Dança como Morte (Im)Possível: Apontamentos entre 1789 e 2015

 

B. J. Falk, N. Y., Loïe Fuller, 1896

 

2015 [ introdução ]

Falar sobre a dança de Loïe Fuller é falar sobre a ascensão e permanência de um modo de recepção estética relativamente recente da dança e da produção artística como um todo, que tem suas raízes – muito provavelmente – na Revolução Francesa. Porém, para falar sobre como acredito estar articulada a relação entre a forma proposta pela dança de Fuller e nossa necessidade histórica de apreensão estética, saltarei inicialmente para uma produção muito mais recente, que sugere uma reflexão crítica sobre nossos modos de ver. Para falar de Fuller, começarei falando de Jérôme Bel – outra figura paradigmática no pensamento da dança – cuja cena de um de seus mais recentes trabalhos reativa criticamente o espírito de Fuller. Portanto, comecemos pelo fim da história.

 

2012 [ deleite estético | o que sobra quando retiramos a ilusão? ]

Em 2012, Jérôme Bel foi convidado para dirigir o grupo sueco Theater HORA, companhia de teatro formada por atores com deficiência intelectual. Como resultado do processo realizado, o grupo concebeu o espetáculo Disabled Theater, que se constitui basicamente pela apresentação verbal de cada um dos intérpretes seguida da realização de solos concebidos pelos atores. Esse material vai sendo entrecortado por uma assistente do diretor, que relata o processo dos ensaios, as escolhas realizadas e os caminhos optados. Próximo ao fim do espetáculo, a atriz Sara Hess realiza seu solo, no qual uma dança é apresentada com uma canga de praia, azul e estampada.

O suposto deleite estético proporcionado por um pano em movimentação vem em contraponto a um problema central em nosso modo de recepção estética: o modo e as condições de realização. Na lógica de um regime estético, no qual a apreciação de uma obra se dá “supostamente” como pura apreensão sensível do mundo, contemplação desinteressada de algo, tendemos a acreditar que é possível a pura isenção completa das condições históricas de um corpo e um olhar completamente direcionado a um efeito, ou a uma imagem, como se ela existisse à parte do mundo (como muitos dizem ser característico da dança de Fuller). No solo de Hess, esse suposto deleite distanciado é desnudado a partir da retirada de dois elementos essenciais: a luz e a técnica. Um corpo com limites e necessidades completamente diferentes dos nossos, exposto à luz fria que banha todo o palco. Um corpo que nos relembra que a linguagem é uma fuga e a estética uma criação histórica (e essencial para nossos tempos).

Sim, claramente nosso tempo é outro que o de Fuller. Mas…

 

1789 [ revolução francesa | apreciação estética como morte ]

Vamos voltar alguns séculos e imaginar a tomada de poder pelos revolucionários, em uma França cuja produção artística era totalmente voltada para a representação simbólica e perpetuação de poder, através da determinação de modos de fazer e de apreciação desses modos. As belas-artes que, como podemos ver em Rancière, entram em relação análoga com uma hierarquia global das ocupações políticas e sociais [1], servem bem ao modo de perpetuação de poder do Antigo Regime. Com a tomada de poder e a instauração de um governo revolucionário, o que fazer com toda uma produção artística que servia a um fim vinculado a outro regime político? Teóricos como Jacques Rancière e Boris Groys vêm articulando a discussão sobre nossa produção artística como um processo fundado nesse gesto pós-revolucionário: renegar a função social da arte criando a ideia de que a nossa relação com ela é puramente contemplativa. A Revolução Francesa é assim tomada como marco inaugural do que Rancière chama de “regime estético das artes”, “que propriamente identifica a arte no singular e desobriga essa arte de toda e qualquer regra específica […] Ele afirma a absoluta singularidade da arte e destrói ao mesmo tempo todo critério pragmático dessa singularidade” (RANCIÈRE, 2009, p. 34). É dentro desse regime – no qual hoje estamos acostumados a pensar – que ajuizamos os termos de vanguarda, modernidade ou mesmo pós-modernidade. E é também dentro dele que precisamos pensar Loïe Fuller.

Digo isso pois esse gesto estetizante transforma diretamente nossa relação com a arte, vendo-a como algo já morto, inoperante, sem função. É a partir desse gesto de separação entre obra de arte e vida que conseguimos enxergar os outros prismas daquilo que foi tomado como “cadáver”.

Ver a arte como separada do mundo, como campo de criação de outros mundos ou como exemplo de que os modos de organização do mundo não mais bastam é o passo inicial para que possamos ver a dança de Fuller e abstrair dela o próprio corpo, ou seja, reduzir sua imagem padrão e vinculá-la aos aspectos regidos a partir das sensações. A borboleta, a forma vaga que dança no espaço, a possibilidade de que o movimento possa existir sem um corpo aparente, de que o mundo seja de alguma forma infinito, de que possamos olhá-lo de longe e retomar nossa crença em alguma totalidade inapreensível do mundo, de que corporalmente jamais conseguiremos obter. Em suma, Fuller pode nos lembrar ainda hoje da nossa incansável necessidade de permanecer, de que algo além de nossos corpos se projete formalmente para o mundo, e que essa forma supere o próprio corpo e seus limites.

 

De volta a 2015 [ aberturas para corpo e linguagem ]

Tenho pensado muito sobre essa nossa complicada relação entre produção artística, corpo humano e, especificamente, as “artes performativas” e seu crescente (e recente) espaço. O discurso exaltado a respeito das potências do corpo cada vez mais me parece uma reação inversa a um crescente medo e percepção de sua finitude e fraqueza. No fundo, sabemos que um corpo não pode muita coisa, que se machuca fácil, que se quebra ou se desmonta em segundos, que está sempre à espreita para ser dissipado. Exaltar o corpo via discurso (e performá-lo é emitir um discurso específico a partir dele) é tentar fugir da consciência silenciosa de que ele é muito pouco, de que não sabemos usá-lo bem e que ele rapidamente irá embora. É tentar perpetuar via linguagem e imagem algo que necessariamente se perderá. Estetizar um corpo, encarnar nele a possibilidade de uma existência perpétua e inabalável, acreditar que seus gestos só serão efetivos quando recortados e deslocados para dentro do campo da arte é não saber o que fazer com sua existência banal e cotidiana. Isso é um problema, silencioso mas presente no ilusionismo de Fuller e escancarado no solo de Sara Hess. É o problema de uma cisão entre matéria corporal e linguagem, na qual não conseguimos deixar de entender o primeiro como “passageiro” e o segundo como “imutável”. Talvez seja por isso que Fuller só pode ser eterna quando deixa de ser mulher e passa a ser borboleta ou qualquer outra coisa que ultrapasse nossa banalidade.

Em suma, penso que queremos desesperadamente fazer parte de uma suposta totalidade do mundo, e que acreditamos que a arte é o único caminho para se obter isso. Em meio a todas as convenções que a estruturam (e certa produção em dança e performance ainda carrega muitas delas), talvez seja impossível resolver esse problema existente entre um modo de recepção no qual o gesto estético opera por uma desfuncionalização do mundo e o corpo busca se provar vivo em meio a tudo isso. Mas as tentativas de resolução, mais que válidas, são necessárias. Flertemos com o impossível.

Não é à toa que grande parte da produção performática flerta, de diferentes formas, com a morte, ou melhor, com os fins do corpo. Arrisco dizer que as obras mais potentes são as que conseguem se debruçar corajosamente sobre esse tema. Marina Abramović se tornando quase seu corpo escultura disponível 8 horas por dia para uma experiência catártica unilateral de seu público; Orlan esgarçando os limites de um corpo ideal e findando cada vez mais seu corpo supostamente natural; Jan Fabre exaurindo seus performers em peças de 8 ou 9 horas; Jérôme Bel demonstrando que nem todos os corpos conseguem realizar as demandas de um regime de pura contemplação desinteressada do mundo.

E, inaugurando esse silencioso diálogo com a morte, Loïe Loïe, que gira e ilumina até que o corpo suma e reste só uma pura forma abstrata, que nos conforta com a possibilidade de que o corpo pode morrer de outras formas, momentâneas e que geram a maior beleza possível aos nossos olhos. Morrer pode ser sublime.

 

 

NOTA

[1] Jacques Ranciére, A partilha do sensível. São Paulo: Ed. 34, 2009, p. 32.

 

 

PARA CITAR ESTE TEXTO

MARCONDES, Renan. “Dança como Morte (Im)Possível:

Apontamentos entre 1789 e 2015”. eRevista Performatus,

Inhumas, ano 4, n. 15, jan. 2016. ISSN: 2316-8102.

 

Revisão ortográfica de Marcio Honorio de Godoy

© 2016 eRevista Performatus e o autor

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