O Elo Pe(r)dido

 

Em 31 de julho de 1977, Alberto Pimenta colocou-se numa jaula do Palácio dos Chimpanzés do Jardim Zoológico da cidade de Lisboa em sua concepção performática

 

A primeira vez que ouvi falar de Alberto Pimenta, corria o ano de 1995. Foi numa aula de História da Arte, a propósito da escrita automática. A escrita automática, para quem não sabe, é aquilo que todos fazemos quando estamos ao telefone: é o rabiscar do que nos dizem do outro lado, ou daquilo que nos vem à cabeça, de forma involuntária. Um ano depois, Alberto Pimenta escreveu A Sombra do Frio na Parede, livro que comprei anos mais tarde, quando achava que ser inteligente era comprar livros de poesia surrealista e arrotar dois ou três nomes estrangeiros. Nunca mais peguei no livro, até hoje, até o dia em que tive de escrever acerca de Alberto Pimenta. Ora, em Portugal isso é quase um sacrilégio: os arautos da crítica não permitem que os críticos-wanna-be – os que tentam ser sem muito sucesso – tenham nascido depois do 25 de abril. Merda! Aqui, a crítica quer-se pré-menstrual; nem menina nem mulher, de bem com deus e com o diabo, com sol na eira e chuva no nabal; ou seja, a crítica quer-se neutra como a Suíça, mas sem chocolates, que, como dizia Pessoa, são o que no mundo contém mais metafísica.

Imbuída do espírito “alberto-pimentiano”, relembro uma ação de 1977 (ainda eu não era projeto de gente), que o autor levou a cabo. No dia 31 de julho daquele ano, Alberto Pimenta fechou-se numa jaula do jardim zoológico de Lisboa, tendo os símios como vizinhos (Adeus Criacionismo, olá Evolucionismo), e ali ficou exposto das 16 às 18h, hora boa que atrai muita família para dar seu passeio domingueiro. Para identificá-lo, havia a tabuleta “Homo-sapiens”, só para informação adicional que serviria de título do livro onde relata essa experiência em que contou com a colaboração de Tabucchi e Alexandre O’Neill, entre outros. Naquela altura, os comentários que Alberto Pimenta registou seriam muito parecidos com os que registaria hoje, já que nessa sociedade em que a criatividade parece ser obrigatoriamente condição sine qua non o indivíduo não pertence a um conjunto de círculos, e as palavras de ordem face à surpresa parecem ser curiosamente as mesmas do século passado. Nesse mesmo ano, Alberto Pimenta escreveu o Discurso Sobre o Filho-da-Puta (assim mesmo, com hífen entre as palavras, para arrasar com o novo acordo ortográfico que eu hoje estou com a “macaca”, para dar continuidade ao tema). Ora, este discurso deu a Portugal uma frase que ainda hoje – ou principalmente hoje – o caracteriza. Cá “o sonho de qualquer pequeno filho-da-puta é ser um grande filho-da-puta”; ou seja, a inveja com que Camões acabava Os Lusíadas e com que temos sido brindados pela imprensa angolana. “Tchin-Tchin” para vocês também!

De que forma isso nos leva a Alberto Pimenta e à performance desse ido ano de 1977? Pimenta saiu ao fim de duas horas, mas continuamos a agir como se alguém ainda estivesse lá: condescendemos com sobranceria os que ousaram inovar. Assim como condescendemos quando vimos que Beuys falou com a lebre. O que quero dizer é que a arte também é feita dos seus meios, dos seus materiais, do marketing e, acima de tudo, das quatro paredes que a recebem. Dou um exemplo: em 2011, o Museu do Quai Branly, em Paris, inaugurou uma exposição denominada Zoológico Humano: Uma Invenção do Selvagem, onde mostrava a forma como o homem “estrangeiro” ou “descoberto” (não é que ele estivesse escondido, mas não importa…) foi vista pelo homem descobridor. Diz-se que quando o branco viu o negro pensou que estava a ver um macaco, e que quando o negro viu o branco pensava que estava a ver um fantasma. De lá para cá, o ocidental ganhou a dianteira, expondo o produto da sua descoberta como uma aberração, em feiras, exposições coloniais, universais e circos. Esse produto é tão-somente o resultado da busca pelo “elo perdido” na evolução e, penso, era para ele que Alberto Pimenta alertava nessa performance. É ele o elo perdido entre o macaco na jaula ao lado e o homem que o observa. O autor não apresentou, ao contrário das atrações do passado, nenhuma deficiência física que tornasse a sua presença mais apetecível. Cremos até que se tal acontecesse, vozes de indignação se fariam ouvir. Pelo contrário, ele mostrou-se como era, mas, mesmo assim, causou estranheza, mostrando que o que separa a arte da depravação, a aceitação entusiástica e a condescendência, podem ser meia-dúzia de barras de metal. O metal, o metal e a mente.

 

 

PARA CITAR ESTE TEXTO

PINHO, Juliana. “O Elo Pe(r)dido”. eRevista Performatus

Inhumas, ano 1, n. 2, jan. 2013. ISSN: 2316-8102.

 

Revisão ortográfica de Marcio Honorio de Godoy

Edição de Da Mata

© 2013 eRevista Performatus e a autora

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