A Performance do Cotidiano

 

Há na performance uma noção de presença que é persistente. Se a ideia de acontecimento, tão frequentemente referida nos textos teóricos e nas ações, remete especialmente ao aspecto temporal da performance, por meio da noção de presença, talvez possamos remeter também à sua complexa espacialidade. Os fluxos entre camadas de presença dão origem a uma multiplicidade que engendra agenciamentos, no qual estão coimplicados performers e públicos, assim como pessoas e objetos.

A presença na performance se constitui no encontro do corpo do artista junto ao corpo do público e do conjunto de sentidos daí decorrentes. Uma primeira camada de presença remete à ideia de estar coetaneamente, e diz respeito ao estabelecimento de uma conivência entre os envolvidos – ainda que, muitas vezes, da ação resulte contraposição ou antagonismo entre performer e público –, que faz do não performer um cúmplice, mais do que uma testemunha. A segunda camada é a presença em mim do gesto do outro que, por sua vez, pressupõe uma presença enquanto duplo reconhecimento. Por um lado, esse reconhecimento é aquele do performer que, ao assumir o gesto exagerando-o, buscando suas intensidades, o leva ao limite, transformando-o num gesto hiperbólico. Ao fazê-lo, presentifica-o, tomando consciência em seu corpo de algo que, em geral, fazemos, por assim dizer, “sem alma”. Por outro lado, há ademais o reconhecimento operado pelo espectador que, ao identificar em seu corpo a capacidade de executar um gesto análogo, o toma para si, deixando-se habitar por ele por extensão. Por fim, a presença no espaço público evoca mais do que a participação temporal do performer – mobiliza, sobretudo, a operação de um espaço-processo, a sua contínua e sempre inacabada constituição, em que estão implicados os fluxos de aproximação e distanciamento que o atravessam.

Pensar a espacialidade a partir da noção de presença é um expediente que se pauta pelo entendimento do lugar como encontro de narrativas espaciais na temporalidade. Conforme afirma Doreen Massey: “o que é especial sobre o lugar é, precisamente, esse acabar juntos, o inevitável desafio de negociar um aqui-agora” (MASSEY, 2008, p. 203). Em última instância, o acontecimento da performance evidencia o caráter de acontecimento do lugar. Ao convocar para o espaço disruptivas intensidades nos agenciamentos já estabelecidos, a performance provoca rearranjos espaciais e engendra novas sensibilidades individuais e coletivas.

Levando isso em consideração, quais são as possibilidades de existência da performance em tempos enclausurados? A resposta mais imediata nos remete, evidentemente, aos caminhos já percorridos pela performance que a distanciam das referidas camadas de presença por meio de desdobramentos como fotoperformance, videoperformance, bem como propostas de roteiros e de partituras a serem executadas. Parece haver, todavia, um distinto percurso de pensamento possível, provocado por um conjunto de imagens fotográficas que circularam nas redes sociais digitais nos últimos dois meses simultâneas às atualizações da Organização Mundial de Saúde acerca das recomendações sobre o uso de máscaras por todos os cidadãos, independentemente de apresentarem sintomas da Covid-19 [1]. Sabe-se que os novos protocolos sanitários alteraram de modo significativo gestos habituais e maneiras de estar no espaço público (com a exceção de contextos já acostumados há décadas com a adoção de medidas sanitárias individuais, como é o caso de países do Extremo Oriente). Não sem razão, muitas pessoas sinalizam que a percepção do uso generalizado das máscaras reforça uma sensação de anormalidade no cotidiano.

As imagens citadas compõem um panorama desordenado e anônimo, não sendo datadas nem geograficamente identificadas, de pessoas em estabelecimentos comerciais, nos transportes públicos ou nas ruas, executando, portanto, ações corriqueiras do seu dia a dia. No entanto, o que chama a atenção em tais flagrantes é o uso de artefatos inusitados, que fazem as vezes de equipamentos de proteção, mas que não são nada convincentes no que se refere à eficácia, nem tampouco ao fato de serem a única alternativa de proteção.

Não nos convencem, mas nos atraem: são a crônica da realidade cotidiana. De sacos de papel a trajes de mergulho submarino, de esponjas de louça a capacetes de fantasias interestelares, um amontoado de dispositivos invade cenários urbanos: comprar suprimentos, cuidar da saúde básica, pegar o metrô. Colocam, assim, à deriva a partitura da vida diária.

Esses corpos sem nomes e, quase sempre, com rostos ocultados, doravante conhecidos, amplificam suas presenças no espaço público, tornam estranho o espaço e inquietam a nossa cômoda relação com a rotina, despertam algumas das seguintes perguntas para as quais não teremos respostas senão parciais: Buscariam experimentar outra sensação de ocupar os ambientes coletivos? Esperariam que as pessoas mantenham por esse expediente a distância recomendada pelas organizações sanitárias? Ambicionariam ser fotografados pelos passantes e viralizar nas redes?

O fato é que tais indivíduos atuam, a contragosto ou voluntariamente (pouco importa nesse caso), como efetivos performers, embora não pareçam seguir um roteiro previamente concebido ou buscar um sentido poético ou estético da ação. Ainda que as motivações sejam desconhecidas e, seguramente, variadas para cada uma daquelas situações, posto não se tratar de um movimento – inclusive vale apontar que a sua circulação nas redes apareceu como conjunto, num ato de apócrifa “curadoria”, o que sugere que muitos desses indivíduos agiram sem terem visto previamente uma imagem de ações assemelhadas –, podemos argumentar que seus proponentes imaginavam alguma experiência ou reação, almejando explorar sensações em si e/ou provocá-las nos outros.

A circulação dessas imagens como registro de ações no espaço público faz com que seus sentidos potenciais se desdobrem, faz com que questionemos como nos sentiríamos por estar em peculiar companhia na plataforma do metrô, ou nos leva a pensar sobre como seria atravessar o intervalo de nossa casa ao supermercado, para cumprir uma das poucas tarefas a que estamos por hora autorizados, trajando algo inusitado encontrado em nosso armário.

 

João Paulo Guadanucci, Compras, 2020

 

Aparentemente, com a restrição temporária do direito de circular livremente em espaços públicos, despontaram outras formas de ocupá-lo. Todavia, esses ensaios performáticos não coordenados intensificam a presença e evidenciam o caráter eventual do lugar: “uma constelação de processos, em vez de uma coisa” (MASSEY, 2008, p. 203). O interdito convocou a necessidade de novos agenciamentos, outras conexões entre os corpos, agora obrigatoriamente distanciados, e entre corpos e coisas, agora exaustivamente higienizadas. Tais ações tateiam o que poderá ser, daqui em diante, os fluxos de nossa presença. Seria factível afirmar que nunca estivemos tão atentos aos desconhecidos que estão ombro a ombro conosco no transporte público ou à topografia criada pela disposição das gôndolas no supermercado. Envolvidos em camadas de plástico, papel, alumínio ou outros materiais provavelmente sintéticos, indivíduos vestindo indumentárias reconhecíveis ou refuncionalizando objetos não convencionais ocupam muito mais espaço e, desse modo, extrapolam os limites de uma espacialidade tão familiar, curiosamente a despeito de nosso lugar parecer estar mais restrito do que nunca.

Esses transeuntes revisitam a experiência de estar coletivamente, assim como as intensidades das intencionalidades das ações habituais, transformando o cotidiano numa experiência estética e assumindo, provisoriamente, o lugar dos artistas. Convocam, assim, uma arrojada noção de presença ao performatizar a catástrofe e esgarçar a realidade, impedindo que nos acomodemos à crença de que “tudo está bem”.

 

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Impedidos de fazer andar nossos corpos, que as pequenas rupturas no roteiro da vida permitam vagar nossos pensamentos.

 

NOTAS

[1] A orientação inicial da Organização Mundial de Saúde, revista em abril, era de que as máscaras fossem utilizadas apenas por profissionais de saúde e pessoas com possíveis sintomas, respondendo ao receio de que houvesse escassez desses insumos de proteção àqueles que precisam utilizá-los por pertencerem a grupos de risco e/ou a funções categorizadas como sendo de linha de frente.

 

BIBLIOGRAFIA

MASSEY, Doreen. Pelo Espaço: Uma Nova Política da Espacialidade. Trad. de Hilda Pareto Maciel e Rogério Haesbaert. Rio de Janeiro: Bertrand Brasil, 2008.

 

 

PARA CITAR ESTA PUBLICAÇÃO

MACEDO, Suianni Cordeiro. “A Performance do Cotidiano”. eRevista Performatus, Inhumas, ano 8, n. 21, jul. 2020. ISSN: 2316-8102.

 

Revisão ortográfica de Marcio Honorio de Godoy

Edição de Mãe Paulo

© 2020 eRevista Performatus e a autora

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