Brinquedos, Duplos e Outros Corpos Performáticos: “Experimento a Quatro Mãos”

 

Um.

 

No turbilhão de uma pandemia de escala e implicações antes inimagináveis, em que o teatro, a performance e outras artes presenciais (assim como diversas outras áreas, artísticas ou não) se veem subitamente impedidas de acontecer como tal – colocadas em xeque e desafiadas enquanto linguagem, procedimento e compartilhamento –, recebemos o convite para a publicação de um texto sobre o nosso trabalho. Decidimos, não sem um pouco de receio, falar acerca de pesquisas e obras que já estávamos fazendo até então, e que continuamos realizando de outras formas, registrando e refletindo sobre processos ainda inconclusos, ainda vivos, tensionando falas passadas com olhares atuais. O que se mantém do que fazíamos antes? O que ainda faz sentido, no mundo e no Brasil atual? O que ainda é possível, e mesmo desejável? Ainda não sabemos, mas suspeitamos. E, por isso mesmo, prosseguimos.

Produzido a quatro mãos, este texto se divide em sete partes: as partes Um e Sete foram escritas por Henrique e Marina; as partes Dois, Três, Quatro e Seis foram escritas por Henrique; a parte Cinco foi escrita por Marina; e todas as partes foram revisadas por ambos. Portanto, a primeira pessoa do singular, que flexiona a maioria dos verbos e dá o tom da leitura, ora se refere a um, ora se refere à outra. E assim vamos convocando e costurando as singularidades. Além disso, vale frisar que uma primeira versão do texto, ainda sem a contribuição de Marina, foi apresentada na X Reunião Científica da Associação Brasileira de Pesquisa e Pós-Graduação em Artes Cênicas (ABRACE) – realizada no final de 2019, na Universidade Estadual de Campinas (UNICAMP), em Campinas – e publicada recentemente em seus anais.

 

Dois.

 

Apresento, aqui, algumas das etapas da pesquisa que desenvolvo como artista e professor na Universidade Federal do Rio Grande do Sul, em Porto Alegre, intitulada Brinquedos, Duplos e Outros Corpos Performáticos: Estética, Erótica, Política. Essa pesquisa propõe a investigação de procedimentos de criação, formalização e compartilhamento a partir da relação não hierárquica entre os diferentes corpos presentes em cena, e para além dela: corpo-ator, corpo-objeto, corpo-espectador, corpo-encenador, corpo-performer, corpo-duplo, corpo-imagem, corpo-ação, corpo-espaço, corpo-cidade, dentre outros. Trata-se de uma cena surgida da interação e da fricção dos corpos (vivos e inanimados), dos materiais, das peles (humanas e não humanas), das presenças, das ações, dos espaços (concretos, simbólicos, ficcionais), criando relações e situações que atravessam e transbordam a própria cena.

Proponho pensar/experimentar o teatro em sua contaminação e hibridismo com a arte da performance e outras artes (artes visuais, dança, música, cabaré, circo, show de variedades, performance burlesca etc.), tendo as pesquisas de Giorgia Conceição, Jo Weldon, Cecilia Sotres, Ricardo Nolasco, Marina Viana, Alberto Camareiro, Alberto de Oliveira e tantas outras como interlocutoras para uma primeira abordagem dessas linguagens, principalmente nos contextos norte e latino-americanos. A mim interessam experimentações que habitam as fronteiras entre as linguagens e se dedicam a explorar as potencialidades estéticas, eróticas e políticas da interação humano/objeto, com especial atenção à utilização irônica de brinquedos, bonecos e outros objetos artificiais: cotidianos, lúdicos, comerciais, obsoletos, kitsch. O brinquedo, nesse aspecto, é observado por mim enquanto duplo, corpo-duplo – corpos duplicados, multiplicados, modificados –, ser autônomo que desafia a primazia do corpo humano como portador de performatividade, questionando dualismos como vivo/inanimado, humano/objeto, carne/plástico, natural/artificial, arte/vida.

Que performance pode surgir do embate – e da parceria, do cruzamento – entre um performer-humano e um performer-brinquedo? Como des-hierarquizar e ressignificar esses corpos e as relações históricas, afetivas e plásticas entre eles? Que procedimentos, que dispositivos são necessários para acionar tais corpos e instaurar uma performance viva, pulsante, provocativa, crítica e ironicamente sedutora? Como criar uma performance que estabeleça relações mais diretas e intensas com o público presente, provocando-o e incluindo-o na efetivação da obra? Como propor uma performance que seduza o espectador, estimulando e explorando possíveis erotismos entre os corpos que ali se encontram? Quais os efeitos e implicações políticas dessa performance? O que é possível questionar e propor publicamente com esses elementos performáticos? Quais urgências estéticas e políticas – entendidas, aqui, como indissociáveis – podem se materializar e reverberar na concretude e na efemeridade irônica de uma performance dos brinquedos?

Trata-se de um olhar alargado para as coisas da cena, as coisas concretas da cena, para os objetos, o cenário, a luz, o figurino, o som, o espaço, a plateia, o edifício (ou a rua ou qualquer outro lugar), o entorno do edifício (a rua, o bairro, a cidade, o país, o mundo), os corpos, os corpos humanos e não humanos. Trata-se de uma teatralidade e uma performatividade da matéria, dos corpos, das imagens e das sonoridades, vibrantes, dançando umas com as outras e criando sentidos, buscando caminhos de aperfeiçoamento e expansão do trabalho do ator/performer – enquanto artista do corpo e da ação – e do encenador – também enquanto artista do corpo e da ação.

Nessa performance, os brinquedos (fugidos e cooptados de alguma loja, armário ou memória afetiva qualquer) aparecem como agentes catalisadores da relação artista/espaço/espectador/contexto. Se, por um lado, o brinquedo funciona como “isca” para atrair a atenção e a empatia do espectador, como piscadela irônica que conecta os campos discursivos de dentro e fora da cena, por outro lado, o brinquedo é um ser atuante autônomo dotado de corporalidade, história, funcionamento e possibilidades próprias, capaz de não só ser manipulado pelos seres humanos mas também de determinar seu próprio destino e sua interação com os “seres vivos” com quem cohabita – em suma, o brinquedo brinca ele mesmo, o brinquedo age por si: o brinquedo é tão performer quanto o performer “de carne e osso” que, eventualmente, o trouxe para o trabalho, construindo com os espectadores os múltiplos sentidos da ação performática.

Estamos afinados então com as posições do polonês Tadeusz Kantor, que defendia um teatro no qual o objeto torna-se ator: “No teatro, eu utilizo o objeto como parceiro do ator. O ator tem nele um adversário e não um acessório destinado a ilustrar o conteúdo do espetáculo. […] Não há hierarquia nesse sentido. O texto, o ator, o espectador, o objeto têm uma significação equivalente.” (1976) Esse é o ponto.

O brinquedo, enquanto produto comercial fabricado e vendido para entreter, divertir, educar, estimular a imaginação, distrair, impressionar, hipnotizar, seduzir, para ser consumido, ser colecionado, ser desejado, é frequentemente marcado pela sociedade de consumo, mergulhado em e portador de uma cultura pop – com sua pujança e contradição social – que encontra no objeto lúdico uma forma eficaz de contato e perpetuação. O brinquedo é o rei do império adocicado e ambivalente do kitsch, em todo seu poder de sedução e sociabilização (no livro As Artes do Cover, em especial no sub-capítulo “A Sedução do Cover É a Sedução do Kitsch”, traço um panorama das leituras e implicações sociológicas, filosóficas e artísticas do kitsch). Objet trouvé / ready made de uma infância marcada pela cultura pop que inundou o Brasil e o mundo nas últimas décadas, configurando identidades e memórias, o brinquedo descontextualizado acaba por adquirir, muitas vezes, uma performatividade perigosamente apaziguadora e alienadora, que só pode ser problematizada e transformada por uma outra performatividade que, via ironia, propõe outras identidades, outras memórias, outros usos, outras relações possíveis para aqueles corpos-objetos. Eis uma performance dos brinquedos que dobra o sentido “original” do brinquedo e o convida para reperformar(-se em) uma outra vida: a vida da arte.

O brinquedo é o autômato que duplica a presença humana, é o corpo-outro que interage e joga em cena, é o outro-ator que interpela a pretensa humanidade do ator, é o outro-espectador que o faz lembrar e rir-se de si próprio e da imprevisibilidade da arte e da vida. O brinquedo é o duplo que multiplica o corpo-humano, boneco humanoide que expõe a artificialidade da “natureza” humana. Interessa, aqui, o brinquedo que age, que se move, que interage, que performa. Interessa, também, o boneco-performer que duplica o performer-humano, ironizando sua ilusória unicidade e originalidade. Interessam, portanto, os brinquedos, os duplos e tantos outros corpos performáticos, ainda por descobrir.

Brinquedo, boneco, performer, espectador: corpos sensíveis, peles respiráveis e transpassáveis, seres que se tocam e se estimulam, mutuamente. Interessa, sobretudo, a dimensão erótica da arte – aquela erótica evocada por Susan Sontag e Georges Bataille, pelo cinema visto por Rodrigo Gerace, pela arte burlesca vista por Giorgia Conceição –, uma erótica das coisas, dos objetos, dos corpos que se encontram, se provocam e se enfrentam. Somos atraídos pelos limites dos corpos, pelos limites fugidios e instáveis dos corpos, em toda sua atratividade, provocação, necessidade e risco, pela erótica enquanto interação e pulsação (in)orgânica e radical dos corpos. Dos brinquedos infantis aos brinquedos de sex shop, tudo é corpo, tudo é desejo, tudo é jogo, tudo é performance.

Como performar, artisticamente, o desejo? Como instaurar uma performance erótica que não se confunda com a pornografia mainstream-hardcore-machista mas que, ao contrário, questione as normatividades dos formatos e dos comportamentos e seja convidativa e pertinente à diversidade e à festividade dos corpos e das subjetividades, uma erótica burlesca, que burla o status quo e se oferece maliciosa, risonha e mordaz?

Entendendo o poder e a implicação social de toda obra de arte, faz-se necessário pensar a dimensão pública e política (macropolítica, micropolítica) dessa pré-nomeada performance dos brinquedos. Política enquanto posicionamento e ação perante o e no mundo, no domínio público, na sociedade, mesmo que esse posicionamento seja uma pergunta, uma insatisfação inominável, um desejo que ainda não tem forma, uma intuição de que algo precisa ser feito, aqui e agora. Pensar a dimensão política de uma performance é pensá-la em seu contexto histórico e social, é pensá-la como criadora de contexto, sempre em perspectiva, sempre conectada ao tecido de forças que regem a sociedade, é pensá-la, para além da estética, esteticamente, é pensá-la no mundo enquanto ente criado pelo e para o mundo, individual e coletivamente, é pensar na qualidade e nos desdobramentos dessa relação tão estreita com o espectador, e nos efeitos que essa estreiteza tem para com artistas e não artistas.

Estética, erótica e política são vistas, assim, como abordagens indissociáveis e mutuamente determinantes. Três palavras que indicam caminhos e provocam questões de pesquisa complexas, mas necessárias.

 

Três.

 

Diversos artistas já se dedicaram a explorar criticamente a relação performer/objeto. Marcel Duchamp, com seus ready mades, com sua irônica arte conceitual, trazendo para a arte o objeto cotidiano, deslocado e (re)estetizado pela ação do artista – objeto que abandona sua funcionalidade, mas carrega consigo toda uma história social e concretude própria dos objetos artificiais, manufaturados. Gordon Craig e sua supermarionete, espécie de insulto-provocação-exortação, que deseja o surgimento de um super-corpo super-ator super-humano, capaz de proezas que só um boneco, uma marionete além-humana estaria apta a desempenhar. Tadeusz Kantor, duplicando atores com bonecos amarrados a seus corpos e manequins espalhados pelo cenário: só é possível falar da vida através da morte, e é na inquietação mórbida do duplo que tal relação se materializa. Os bonecos e as máquinas atuam por si mesmos, eles é que manipulam os atores (juntamente com o próprio Kantor).

El Periférico de Objetos, grupo formado por Daniel Veronese, Emilio García Wehbi e Ana Alvarado, com seus espetáculos sombrios e melancólicos, teatro de formas animadas em que bonecas e outros brinquedos infantis adquirem uma gravidade e uma radicalidade típica de adultos inquietos, cruéis e sexuais, irônicos e questionadores. O mesmo Emilio García Wehbi, com seu Proyecto Filoctetes, dentre outros trabalhos igualmente contundentes, que propõe a confecção de bonecos ultrarrealistas sem rostos e a sua instalação em ruas e calçadas da cidade: corpos caídos nas sarjetas, escorados em paredes, escondidos sob viadutos, bancos e latas de lixo, em situações de risco físico e moral, corpos prostrados que chamam a atenção e confundem a percepção dos habitantes da urbe. Da mesma forma, Mark Jenkins e o Project Embed também produz duplos de corpos humanos que se inserem no cotidiano da cidade em situações inesperadas: escalando e prestes a cair de prédios, encostados em postes, saindo de calhas e cestos de lixo, atravessando paredes. Sutil ironia que se materializa em seres cuja presença desafia certezas físicas e comportamentais.

La Ribot também aparece como referência no uso/relação de/com objetos cotidianos, brinquedos e outros materiais plásticos que, ao ingressar no universo da arte, permanecem ordinários e palpáveis: a ação/situação performática emerge da interação aparentemente aleatória entre performer e objeto, esgarçando pequenas lógicas e protocolos de funcionalidade e beleza visual. Nelson Leirner, com suas instalações e assemblages compostas por miríades de bibelôs, souvenirs, brinquedos, reproduções de obras e um sem-número de objetos kitsch, é exemplo do potencial dos objetos comerciais produzidos em larga escala.

E se as relações eróticas – enquanto política dos desejos, das provocações e dos prazeres – entre performers e espectadores, performers e objetos, objetos e espectadores, é um dos elementos-chave, então a arte burlesca, o burlesco (em especial, o new burlesque norte-americano e latino-americano) surge – junto com outras variações do cabaré e dos shows de variedades – como possível paradigma dessa performance que instaura um tempo/espaço ancorado no agora. Artistas como Miss G (Giorgia Conceição), Julie Atlas Muz, Dirty Martini, Mat Fraser, Tigger, Bambi The Mermaid, Indigo Blue, Jo Weldon, Delirious Fênix, Sweetie Bird, Marcelo D’Avilla, Mayanna Rodrigues, Rubão e Ruby Hoo (Rubia Romani), Ricardo Nolasco, The Girls From Madureira, Lou Ann Devon, Emme Blanche, Anita Malcher, são importantes para se traçar um olhar nessa peculiar modalidade performática. Arte da sedução e da crítica, do questionamento de padrões de comportamento e sexualidade, do entretenimento sedutor e ironicamente mordaz, o burlesco contemporâneo é um dos campos privilegiados para a experimentação dos brinquedos e dos duplos.

As propostas de Jorge Alencar e Neto Machado (com a Dimenti Produções Culturais) exploram as diversas relações entre corpo, movimento, objeto, música, visualidade, memória e cultura pop, em espetáculos debochados e perscrutadores, como Strip Tempo, Kodak, Biblioteca de Dança e Desastro. As coreografias de Elisabete Finger também são pertinentes: a busca declarada por um erotismo da matéria – a partir do diálogo entre as proposições de Bataille e a teoria política de Jane Bennett – onde as “coisas” revelam-se como entes passíveis de uma existência e uma atuação ao mesmo tempo erógena e política.

Outro suporte, a literatura do século XIX também é pródiga neste aspecto: O Homem de Areia, de Ernst Theodor Amadeus Hoffmann, em especial, nos apresenta Olímpia, autômato que confunde e seduz os humanos que a contemplam. Olímpia é exemplo do duplo que desafia a morte e a integridade emocional de seus interlocutores ao materializar-se em um corpo de madeira, boneca fria e comovível insuflada pela projeção do outro. O autômato, nesse caso, é o duplo-corpo, dupla-vida que solapa a dualidade entre o vivo e o inanimado, entre humano e não humano, entre o ser e o parecer, entre ausência e presença. Cópia de si mesmo, o autômato tem vida própria, mecanismo artificial – concreto ou virtual – programado para simular uma vida inventada que jamais poderá ser acusada de não ser real.

Os exemplos e propostas são muitos e variados, e a lista apresentada nesta parte Três é apenas uma amostra não exaustiva (ainda poderiam ser citados artistas e grupos como Amabilis de Jesus, Anja Carr, Philippe Quesne, Chico Machado, Márcia X., Marcelo Evelin, Wagner Schwartz, Grasiele Cabelódroma, Fernando Ribeiro, a Companhia Silenciosa, o Grupo Vão, o Teatro Sarcáustico, La Pocha Nostra, a Selvática, o Erro Grupo, as Psicodrags…), um indicativo dos caminhos percorridos e a serem percorridos pela pesquisa, que pretende encontrar ainda mais e novos parceiros e alianças, com outras e novas questões, contextos e formulações.

 

Quatro.

 

Ao longo de 2019, a pesquisa se desenvolveu em diversas frentes. Um de seus frutos foi o espetáculo O Mundo Inflável de Henrique, apresentado por mim e por Marina Fervenza, no Von Teese Bar, em Porto Alegre. Trata-se de um espetáculo de cabaré formado por cinco números burlescos, cinco solos nos quais são materializados alguns conceitos, técnicas e objetos construídos / encontrados / emprestados / copiados / desenvolvidos / repetidos / vivenciados / transformados / burlados / esquecidos / abandonados / retomados / reformulados / coverizados / ampliados / manipulados / corporificados / performados.

Em uma noite quente de sábado, em um pequeno e aconchegante bar dedicado a apresentações de cabaré, burlesco, pole dance, fetiche, teatro, saraus literários e afins, eis nosso cenário de intervenção. Com nome emprestado da artista norte-americana Dita Von Teese, o Von Teese Bar recebeu as dezenas de objetos, figurinos, máscaras e brinquedos (além das generosas quantidades de glitter) que contracenaram conosco naquela peça farsesca. Um globo terrestre inflável e pouco confiável, comprado em alguma loja de 1,99 e pendurado na parede com uma seta indicativa, anunciava a quem chegava para o evento: naquela noite, aquele espaço era um grande planeta inflável.

 

O Mundo Inflável de Henrique – Primeiro Ato. Frames do vídeo de Carolina Disegna

 

O primeiro número da noite retomou elementos da performance Cicciolina’s Breakfast, realizada por mim pela primeira vez em agosto de 2011, no Instituto Itaú Cultural, em São Paulo (dentro do espetáculo El Gran Cabaret Porno, da Companhia Silenciosa), e refeita, já como trabalho independente, em diversas ocasiões e locais até 2016. Mais de três anos depois, o bar está cheio, com suas mesas ocupadas, a música ambiente para. Silêncio. Eu entro, passos e movimentos lentos, quase cerimoniosos. Ostento uma máscara mexicana de lucha libre, azul e prata, brilhosa e enigmática. Caminho até o palco (não há palco, apenas uma área do salão sem mesas, iluminada por dois pequenos refletores). Olho a plateia, música: uma alegre versão de Tico-tico no Fubá, de Ray Conniff, contrasta com a movimentação lenta e grave. Retiro a máscara mexicana. Por baixo dela, uma máscara de látex, confeccionada a partir do molde da minha própria cabeça. Se em outras obras contraceno com bonecos infláveis de sex shop, e mesmo me visto com sua pele de látex, aqui eu me transformo em boneco. Meu rosto e meu corpo agora também são látex. Henrique-simulacro.

Retiro a máscara de látex. Então surge, por baixo dela, uma nova máscara, igual à anterior. Retiro a segunda máscara: um terceiro rosto surge, debochadamente igual. Em um momento de suspense, retiro a terceira máscara. Por baixo dela, não há rosto algum: estou vestindo um traje chamado zentai – uma macacão de lycra que cobre todo o corpo. O zentai não possui abertura para olhos, nariz ou boca, apenas um zíper na parte de trás que permite a entrada e a saída. O tecido ajusta-se ao corpo, marcando-o e, ao mesmo tempo, escondendo-o. O corpo some e, com ele, qualquer humanidade imediata. Não há rosto, não há identidade – apenas a identidade (já descartada) da máscara. Instaura-se o jogo burlesco de revelar e não revelar o corpo, provocando a plateia com sua presumível nudez. Caminho entre a plateia, interajo com alguns espectadores e vou até uma pequena bolsa pendurada em uma cadeira. Abro a bolsa e dela sai uma nova (e idêntica) máscara. Visto-a e saio. Fim do número, intervalo, música ambiente.

 

O Mundo Inflável de Henrique – Segundo Ato. Frames do vídeo de Carolina Disegna

 

O segundo ato traz alguns dos meus principais companheiros de cena nos últimos anos: os brinquedos de corda, itens da coleção que mantenho desde 2003. Novamente, entro em cena no silêncio. Calça jeans, camiseta preta e tênis, tudo muito cotidiano. Trago uma cesta de piquenique, coloco-a sobre uma cadeira. Da cesta, saem três dancing flowers de pelúcia, daquelas que tocam música e dançam quando “ouvem” algum estímulo sonoro. Após a apresentação das flores, retiro da cesta, um a um, uma longa sequência de pequenos brinquedos de corda: focas, cangurus, macacos, lagartos, palhaços, fotógrafos, coelhos, cadeiras de balanço, patos, elefantes de circo. Manipulo-os delicadamente sobre uma mesa, deixando-os se mover, andar e dançar livremente ao som melódico e eloquente de Peer Gynt, de Grieg. Uma coreografia não ensaiada de corpos de plástico e engrenagens, corpos dotados de vontades e possibilidades próprias, que carregam em si uma existência lúdica e risonhamente provocativa, acionando lembranças de infância etc., e toda sorte de reações que se pode ter ao se testemunhar tal corpo de baile. Perceber, entender e aceitar o movimento e os sentidos latentes naqueles pequenos e inusitados corpos, deslocando-os e trazendo-os para a cena enquanto tais: esta é a principal técnica/metodologia de criação de uma performance dos objetos.

Aos poucos, o jogo ganha ares mais eróticos, questionando/ironizando meu próprio corpo-carne: língua de plástico, olhos de corda, boca/dentadura de corda. Provocador barato, abro o zíper da calça e coloco meu pênis para fora – um pequeno pênis (“realístico”, para usar um termo comum no mercado de produtos eróticos) de corda, que sai quicando precoce pela mesa. Mais “membros” saem da minha púbis: uma pequena vulva de corda, um dildo de “tamanho natural”, um pênis com vibrador. E, no auge da música, a apoteose daquele striptease de plástico, daquela sequência lúdico-genital, gran finale falocêntrico: um singelo pintinho amarelinho pula de minha cueca e encerra a cena, ironizando qualquer tentativa de uma virilidade masculina compulsória.

 

O Mundo Inflável de Henrique – Terceiro Ato: Tigre. Frames do vídeo de Carolina Disegna

 

Após dois números alegres e divertidos, a terceira cena tem tons mais melancólicos, buscando quebrar a expectativa do público por mais risadas e surpresas debochadas, instaurando um clima mais intimista e um pouco triste. No burlesco, nem tudo são flores, nem todo striptease é uma celebração efusiva do prazer e da liberdade dos corpos. Entro com a mesma roupa “cotidiana” do ato anterior (primeira quebra de expectativa: a da constante mudança de figurinos, sempre ornamentados e provocantes), desde o início acompanhado de uma música noturna e chorosa – Satie Blues, em um arranjo para piano e piano de brinquedo, da artista Margaret Leng Tan –, que se estende por longos seis minutos (segunda quebra: a de uma música curta e dançante, com viradas e refrões).

No palco, uma cadeira e uma mesa. Na mesa, um pequeno brinquedo de pelúcia, um tigre movido à pilha. Olho o animal, sem grandes empolgações, e faço-o funcionar: ele se move, ruge, dança e se ergue nas patas traseiras, puerilmente ameaçador. Após sua demonstração artificial de fúria animal, inicio o meu striptease (afinal, dizem os manuais de burlesco que todo número deve conter um striptease). Tiro lenta e seriamente o casaco e a camiseta, revelando a minha pele: uma pele de plush, uma pele de tigre, quentinha, laranja com listras pretas. Tiro a calça e meu corpo-tigre está lá, pijama insolente que acentua ainda mais a melancolia de uma cena cujas ações se baseiam muito mais no não fazer do que no fazer. Sento-me e não faço nada, nada além de olhar calmamente a plateia (terceira quebra: o do performer burlesco ostensivo, que dança e se agita, provocando a plateia com um sem-número de gestos e movimentos). Quem age, quem performa, ali, é o figurino que se mostra, é o tigre de pelúcia que espera pelo toque acionador, é a música que ressoa dramática, é a não ação do performer que apenas está. Aciono mais uma vez o tigre, a engrenagem ruge. Antes que a música acabe, levanto-me e saio lentamente, pela porta do bar, em direção à rua. A cena escorre em direção à cidade escura. A partir de agora, Marina assume.

 

Cinco.

 

Minha participação no espetáculo O Mundo Inflável de Henrique se inicia muito antes da apresentação do meu número. Quando permitimos que os objetos assumam seu lugar, eles são capazes de nos levar a mundos curiosos. Por isso, antes de contar sobre o número em si, gostaria de explorar um pouco esses mundos e caminhos. Esta escrita é uma tentativa de elaborar essa experiência e de compartilhar alguns questionamentos que dela surgiram.

Ao aceitar o convite para participar, tratei de começar a pensar sobre o que faria. Eu e Henrique tivemos um encontro em que ele me mostrou o material que tinha planejado e dali me surgiram algumas ideias. A princípio eu atuaria como stage kitten – figura importante na dinâmica das apresentações burlescas, responsável por organizar o palco entre os números, colocando e retirando os adereços e cenários utilizados, recolhendo os figurinos retirados e espalhados durante os stripteases, trabalhando como uma espécie de contrarregra performática, misto de função técnica e persona cênica. Entretanto, era um desejo meu e de Henrique que eu fizesse uma participação além disso, incluindo um número próprio.

A partir da premissa de infláveis e brinquedos que Henrique havia pensado para a noite, decidi fazer o caminho inverso. Ao invés de propor algo a partir dos brinquedos, resolvi propor algo a partir de suas embalagens. Há muito tempo me interessava pelo material do celofane e sua capacidade de mostrar e esconder ao mesmo tempo, e de conferir um brilho e algo de misterioso ao que está embalado. O celofane é utilizado, entre outros, como embalagem de brinquedos, doces e, nesse caso, mulheres. Itens consumíveis. Itens comestíveis. A tentativa foi de brincar com esses conteúdos e seus invólucros. Assim, com a ideia de celofane veio a de presente, e de presente, aniversário. Resolvi então confeccionar um vestido de celofane. Após ver alguns tutoriais no YouTube, me direcionei a uma papelaria no centro de Porto Alegre e comprei, para o espanto da vendedora, cerca de oito metros de papel celofane cor-de-rosa. Em seguida fui à avenida Voluntários da Pátria, conhecida por suas galerias comerciais, camelôs, vendedores ambulantes, terminal de ônibus; aquele conhecido caos dos centros urbanos brasileiros.

Em meio a esse universo de sons, cheiros e visualidades, entro em uma galeria comercial que abriga a loja de lingeries Cristal. Nela são vendidas calcinhas a partir de dois reais para todos os gostos e, ao fundo, há uma pequena sex shop. À medida que vou passando pelos corredores, procuro algum adereço que me chame atenção. Com a ideia de “presente” na cabeça, chego à bancada apinhada de produtos eróticos e busco com os olhos. Encontro uma calcinha comestível sabor chocolate. Pergunto à vendedora se há uma versão desse produto em cor-de-rosa. Ela me olha um pouco desconfiada e responde que há a versão sabor tutti frutti. Compro a calcinha comestível e uma liga de perna, também cor-de-rosa. Retomo meu caminho pelo ruas tomadas pelo caos do horário de pico e pego meu ônibus lotado para casa. Ao chegar, reúno os materiais que tenho para o número, ainda confusa com o que farei com eles. Tenho pouco tempo.

A noite da apresentação chega e após os três números de Henrique, faço minha entrada. Entro para recolher as roupas espalhadas pelo chão, as dobro e coloco em cima de uma cadeira. Sinalizo para a operadora de som, que dá o play na música escolhida: uma versão eletrônica remix, em espanhol, de Parabéns Pra Você. A música foi escolhida para acompanhar a ideia de presente, embrulho, e eu queria que fosse uma versão bastante frenética, disruptiva. Ao longo da noite, desempenhei a função de stage kitten; ao menos até esse momento em que realizo uma aparição explosiva e corporifico o desembrulhar desse presente, que, no caso, sou eu mesma.

 

O Mundo Inflável de Henrique – Marina Fervenza. Frame do vídeo de Carolina Disegna

 

Começo por desembrulhar o celofane cor-de-rosa, e convoco os espectadores a me ajudar a me despir. Vou revelando meu corpo aos poucos, e dispo inclusive minhas botas de plástico cor-de-rosa (que possuem um pequeno inflador decorativo) e, por fim, minha máscara estilo lucha libre cor-de-rosa com adornos prateados. Por baixo da máscara, está o meu rosto maquiado: nos olhos, sombra cor-de-rosa, e na boca, batom cor-de-rosa. Até minha liga de perna cor-de-rosa ofereço ao público. Após retirar a calcinha cor-de-rosa, revelo a calcinha comestível que estava por baixo. Desvisto a calcinha e a ofereço ao público. Para completar o delírio, busco entre as cortinas da parede do bar um spray de chantilly, que mostro às pessoas antes de me virar de costas. Já despida do celofane, me delicio com um chantilly numa tentativa provocativamente ingênua de cobrir minha nudez. Finalizo realizando um clássico elemento do new burlesque, o tassel twirling. Ele consiste em girar os seios cujos mamilos estão cobertos por um par de pasties (tapa mamilos) cor-de-rosa. Essa mulher / presente / brinquedo é uma mulher comestível. Um corpo a ser degustado. Frenética e ávida por descobrir, por protagonizar, por revelar.

O excesso de cor-de-rosa não se trata de um erro de repetição. A repetição é, tanto na performance quanto na escrita, um recurso. O uso excessivo da cor, considerando também a imagética relacionada a ela em nossa sociedade, visa exacerbar sua artificialidade. O cor-de-rosa em nossa sociedade é muito comumente relacionado ao gênero feminino, em oposição ao azul, associado ao gênero masculino. Menino veste azul e menina veste rosa. A ideia de exacerbar esse estereótipo de feminilidade em oposição aos estereótipos de masculinidade sugeridos por Henrique (em especial no primeiro número, onde ele também utiliza uma máscara mexicana) é proposta a partir desses elementos visuais, como a cor, o tipo de roupa escolhida e, por fim, nossos próprios corpos que carregam esses estereótipos.

Essa revelação propõe esteticamente que se despir pode ser também desembrulhar, performar pode ser como abrir um presente de aniversário pelo qual você esperou o ano todo, rasgar a embalagem, o invólucro, descobrir o interior. Ao longo da noite, crio o suspense sobre o que está por baixo dessa roupa de celofane. O presente revelado pelo striptease é a identidade.

A descoberta dessa identidade é a de um corpo de uma mulher não padrão, com pelos, estrias, gordura, manchas, celulites. Talvez aí resida uma espécie de humor: na quebra de expectativa sobre que corpo/comestível o celofane/invólucro envolve. Na decepção e desconforto do espectador reside o turning point do número: que tipo de presente você esperava ver? E por que isso te decepciona ou te agrada? Cabe ao espectador lidar com seus próprios prejulgamentos numa bebericada de drink em que disfarça seu riso desconfortável.

Outra reflexão sobre essa noite é em relação à minha tentativa de burlar a própria função de stage kitten. Nessa noite, reivindico uma função de stage kitten que seja ativa na cena e não decorativa; que não esconde, pelo contrário, exacerba sua presença. Em geral, essas pessoas não participam ativamente da cena. Eu queria participar, queria mostrar algo a mais. Por isso, ao invés de apenas recolher ou dispor os objetos no espaço, esqueço essa tarefa por um momento e me permito realizar minha própria brincadeira, nesse jogo em que mulher-brinquedo-embalagem se confundem e se friccionam.

Giorgia Conceição propõe: “O corpo burla suas significações. É o corpo que burla de si. Burla-se com o corpo. O corpo devora alteridades, deglute o outro, vence num instante a fixidez das formas e identidades.” (2013, p. 100) Penso em como criar um burlesco que seja capaz de, a partir da exacerbação dos estereótipos de gênero, explodir, ainda que momentaneamente, essa caixa de regras? Que seja capaz de burlar esse corpo e essa identidade? Que possa entender o erótico como uma potência de transformação política, de reformulação do olhar? Essas são algumas perguntas que me faço quando reflito sobre esse trabalho.

 

Seis.

 

Após mais um intervalo (os intervalos são importantes, deixando tempo e espaço para que os espectadores conversem entre si, comam, bebam, mudem de lugar e curtam o ambiente noturno do bar que funciona normalmente), volto para encerrar a noite e ensaiar um fechamento dessa cartografia inflável, e refaço um número que já apresentei em outras ocasiões, incluindo festivais como o Porto Alegre Burlesque Festival (RS) e o Yes, Nós Temos Burlesco! (RJ): La Barca. Como todo espetáculo de cabaré, formado por várias cenas curtas, independentes mas dialogantes, O Mundo Inflável de Henrique opta por encerrar o seu programa com um número já testado em outros contextos, fechando uma dramaturgia e um encenação cabareteira (uma cabaréturgia, como diz Nolasco) que considera tanto as cenas apresentadas quanto os intervalos e a participação do público, passando pela dinâmica do bar e do entorno da casa.

 

O Mundo Inflável de Henrique – Quarto Ato: La Barca. Fotografias de Mauricio Mendes

 

Em La Barca, entro em cena vestido com roupa social, calças, camisa, blazer e sapato bicolor. Carrego uma grande mala de viagem até o centro do palco, abro-a. Levanto-me, olho para a plateia, música: La Barca, bolero do cantor mexicano Luis Miguel, que toca em looping até o final da cena. Com uma expressão entre o indiferente e o contrariado, tiro minhas roupas peça por peça, dobro-as cuidadosamente e coloco-as no chão, de forma organizada, ficando vestido apenas com uma cueca branca. Em seguida, visto um par de galochas e um avental brancos – alusão barata a um açougueiro genérico, misto de trabalhador braçal e fetiche sexual. Tiro meus óculos de grau, e cubro meus mamilos e meu rosto com glitter prata: se os mamilos (femininos, sobretudo) são polêmicos e devem ser tapados, que o sejam com muito brilho. Vou até a mala e dela retiro um boneco inflável masculino, desses de sex shop. Inflo-o, fito-o, beijo-o calorosamente e deixo-o com alguém da plateia. Pego uma grande faca de açougueiro, afio-a e uso-a para esfaquear e esquartejar friamente o sorridente boneco, revelando o seu “recheio”: cerca de 160 cabeças de boneca de plástico, que se espalham pelo chão do bar, por entre mesas e pés desprevenidos. Saio, resoluto, satisfeito com o assassinato que acabei de cometer – o assassinato de um corpo que jamais esteve vivo, ou melhor, que vivia apenas a partir do ar nele insuflado, numa vida simulada que só existia (e deixou de existir) enquanto performance. O açougueiro-fake e seu boneco-carne-látex expõem-se ironicamente como simulacros, burlando a si mesmos: simulacro de gente, simulacro de sedução, simulacro de morte, simulacro de vida. Burla. Performance.

O Mundo Inflável de Henrique apresenta-se, portanto, como concretização parcial e processual de uma investigação que busca a instauração de uma performance que pretende burlar a si mesma, enquanto linguagem e fenômeno social, questionando padrões de comportamento normativos dentro e fora da cena. Lembrando que O Mundo Inflável – ao contrário do que certas pessoas insistem em acreditar, em pleno século XXI – é, assim como a Terra, redondo. O trabalho reverbera, assim, as afirmações de Conceição sobre a arte burlesca e o ato de burlar:

 

Compreendo a burla como ação, e o burlesco como estratégia de produção de diferença. Nesse sentido, seu uso desestabiliza as políticas autoritárias. Na burla do corpo, rompe-se com as lógicas e práticas normatizadoras, criando-se possibilidades de reinvenção. A burla do corpo extrapola permissões, proibições e significações. Ela elimina a reatividade que conecta o corpo a dispositivos conservadores, paralisantes. Onde há feridas, a burla abre frestas para a criação de espaços dissonantes de atuação: políticas singulares, gêneros performativos etc. Onde há gozo, ela inventa conexões que proporcionam instigantes relações entre artistas e público. O corpo burlado torna-se, ele mesmo, um caminho para a leitura crítica de dados culturais. (2018, p. 10)

 

Sete.

 

Ensaiando um final para este texto, cabe perguntar o que é e o que será dessa burla, desses corpos / objetos / comportamentos / espaços burlados nesse novo estado de coisas, nessa realidade urgente e inescapável que explicita nossas conexões e desconexões locais/globais e nos indaga com a crueldade de uma peste (como não lembrar de Artaud?). Como criar e compartilhar coletivamente com corpos humanos, não humanos e além, quando as proximidades / toques / fricções / contatos / secreções estão justificadamente interditadas e/ou limitadas? Como aproximar-se e provocar o público quando a intimidade física da cena se vê obrigada, mesmo que temporariamente, a manter-se distante e a flertar com telas de computadores, celulares e outras plataformas não presenciais, mais ou menos acessíveis? Como interagir (artistas, espectadores e demais) com brinquedos e afins, deixando-os livres para serem e fazerem o que são, quando qualquer superfície de plástico ou de metal ou de látex ou de tecido ou de pele ou de pelo ou de carne ou de qualquer outra coisa deve ser constantemente banhada em álcool 70º, desinfetada e colocada em quarentena? Como sobreviver ao vírus, mas também à assepsia e ao distanciamento que o seu controle nos exige?

Possíveis respostas a essas e outras perguntas ainda estão sendo ensaiadas – acompanhando as experiências de inúmeros artistas, associações e instituições em todo o mundo, na tentativa de reinventar e manter factível a existência das artes presenciais –, e serão, sem dúvida, provisórias e mutantes. A criação nesta pesquisa também nos provoca a buscar soluções de forma individual mas, principalmente, coletiva. Quatro ou mais mãos, e quantos corpos forem necessários e possíveis. No Brasil obtuso e violento em que estamos vivendo, é a coletividade – que não se traduz nunca em homogeneidade nem em “maioria”, pelo contrário – que pode(rá) nos proporcionar os espaços e as forças necessárias à resistência, à criatividade e à vida. Refraseando: é através do coletivo, com todas as suas singularidades articuladas, que construiremos (ou falharemos, e tentaremos de novo, e falharemos de novo, e falharemos melhor, à la Beckett) as alternativas e fricções performáticas entre nossos corpos e o mundo, entre nossos corpos como parte do mundo, em busca de uma arte para além da peste. Ou com a peste. Prosseguimos.

 

BIBLIOGRAFIA

BATAILLE, Georges. O Erotismo. São Paulo: Autêntica, 2014.

BENNETT, Jane. Vibrant Matter: A Political Ecology of Things. Durham: Duke University Press, 2010.

CONCEIÇÃO, Giorgia Barbosa da. “Qual é o lugar do burlesco no Brasil?” In: Horizonte da Cena. Publicado em: 12 de junho de 2018. Ver em: <https://www.horizontedacena.com/qual-e-o-lugar-do-burlesco-no-brasil/>.

_____. A Burla do Corpo: Estratégias e Políticas de Criação. Dissertação de Mestrado apresentada ao Programa de Pós-Graduação em Artes Cênicas da Universidade Federal da Bahia. Salvador: UFBA, 2013.

GERACE, Rodrigo. Cinema Explícito: Representações Cinematográficas do Sexo. São Paulo: Perspectiva/Edições Sesc São Paulo, 2015.

HOFFMANN, Ernst Theodor Amadeus. “O Homem de Areia”. In: CALVINO, Ítalo (org.). Contos Fantásticos do Século XIX: O Fantástico Visionário e o Fantástico Cotidiano. São Paulo: Companhia das Letras, 2004.

KANTOR, Tadeusz. “O Objeto torna-se Ator: Entrevista com Tadeusz Kantor”. In: Cadernos de Teatro, n. 68, jan.-fev.-mar. 1976. Rio de Janeiro: FUNARTE/Serviço Nacional de Teatro.

NOLASCO, Ricardo. “Cabaréturgia: Pirraças de um Bufão para uma Inscrição Histórica do Cabaré”. In: Bocas Malditas. Publicado em: 22 de abril de 2020. Ver em: <http://bocasmalditas.com.br/cabareturgia/>.

OLIVEIRA, Alberto de; CAMAREIRO, Alberto. Cravo na Carne – Fama e Fome: O Faquirismo Feminino no Brasil. São Paulo: Veneta, 2015.

SAIDEL, Henrique. As Artes do Cover: Performance para Além da Cópia e do Original. Rio de Janeiro: Circuito/POP LAB, 2019.

_____. Ironia e Metalinguagem em Cena: Ambiguidades, Aberturas. Dissertação de Mestrado apresentada ao Programa de Pós-Graduação em Teatro, CEART-UDESC. Florianópolis: UDESC, 2009.

SONTAG, Susan. Contra a Interpretação. Porto Alegre: L&PM, 1987.

SOTRES, Cecilia. Introducción al Cabaret (Con Albur). México: Paso de Gato, 2016.

VIANA, Marina. “Pequeno Organon para o Teatro Fanzine”. In: Bocas Malditas. Publicado em: 28 de maio de 2020. Ver em: <http://bocasmalditas.com.br/pequeno-organon-para-o-teatro-fanzine/>.

WELDON, Jo. The Burlesque Handbook. New York: Harper Collins Publishers, 2010.

 

 

PARA CITAR ESTA PUBLICAÇÃO

SAIDEL, Henrique; FERVENZA, Marina. “Brinquedos, Duplos e Outros Corpos Performáticos: ‘Experimento a Quatro Mãos’”. eRevista Performatus, Inhumas, ano 8, n. 21, jul. 2020. ISSN: 2316-8102.

 

Revisão ortográfica de Marcio Honorio de Godoy

Edição de Mãe Paulo

© 2020 eRevista Performatus e Xs autorXs

Texto completo: PDF