide retomar um trajeto já realizado, realizar uma curva. Uma mulher bêbada, clássico da Lapa, está caída no chão. Testemunho, em uma sequência de três interferências, temperamentos urbanos: o da atriz que passa por cima do corpo da mulher com uma potência de impacto em sua dança; o temperamento do ator que evita o corpo estirado, abandonado e escapa criando um trajeto-esquina e o temperamento do ator que, desequilibra e contorna o corpo, enquadrando seu incômodo. Todas as escolhas de engajamento com aquele corpo são escolhas que iluminam aquela presença comum em seu máximo estado de banalidade. A comunidade Lapa é convidada a trabalhar esse pensamento sobre como ela vê o corpo bêbado, em estado de decadência plena. Nesse  momento, pelo menos três justaposições naquele estado de comunidade podem ser vistas pelo público. E a caminhada segue por entre retornos, curvas, desvios e impactos, mas segue, sempre adiante, como uma flecha.

Uma rua comprida da cidade é desdobrada pelos movimentos dos componentes da Cia EnvieZada e seus espectadores. Um fenômeno incrível é registrado: como é relevante toda reação do público no registro de vídeo. Espectadores filmam e fotografam avidamente enquanto uma fala no áudio da intervenção cria um paradoxo em relação ao comportamento de documentação frenética, algo sobre como a voz revela ter queimado fotos para esquecer. “E a voz não é a manifestação do invisível, em oposição à forma visível da imagem. Ela também faz parte do processo de construção da imagem” (RANCIÈRE, 2012, p. 92). Enquanto atores e atrizes estabelecem “o jogo complexo de relações entre o visível e o invisível, o visível e a palavra, o dito e o não dito” (ibidem, p. 92) o seu público original, novos integrantes da procissão e públicos instantâneos – que pipocam “em cena” e se despedem em frações de segundo –, estabelecem as mesmas relações de contaminação de movimentos e gestual, as mesmas relações de técnicas de improvisação afinada com o olhar periférico. Movimentos de pedestres e público são, em muitos momentos, ressonâncias de movimentos provenientes dos artistas e vice-versa. Além disso, pedestres e público documentam o fenômeno, apropriam-se do efêmero teatral com técnicas avançadas de vídeo, fotografia e distribuição de imagem. É evidente a participação jornalística desse público na cena de Caminhos – suas técnicas reprodutivas são as mesmas técnicas de documentação do produtor artístico.

Tenho utilizado recorrentemente, como artista, técnicas similares às descritas e percebo que são metodologias disseminadas entre quase todos os meios, valiosas não só para diferentes processos criativos como etapas perceptivas fundamentais. Que artista não se deixa contaminar, não captura elementos de outro artista, de outra linguagem artística? Ou talvez a pergunta seja: que tipo de ser humano não reage à observação de formas que ele escolhe como emoldurar, como perceber? Enquadro uma parte do mundo que seleciono, uma opção poética: duas crianças correm talvez motivadas pela atriz Viviane de Oliveira. Ela disparou em uma corrida depois de deixar cair sua mão com peso, a mão que tocava seu próprio rosto. A caminhada é longa e que continuo a ouvir “é a voz de um corpo que transforma um acontecimento sensível em outro, esforçando-se por nos fazer ver o que ele viu” (ibidem, p. 92).

O mapa de umas das realidades do Centro do Rio de Janeiro, a da Lapa. Percebo, neste ponto, que o ator Rodrigo Pinho, em terno e gravata, age como se estivesse sendo observado desde o início. Demoro a assimilar uma leitura para sua presença, mas tão logo compreendo uma paranoia emanada, reparo na quantidade de pontos de policiamento presentes nesse trajeto tão curto. Agora o elemento exagero – do policiamento – parece ter sido programado pelo Estado do Rio de Janeiro e não pela Cia EnvieZada. A paranoia do ator é emanada por uma dança de exagero de firmeza, de estabilidade, equilíbrio entre pés, joelhos levemente dobrados, sobrancelhas sempre contraídas e queixo levemente levantado. É muito similar a minha própria paranoia que, ao invés de perceber segurança justaposta à imagem da polícia carioca ou guarda municipal, enxerga o horror que persegue o cidadão carioca “sem nome” e o faz “proferir imprecações, celebrar apoteoses, delegar um dos seus para consultar seus oráculos, outorgar representantes e rebatizá-los” (RANCIÈRE, 1996, p. 38).

 

Crédito da Foto: Rodrigo Pinho​/Cia EnvieZada

 

O ator de terno e gravata esforça-se por nos fazer ver como ele mesmo viu (RANCIÈRE, 2012, p.92): sua a relação de insegurança com o exterior é transmitida por seu estado muscular petrificado. Seu corpo recria o corpo autoritário. Em cena, vemos a polícia militar e seus membros; a partir de  Hardt e Negri pode-se caracterizar essa polícia militar como uma materialização do poder, de guerra e da tortura  (2005b, p. 41). Michel Foucault argumenta, analisando a história da punição, que o poder depende de sua materialização. Uma materialização do poder permanente na sociedade é a prisão panóptica, também expandida, também fora do seu lugar de representação, com horizonte de céu, em temporalidades múltiplas, do divino e da tecnologia. Foucault narra a história das “penas físicas” até o momento em que as “práticas punitivas se tornaram mais reticentes”. Neste ponto, “ninguém tocava mais o corpo ou quanto menos possível e depois somente para alcançar alguma outra coisa através do corpo, ele mesmo” (FOUCAULT, 1977, p. 11).

 

A redução da guerra à ação policial não a priva de sua dimensão ontológica, e na verdade a confirma. O definhamento da função guerreira e o espessamento da função policial mantêm os estigmas ontológicos da aniquilação absoluta: a polícia de guerra preserva a ameaça de genocídio e destruição nuclear como seu derradeiro fundamento (HARDT e NEGRI, 2005b, p. 41).

 

Na escadaria do Selarón é inevitável imaginar o corpo do artista em chamas regado e acalmado pelo som de chuva que ouço no áudio de Caminhos. O guarda-chuva tão comum é utilizado como escudo, como objeto sagrado, como esconderijo, mas alguns dos visitantes da escadaria de Selarón não se dão conta das novas utilidades inventadas para o guarda-chuva colorido. Selarón novamente vem ao meu pensamento como outro clássico da Lapa, um clássico rabugento e amado, imortalizado não só pelo volume de azulejos por ele selecionados e cimentados ali, mas por ter se tornado uma outra imagem, outra homenagem, uma outra justaposição em Caminhos e na cidade, como personagem sempre vestido com seu costume vermelho, só que, agora, um vermelho translúcido. A direção de arte da intervenção contempla os vários vermelhos metonímicos que marcam o Rio de Janeiro.

Um casal amando e sorrindo desce; é emocionante ser testemunha de algo tão dolorosamente comum. Uma atriz sobe de encontro ao ator Fabrício Moser. Os planos são trabalhados como um mapa da Lapa cartografado em colaboração por Mondrian, Mariano Cohn e Gastón Dupr [4]. Interessa-me ainda exercitar o mesmo tipo de relação que Tomas Clerc observa na escrita de Barthes, como os corpos de Caminhos se organizam em um espaço de apontamentos: “→ tentação de remover, burlar, evitar o paradigma, suas contaminações, suas arrogâncias →” (BARTHES, 2003, p. 18). Em uma cidade como o Rio em que o exterior é marcado pelo território dos morros, subir para o morro dos artistas, Santa Teresa, em procissão com a Cia EnvieZada já é um exercício coreográfico e político de afrontas e cruzamentos de territórios. A dança de Rudolph Laban ou o teatro de Meyerhold [5] já apontavam para lugares exteriores ao prédio do teatro. Em Caminhos, perfuramos a complacência do espaço de representação, avançando rumo à cidade, continuando esse projeto de multiplicação de focos e de pedagogia da responsabilidade: cada espectador é responsável pelo o que seleciona ver. Além disso, é responsável pela disseminação do material muitas vezes por ele reproduzido, documentado.

 

​Crédito da Foto: Fabricio Moser, Rodrigo Pinho e Fernanda Sal​/Cia EnvieZada

 

Lá no início, caminhadas se organizam à altura do nosso olhar, à distância média; logo, nos tornamos espectadores tradicionais ao assistirmos a um melodrama e, em seguida, espectadores de dança, aprendendo a desfazê-lo. O papel da dança é o de ampliar nossa percepção do espaço e, consequentemente, ampliar nossa maneira de interpretar como podemos nos mover. Neste momento, começamos a rever a cidade através dos apontamentos literais, dos corpos-setas: um trajeto curto percorrido com mais rapidez, um levantamento de corpo, uma pausa, um ônibus que entra em foco por alguns segundos. O ato teatral aqui parece renovado; um novo ato se inicia, o momento mais relevante para que a dança ocorra – o entre – se dá pela movimentação de avanço ou recuo do público direcionado. A função de diretor teatral parece estendida até aqui – ele direciona, com cuidado, as pessoas e seus afetos, seus ritmos. Nesse novo, ato a escrita de corpos em planos apresenta o chão da rua através do jornal lido no chão, revista lida no chão. Os corpos e seus afetos estão presentes no chão da cidade. Caminham pisando no chão com seus próprios pés, decidindo de onde ver. É interessante observar que o público geralmente ou em sua maioria prefere a posição de coro, de andar em grupo, talvez para ser identificado como público. Subimos para o fervo da Lapa, fim do Arco, presenciamos uma pontuação coreográfica, e, logo, voltamos à horizontalidade na longa reta que segue em direção à escadaria, na Rua Joaquim e Silva.

Um casal amando, sorrindo desce. É emocionante ser testemunha de algo tão dolorosamente comum. A atriz Samantha Gilbert sobe, penso que de encontro ao ator Fabrício Moser. Ela deita na escadaria segurando o que imagino ser uma gotinha de sangue de purpurina, a luz reflete nessa gotinha. Mais uma vez, Selarón reaparece para mim, em chamas e, agora, purpurinado. Pergunto-me se as pessoas vão continuar desaparecendo no Rio de Janeiro, se nem a política, nem a polícia, nem as documentações em vídeo, fotografia, jornal, sites darão conta de sua memória. A frase “Abre a tua voz e a melodia”, antes na voz de Elza Soares, ressoa. A seleção musical de uma voz específica e transgressora como a de Elza me faz refletir sobre o atual potencial catártico da arte. Escolho finalizar minha expectação com a imagem multifocal de pessoas subindo a escadaria, pisando em cada degrau no ritmo do samba de malandragem, equilíbrio e desequilíbrio, e da voz arranhada de Elza, muito solenes. Imagino que nem é preciso adjetivar uma voz arranhada; o adjetivo já dilui leituras que podemos fazer juntos. “Esquecer os nossos caminhos que nos levam sempre aos mesmos lugares, é o tempo da travessia”.

 

Notas

[1] O vídeo disponibilizado no site da Cia EnvieZada é referente a apresentação do dia 19 de Janeiro de 2013, em homenagem ao artista Selarón, na Lapa, com os atores Rodrigo Pinho, Helga Nemeckzy, Fernanda Sal, Ade Zanardini, Samantha Gilbert, Jean Bodin, Fabricio Moser, Viviane de Oliveira e Tato Teixeira.

[2] Quem estabeleceu, anotou e apresentou o texto O Neutro a partir do curso de mesmo título, ocorrido no ano de 1978 no Collège de France.

[3] Tenho observado que a técnica do Viewpoints, inicialmente desenvolvida pela coreógrafa Marie Overlie nos anos 1970, tem despertado o interesse de grande número de grupos e jovens artistas no Rio de Janeiro, São Paulo, Rondônia e Mato Grosso. A técnica se assemelha com a Coreologia de Rudolph Laban, mas percebo uma diferença fundamental: em Laban, o ponto de partida para pensar o espaço e a consciência do corpo no espaço se dá pela ampliação de pontos que um indivíduo pode tocar, reconhecendo assim sua própria “kinoesfera”. Em Overlie, a relevância parece ser a da relação entre corpos e fisicalidades do espaço.

[4] Mariano Cohn e Gastón Dupr são argentinos, diretores de cinema do filme El Hombre al Lado, que teve como set uma casa – projeto de arquitetura moderna de Le Corbusier. O prédio interfere nas lógicas de percepção, no modo como um vizinho enxerga o outro e os limites.

[5] Podemos ver a importância das ascensões e quedas dramáticas que cenários de espetáculos como The meeting, The sentries e The Departure of  A Time Machine apontam. Fotografias em BRAUN, Edward. Meyerhold –  A Revolution in Theatre. Londres: Methuen Drama House, 1988.

 

Bibliografia

BARTHES, Roland. O Neutro. São Paulo: Martins Fontes, 2003.

COCCO, Giuseppe. MUNDOBRAZ: O devir-Brasil do mundo e o devir-mundo do Brasil. Record, 2009.

DANTO, Arthur C. Após o fim da arte. A arte contemporânea e os limites da história. São Paulo: Odysseus Editora, 2006.

HARDT e NEGRI. A multidão – Guerra e democracia na época do império. Rio de Janeiro: Record, 2005b.

FOUCAULT, Michel.  Discipline and Punishment: The Birth of the Prison. Londres: Penguin Books, 1979.

FOSTER, Hal. The return of the real. Cambridge, Mass.: MIT Press, 1996

PHELAN, Peggy. Unmarked. The ontology of Performance: representation without reproduction. Nova Iorque: Routledge, 1996.

RANCIÈRE, Jacques. O desentendimento – Política e Filosofia. São Paulo: Editora 34,1996.

RANCIÈRE, Jacques. O espectador emancipado. São Paulo: Martins Fontes, 2012.

 

 

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