Ricardo Basbaum
Entrevista a Bianca Tinoco, em 26 de fevereiro de 2009
Retrato de Ricardo Basbaum feito Enéas Valle em 1987
RICARDO BASBAUM: Gostaria de fazer algumas considerações introdutórias. Primeiro, acho importante tentarmos entrar no buraco estranhíssimo deste assunto que você escolheu, porque a gente sabe que a cena da arte brasileira nos anos 1980 foi mais do que a tal volta da pintura, embora só se fale disso. Por que esse silêncio? Estamos em 2009, são 25 anos da exposição Como Vai Você, Geração 80?, e é importante se perguntar por que há uma espécie de surdez, de cegueira – que me incomoda por ter vivido o período intensamente. Fiz um trabalho acadêmico durante um curso na PUC-RJ e constatei que esse silêncio continua e é problemático. Esse período coloca várias questões que ainda não foram percebidas, e que são mais do que simplesmente de gênero, performance ou pintura. Coloca-se uma questão ampla para que os historiadores e os críticos passem a pensar o período de outra maneira. Eles usam seus mecanismos de análise historiográficos ou críticos, mas não entendem o que aconteceu, porque só olham dessa maneira segmentada e não conseguem compreender o papel das artes visuais como fenômeno cultural do período. Isso mostra uma incapacidade de certos modelos de crítica e de historiografia em lidarem com questões das artes visuais. Então, acho que a maneira de lidar com o período é fazer desse silêncio, ou dessa surdez ou mudez, uma eloquência. Eu estabeleci para mim mesmo, durante muito tempo, um compromisso pessoal de dar um testemunho e colocar minha visão daquele momento, sempre que fazia uma apresentação pública do meu trabalho, uma fala ou palestra. Porque nada era mencionado sobre esse assunto – e, quando se falava nele, apareciam essas visões estereotipadas e mecânicas. A partir de certo momento, decidi não fazer mais isso, pois achei que a situação estava começando a mudar muito lentamente. Mas sinto que tenho muito a falar, como depoimento pessoal e expondo uma visão crítica.
BIANCA TINOCO: Como você começou a se utilizar da performance como meio de expressão? Quais eram suas referências?
RICARDO BASBAUM: Esse início se deu antes da chamada Geração 80, em 1981. E está totalmente marcado pelo meu encontro com Alexandre Dacosta, também artista visual, músico, ator etc. Nos encontramos através da música – ele toca cavaquinho e violão, eu toco violão. Estávamos no final da adolescência, e vínhamos, cada um a seu modo, de experiências com música, cinema. Vim de São Paulo para o Rio em 1977, aos dezesseis anos, e imagino que, se continuasse em São Paulo, iria estudar cinema. Quando vim para o Rio, eu já estudava violão, continuei interessado por cinema e não tinha interesse tão concreto nas artes visuais, mas desenhava um pouco. A partir desse encontro com Alexandre Dacosta no final dos anos 1970, proporcionado por amigos em comum que eram todos músicos, nos encontrávamos para tocar. Como ele tinha a família dentro das artes visuais, nossos encontros puxaram um pouco a questão do desenho, da pintura, uma preocupação com a imagem que eu já tinha um pouco com o cinema. E começamos a trabalhar juntos, criamos a Dupla Especializada em 1981.
No início, nosso trabalho era basicamente de produção gráfica, uma espécie de grafite impresso – fazíamos cartazes e espalhávamos pela cidade. Fizemos cartazes em 1981, 1982, 1983 e 1984, seguindo essa estratégia de intervenções nas ruas. A proposta foi se tornando mais concreta, fomos aprendendo com o meio, escutando mais o trabalho. Mas o trabalho não era só os cartazes, a gente continuava com a música. Em 1981, logo na primeira exposição que fizemos, no bar Emoções Baratas, apresentamos desenhos e pinturas individuais e a quatro mãos. E fizemos uma primeira performance, Improviso para Pintura e Música, em que pintamos uma tela ao vivo, no chão, ao som dos improvisos de um trombonista amigo nosso, chamado Lulu Pereira. Esses primeiros trabalhos geraram uma espécie de posição crítica em relação à nossa proposta. Quando fazíamos um cartaz, procurávamos trabalhar mecanismos de divulgação, entregar nas redações de jornal um pequeno press release, desenvolver uma maneira de acionar os meios de comunicação. Visitamos literalmente todos os jornais e rádios, levando nosso release. Não havia na época a figura do divulgador, desse intermediário, então a gente ia direto aos jornais, deixava material nos escaninhos de todos os jornalistas, dos colunistas, das rádios. Um pouco de maneira ingênua, mas também desenvolvendo a consciência de que era necessário manter uma relação com os meios de comunicação. O trabalho se estruturou nessa linha.
A segunda exposição que fizemos juntos foi na Galeria Contemporânea, em 1983. Eram trabalhos individuais meus e dele e cartazes da Dupla que a gente espalhou, do lado de dentro e de fora da galeria. Foi nessa exposição que a gente conheceu o Alex Hamburger. O primeiro cartaz foi bem simples, juntamos nossas maneiras de trabalhar e fizemos algo que podia ser reproduzido e colado pelas ruas. Este primeiro foi feito em serigrafia, o segundo, em offset; colávamos nos lugares e íamos documentando. Com o terceiro, ganhamos destaque: ele saiu na revista Veja, o que foi importante como divulgação para o trabalho e como intervenção nos meios de comunicação de massa, a exemplo do que iríamos formular um pouco mais tarde. Por conta desse cartaz e de outras exposições individuais e em grupo, fomos chamados para a Geração 80 em 1984, individualmente. Em 1984, 1985, considero que o trabalho da Dupla Especializada ganhou uma forma mais definida. Em 1984, fizemos um cartaz conceitual e uma filipeta-manifesto. O cartaz vinha só com os nossos nomes e a definição “artistas plásticos”, no modo dos cartazes lambe-lambe de shows e de bares do subúrbio. Contratamos uma equipe que fez uma boa colagem pelo Rio de Janeiro, mais profissional e intensa. Nos locais onde eram colados os cartazes, nós distribuíamos no dia seguinte uma filipeta-manifesto. Era uma espécie de plataforma da Dupla Especializada, em que nos colocamos mais críticos em relação ao contexto da arte brasileira no início dos anos 1980. Colocamos três reivindicações escritas de cabeça pra baixo: “espaço para os artistas plásticos na televisão”, “eleições livres e diretas para presidente” e “pela legalização do aborto”. Essa filipeta trazia um posicionamento crítico e político, um dado curioso frente ao total desengajamento da pintura dos anos 1980. Foi nesse momento que percebemos uma transformação do circuito, com a entrada em jogo de mecanismos de construção cultural da figura do artista. O meio das artes plásticas, que foi sempre protegido em relação a isso, estava entrando na mesma avalanche da música pop, por exemplo. É isso que os historiadores e os críticos não percebem, essa dimensão do fenômeno cultural, e ficam fazendo uma análise das obras como se isso bastasse. Os anos 1980 precisam ser revistos não apenas a partir das obras mas da construção da imagem do artista, do rearranjo do circuito de arte, ocorrido por conta da instalação desse outro regime econômico, desse novo capitalismo cognitivo globalizado, que coloca para a arte um outro lugar no campo da cultura e do capital. Não que a gente fosse contra essa relação econômica da arte com o mercado, mas parecia tudo muito estranho na época, a maneira como se agenciava os trabalhos – achávamos que essa seleção deixava de lado qualquer trabalho mais provocador, engavetava muito os artistas segundo categorias. A Dupla Especializada e também o Grupo Seis Mãos eram multimídia: fazíamos pinturas individuais, coletivas, cartazes, performances, músicas em conjunto, pensávamos as nossas primeiras experiências de vídeo… Não era possível nos enquadrar nos formatos que existiam.
Nesses releases que a Dupla Especializada mandou com os primeiros cartazes, escrevemos: “as galerias não estão abertas para os jovens artistas”. Era uma frase engraçada, bem ingênua, mas sintomática do período, de quem pensava “por onde começo a trabalhar? Por onde se inserir?” E não era pelas galerias; construímos nosso espaço por meio da intervenção nas ruas, da presença nos meios de comunicação. Esse cartaz [com os nomes] tem registros do Frederico Morais [jornal O Globo], da revista Veja, do Walmir Ayala [Jornal do Commercio]. Houve matérias muito engraçadas como a do Jornal do Brasil, que trazia como título “Eles Só Querem Aparecer”. Fomos formulando nossa estratégia com mais consciência da construção da imagem através da mídia. Em qualquer momento que o trabalho era registrado no jornal, na televisão, no rádio, mostrávamos um gesto que era parte de uma intervenção nossa nos meios de comunicação de massa.
Dupla Especializada, Filipeta-manifesto, 1984. Tipografia, 22 x 16 cm. Arquivo Dupla Especializada
Dupla Especializada, Cartaz-conceitual, Rio de Janeiro, 1984. Fotografia analógica. Arquivo Dupla Especializada
Dupla Especializada, Hino ao Dia Nacional do Artista Plástico, Cinelândia, Rio de Janeiro, Brasil, 1989. Fotografia de Márcio R. M.
Em 1985, começamos as apresentações de música. Alexandre e eu já fazíamos música juntos desde 1981, e resolvemos que a Dupla Especializada tinha que intervir no rádio e na televisão – nosso plano era de criar músicas e um videoclipe. Fizemos uma série de canções que tinham como tema questões das artes visuais. Um dia nos convidaram para um evento na Lagoa [Rodrigo de Freitas], e compusemos, para a ocasião, o “Hino ao Dia Nacional do Artista Plástico”, que cantamos durante uma performance no local. Também tocamos o Hino em um show na Cinelândia com várias figuras ilustres, entre elas Elke Maravilha. Fizemos um jingle chamado “Geração 80”: “beba Geração 80, coma Geração 80, use Geração 80”. Havia também um jingle da Dupla Especializada, uma música chamada “Impresso”, que trabalhava com uma frase que a gente usava na filipeta: “O que é impresso é o que fica para a história”. Era uma plataforma nossa, dizendo “a gente tem sim que ir nos jornais pois, se não for, quem é que vai lembrar do que a gente fez? Que pelo menos fique registrado, que se produza um documento, um gesto de intervenção nessa superfície que é a imprensa, que a gente sabe que dilui o trabalho mas deixa uma marca”. Éramos a “Dupla Especializada em fazer cartaz e intervir nos meios de comunicação”. Apresentamos essas músicas em alguns eventos, que a gente chamava de shows-performance. Tocamos quatro músicas em um evento chamado Circo de Imagens, na Estação Carioca do Metrô [1985].
Talvez o show mais consistente tenha sido uma apresentação em um evento que o Teatro de Bolso do Leblon fez em 1986, uma série de apresentações em vários dias com grupos independentes. Tivemos uma noite nesse evento, e dividimos a agenda com o grupo Coro Come, se não me engano. No show-performance, apresentamos essas músicas, lemos alguns trechos de texto, citamos Cildo Meireles e outros. Levamos o mesmo formato para São Paulo, para um evento chamado Brasil Performance, em 1986. Nesse show, pedimos para que fossem convidados garis de São Paulo, que viessem uniformizados e ficassem na plateia, porque a gente tinha mexido com lixo, recolhia lixo do ambiente e usava em nossa pintura ao vivo. Em 1985, fizemos também um clipe, Egoclip, dirigido pela Sandra Kogut, que é muito engraçado, tem a paródia de um programa de televisão, um videoclipe no meio do vídeo. Em 1987, gravamos quatro músicas em estúdio, com arranjos do Antônio Saraiva, para o que seria um compacto duplo na época. Gravamos “Dupla Especializada”, que é uma salsa; “Impresso”, “Hino ao Dia Nacional do Artista Plástico” e “Geração 80”, que simula uma apresentação ao vivo. Para o coro do “Hino”, convidamos Lygia Pape, Hilton Berredo, Antonio Manuel, Enéas Valle, Gerardo Vilaseca, Paulo Roberto Leal, Márcia Ramos, Lúcia Beatriz. Até hoje não conseguimos lançar, mas temos planos de fazer isso em breve.
Uma referência nossa era a Banda Performática do [José Roberto] Aguilar, e não só por fazer essa mistura de artes visuais e música, já na esfera da música pop. Eles chegaram a gravar um disco, Alexandre participou de algumas apresentações, e eu fiz assistência de vídeo em uma filmagem deles. A Dupla Especializada fez uma apresentação de um de seus cartazes no show que realizaram no Morro da Urca, e vários músicos que eu conhecia da época em que morei em São Paulo integravam a Banda, como Flávio Smith; Plínio Veras trabalhava com os vídeos da Banda Performática. Conhecemos o Arnaldo [Antunes] nesse momento, quase participamos de alguns projetos editoriais que o Arnaldo fazia e fomos muito amigos da irmã do Arnaldo, a Sandra.
Continuamos fazendo durante os anos 1980 as performances musicais, pop, de pintura ao vivo – principalmente com o Grupo Seis Mãos. E a coisa avançava, chegamos a fazer um projeto para o MAM/RJ com Paulo Herkenhoff, em que a gente construiria um ambiente, uma sala, e ficaria lá dentro tocando e fazendo coisas. Essa exposição nunca aconteceu, uma pena. Em um dado momento, a Dupla Especializada acabou.
Seis Mãos, Improviso para Pintura e Música, Ipanema, Rio de Janeiro, Brasil, 1983. Fotografia de Barrão
Outro capítulo é o Grupo Seis Mãos, que Alexandre, Barrão e eu formamos em 1983. Alexandre já trabalhava como ator em teatro, cinema e TV naquela época, como faz até hoje. Barrão tinha sido aluno do Asdrúbal [Trouxe o Trombone, grupo teatral carioca], se não me engano. E Barrão fazia adereços para peças teatrais. Eles estavam trabalhando no mesmo espetáculo, acho que nos encontramos no Baixo Gávea, e começamos a fazer pinturas a seis mãos. Incorporamos algo que a Dupla Especializada já tinha feito, esses improvisos de pintura e música, e apresentamos várias performances desse tipo, em espaços públicos como a Praça Nossa Senhora da Paz, o Centro Calouste Gulbenkian, a PUC, a Faculdade da Cidade. Eram performances dos três, e até tínhamos um figurino: os três usavam jaleco. Até hoje temos várias pinturas a seis mãos, mas elas não circulam, não entendo o porquê. Algumas telas estão comigo, umas com Alexandre e outras com Barrão.
Fizemos uma exposição dessas pinturas no Circo Voador, em 1983, em um espaço chamado Galera das Artes. Ao longo da temporada da exposição, fizemos uma performance ao vivo durante um show do cantor Serguei, com o Circo lotado. Tínhamos uma relação forte com a música pop, com esse tipo de ambiente que era totalmente fora do circuito tradicional das artes. O Seis Mãos e a Dupla Especializada corriam em paralelo, era tudo muito intenso. Eu tinha meu trabalho individual, Dacosta e Barrão também, eu trabalhava com Dacosta na Dupla Especializada, e os três ainda tinham o Grupo Seis Mãos. Para o público, era muito complicado entender quando se tratava do trabalho individual, em dupla ou em trio, e quem era quem. Frequentemente me chamavam de Barrão, chamavam o Barrão de Alexandre, e a gente brincava com isso tudo.
Ricardo Basbaum, Olho. Intervenção no campus da Unicamp, Campinas, Brasil, 1987. A marca criada pelo artista foi também aplicada em outros suportes, como adesivos. Fotografia de Ricardo Basbaum
Para a exposição Geração 80, lembro que recebi um telefonema do Parque Lage, uma carta, e o Alexandre também. Sugerimos o nome do Barrão, depois ele foi incorporado à exposição. Participamos com nossos trabalhos individuais. Eu participei com meu trabalho do Olho, que hoje considero o meu principal dos anos 1980, importante para meu trabalho posterior que lida com a ideia da logomarca, dos meios de comunicação, com uma imagem que é reprodutível. Em 1987, fiz um projeto grande como artista residente na Unicamp; isso gerou um vídeo também, e o trabalho que eu vim a fazer a partir dos anos 1990, que desenvolvo até hoje, também lida com a ideia de marca.
O Seis Mãos, a partir de encontros ocorridos durante a exposição Geração 80, incorporou temporariamente dois membros novos – o André Costa e o Fernando Moura, que participaram também de alguns eventos com o grupo. Ainda com o André Costa, fizemos uma exposição em 1985 no Centro Cultural São Paulo; o cartaz traz um texto do Márcio Doctors e fotos que parecem as de um grupo musical fazendo divulgação para seu disco. A gente brincava com figurino, a questão da imagem do artista, com referência aqui da música pop, dos Beatles. O cartaz tem um pouco esse clima. O Seis Mãos também se reunia para tocar – o Barrão tocava bateria, as vezes a gente se reunia para tocar junto.
O Seis Mãos também participou de um trabalho em 1984 no bar Madame Satã, em São Paulo. Pintamos em cena os atores de uma montagem de teatro performance com a peça Othelo.
Um dos principais trabalhos do Seis Mãos foi a série de performances Garçons. A gente se vestia de garçom, com blaser branco, gravata borboleta, calça preta, sapato preto, passava no cabelo gomalina para o penteado ficar bem engomadinho, e alugava bandeja, copos, por um dia só. A ideia era a de garçons servindo coisas diferentes nas inaugurações de exposições. Os Garçons fizeram várias intervenções: a primeira no MAM/RJ, em uma exposição do [Arcangelo] Ianelli, em que levamos perguntas recortadas e postas nas bandejas. “Quem são aqueles homens em grupo de paletó branco, gravata, calça e sapatos pretos?”; “Quais são seus nomes?”; “Que pretendem nos abordando de uma hora para outra?”; “O que trazem eles sobre as mãos: vidro sobre aço inox?”; “Quantos garçons podem existir aqui trazendo copos com vinho para todo mundo?”; “Devo esperar que o garçom me encontre e me presenteie ou devo persegui-lo pelo mundo?”; “O garçom bebe?”; “Vou ficar plantado na porta da cozinha. Posso beber três copos de vinho e ficar bêbado. Posso não beber e estar bêbado.”; “Sou uma obra de arte: não bebo.”; “Sou uma obra de arte: carrego desde o berço a minha embriaguez.”; “Parabéns ao artista plástico que inaugura esta mostra. Dois conselhos: sirva também algum vinho, vista-se de garçom; sirva algum outro presente, vista-se de camelô.”
Essa primeira intervenção gerou uma confusão, o chefe dos garçons veio perguntar quem havia nos contratado. E a gente não falava com ninguém – interessava o garçom como modo de intervenção. A proposta era de entrar naquela situação como uma figura que já está lá presente; nos interessava esse tipo de inserção. O garçom tem o papel de oferecer coisas para as pessoas, elas pegam se quiserem. Ele não fala nada, não pergunta nada, não impõe nada.
Fizemos várias intervenções, às vezes sozinhos, às vezes os três, às vezes mais. Eu fui naquela exposição Pintura no Espaço, que aconteceu no Planetário [da Gávea], levei macarrão de estrelinha, em 1984. Lembro que dessa vez eu fui sozinho, aí esvaziei na bandeja um saco de macarrão cru, as pessoas pegavam, comiam aquilo. Depois fizemos uma só Alexandre e eu, uma exposição do [Luiz] Pizarro na Galeria Saramenha, em que levamos colírio e cotonete. Em geral as pessoas pegavam, usavam, de certa maneira participavam do que a gente estava propondo. Fomos a uma exposição do Cildo Meireles no MAM/RJ, a Desvio Para o Vermelho. Temos pouca documentação disso, só algumas fotografias.
Teve uma ação que eu achei divertida, no MAM/RJ, os Garçons serviram a si próprios. Acho que foi a última ação dos Garçons. Entramos com um copo de vinho, um pouco de comida, uma quentinha… Um tinha o vinho, outro tinha a comida, outro tinha os copos e pratos. Caminhamos pelo salão e, em um certo momento, sentamos em um lugar do MAM, estendemos uma tolha no chão, colocamos os pratos e nos servimos de vinho e comida.
Esquerda: Seis Mãos, Sapatos Royal, 1988. Objeto performativo. Sapatos e durepox; Direita: Seis Mãos, Calêndula Concreta, 1987. Performance acompanhada por vídeo ao vivo. Com participação de Sandra Kogut
BIANCA TINOCO: Nesse momento, quando as pessoas viam vocês como Garçons, já identificavam?
RICARDO BASBAUM: Em geral, sim. No meio de arte, são sempre os mesmos que vão a todas as vernissages. Mas tinha gente que não sabia, claro. E pegava as coisas na bandeja, às vezes eram pequenos objetos. Nunca viajamos para fazer os Garçons em outro estado, sempre fizemos aqui no Rio.
Depois que a Dupla Especializada trabalhou com a Sandra Kogut, em 1985, nos aproximamos e o Seis Mãos fez em parceria com ela uma espécie de videoperformance. Foi um momento ápice do nosso envolvimento com performance. O Chacal estava organizando uma série de apresentações de performance no Mistura Fina de Ipanema, aos domingos. Foram quatro domingos do Seis Mãos, depois quatro do Fausto Fawcett, quatro do Chacal, quatro da Tetê Leal, acho. Para a temporada do Seis Mãos, fizemos essa videoperformance, que chamava-se Calêndula Concreta. Começava com uma operação ao vivo em uma boneca de plástico loura, nós vestidos de médicos. A gente operava de uma maneira completamente nonsense, abria, cortava um pedaço, colocava umas bombinhas, injeção com seringa, era uma confusão. Mas ninguém tinha acesso diretamente, a operação estava coberta com um pano preto e o público só via as imagens transmitidas por um monitor a partir de duas câmeras operadas pela Sandra, uma fixa e outra móvel. Depois fizemos a mesma ação em outra boate em Ipanema e na galeria Cândido Mendes. Nunca vi o vídeo de Calêndula Concreta, não sei se a Sandra tem as fitas.
Talvez tenha sido o último grande trabalho do Seis Mãos, depois disso o grupo foi esvaziando. A Dupla Especializada também esvaziou no final dos anos 1980, porque era difícil, a gente não tinha estrutura. O que a Dupla devia fazer, um show e uma turnê pelo país? A gente não sabia, não conseguia dar continuidade, e a coisa foi morrendo. E também, o trabalho foi se transformando, as preocupações de um e de outro. O Grupo Seis Mãos também caiu nesse esvaziamento.
BIANCA TINOCO: Quando você começou a frequentar o Parque Lage?
RICARDO BASBAUM: Minha formação não foi tanto no Parque Lage. Fiz uns cursos lá, mas num momento em que eu já tinha iniciado outras atividades, como a música, o cinema, história do cinema brasileiro, desenho animado. Minha primeira aula no Parque Lage foi de Dança Livre e Bioenergética, em 1980. Só entrei no Parque Lage no final de 1983, para umas aulas de pintura com o Áquila. Conheci no Parque Lage o Orlando Rafael, que é um pintor de Nova Iguaçu; foi ele que fez o cartaz com nossos nomes, esse que a gente colocou nas ruas. Ele estava acostumado a fazer para bailes, para shows. Fiz umas aulas de desenho vivo antes [com Astréa El-Jaick]. Nunca tive aula de performance, de teatro, nem existia aula de performance. Tive um ambiente de geração muito estimulante, que já era multimídia. O Alexandre relacionado com o teatro, o Barrão também, sempre tive muitos amigos de cinema e também músicos, fui compositor, letrista. Fiz faculdade de Biologia, tenho interesse pela escrita. Conheci o chamado grupo do Parque Lage, que era formado pela Beatriz Milhazes, Francisco Cunha etc. Participei de uma exposição em 1983 chamada Pintura! Pintura!, que foi organizada pelo Márcio Doctors na Casa Rui Barbosa, para a qual foi convidado o Seis Mãos. O pessoal do Parque Lage fazia um grupo de estudo toda semana, nos convidaram, mas eu e Alexandre não ficamos muito interessados porque eles estavam estudando renascimento, barroco, a gente tinha interesse na arte atual. Sempre achei que havia dois grupos nos anos 1980 no Rio de Janeiro: esse grupo mais voltado à pintura mesmo e outro que hoje a gente poderia chamar de multimídia, com uma produção mais híbrida.
BIANCA TINOCO: Como aconteceu o convite para você participar da exposição Geração 80?
RICARDO BASBAUM: Eu recebi uma carta e fui lá. Um primeiro grupo teve uma reunião com Marcus Lontra, ele explicou a exposição. Acho que recebi essa carta por conta do Grupo Seis Mãos e da Dupla Especializada. A gente já tinha exposto no Circo Voador, eu tinha participado do Salão Carioca, a Dupla Especializada já tinha feito a Galeria Contemporânea, havia os cartazes, as performances. O Seis Mãos já fazia performances de pintura e música.
BIANCA TINOCO: Como foi a exposição Geração 80?
RICARDO BASBAUM: Havia muita coisa acontecendo. O Leonilson fez um trabalho com galhos de árvore, estava buscando galhos no Parque Lage e montou uns desenhos com madeira no terraço do Parque. Havia um grupo chamado Pinto como Pinto: Ricardo Becker, Marcos Chaves, Jadir Freire… Não prestei muita atenção, mas eles fizeram algo lá. Na inauguração, em todos os jornais que você for ver, tem fotos dos aviõezinhos de papel do escultor Carlo Mascarenhas, que morreu muito jovem; ele tinha uma escultura que era um avião de papel de ferro. Meu trabalho eram adesivos que espalhei pelo parque inteiro. Vi as pessoas usando o [adesivo do] Olho sem saberem que era meu, botavam na roupa, usavam como emblema. E havia também escultura, houve um grupo importante chamado Grupo do Ingá, formado pelo Haroldo Barroso. Ele formou Maurício Bentes, um outro escultor Augustus Almeida, Carlo Mascarenhas. Uma oficina tão importante, com jovens escultores. Há um vídeo chamado Tela Sobre Tinta, da Malu de Martino. O evento só ganhou essa repercussão toda porque a inauguração foi um happening, e porque ele significou naquele momento uma abertura política. Um evento novo de arte, com jovens, aquilo já trazia novos ares de desrepressão sexual e política, ode à liberdade conquistada. A inauguração foi um sucesso total, milhares de pessoas, estacionamento lotado, trânsito, ninguém conseguia andar direito. A exposição não era só de pintura, de maneira alguma.
BIANCA TINOCO: Foi nessa exposição que você conheceu a Márcia X.?
RICARDO BASBAUM: Foi. O Alex eu conheci na inauguração da exposição na Galeria Contemporânea, em novembro de 1983. Na Geração 80, depois da inauguração, aconteceram uns eventos. Um deles foi uma exibição de slides da performance Chuva de Dinheiro, da Márcia e da Ana Cavalcanti. Foi o primeiro contato com o trabalho dela. Depois fui acompanhando.
BIANCA TINOCO: Como avalia hoje a ascendência do neoexpressionismo e da transvanguarda sobre a produção dos anos 1980?
RICARDO BASBAUM: Foi o que tentei falar em um artigo que publiquei no fim daquela década: o Frederico [Morais], o Roberto Pontual, o Lontra um pouco menos, falaram dessa produção já conhecendo o neoexpressionismo, a transvanguarda. É como se a moda internacional chegasse aqui e eles já estivessem sabendo, previram a chegada. A tese do Ronaldo Rosas é que eles se apressaram tanto em catalogar que recalcaram a novidade que teria lá, a novidade antropofágica. O trabalho da Beatriz Milhazes nunca teve nada de neoexpressionismo ou similar. [Daniel] Senise talvez um pouco, mas logo no início. Quando o trabalho dele ficou mais consistente, já era outra coisa. Faltou primeiro entender o que era neoexpressionismo, o que era transvanguarda e o que se fazia aqui. Tudo aquilo foi meio pasteurizado, massificado e aplicado. No caso da Casa Sete, o [Alberto] Tassinari fez uns textos que tentaram buscar outras leituras; ele se arriscou e pensou um pouco. No Rio de Janeiro, faltou esse pensamento. Não se pode aplicar modelos de outros lugares automaticamente: que tradição a arte brasileira tem de expressionismo? Goeldi? É preciso olhar com muita sutileza, antever as relações possíveis. Acho que essa pintura dos anos 1980 é, como veio a se falar depois, inexpressionista, porque não tem mais aquele sujeito heroico, é massificada, a pintura traz sua vivência da festa na noite de ontem e a marca da Petrobras, da Coca-Cola, de perfumes, da pasta de dente… É outra subjetividade em construção. Desenhei um trabalho que nunca realizei, de pegar os anos 1980 e trabalhar o oito, inverter o oito e o zero, e colocar o oito como o infinito. Os anos 1980 seriam um retorno ao zero rumo ao infinito. Há uma mudança cultural importante nos anos 1980, paradigmática, da relação com a tecnologia da comunicação, da informação, a relação da cultura com essa nova economia, com a redemocratização, uma série de coisas para as quais você não pode usar as mesmas ferramentas críticas e historiográficas de tempos anteriores, nem olhar as obras da mesma maneira. Não há mais como separar a obra de sua ambiência, do seu circuito. Então, faltou entender o contexto cultural do Brasil e da abertura política, e pensar o que são os trabalhos naquele contexto. É um grande vazio, um desafio para o Brasil.
Ser crítico ganha outra conotação, porque na ditadura, ao ser crítico, você tinha que assumir uma postura de antagonismo muito forte. Nos anos 1980, parecia que você não podia se colocar criticamente. Quando fizemos os Garçons, era preciso muita habilidade para se colocar com um certo antagonismo que não fosse estigmatizado como uma posição crítica muito contundente, porque, caso isso acontecesse, você era excluído sumariamente daquela configuração. A Moreninha teve a inteligência de construir ações de maneira muito irônica, com paródia, que era típica do momento. A Dupla Especializada também fez humor e ironia sobre essa aproximação tão autoritária entre obra de arte e produto. A obra de arte se convencionou como produto há duzentos anos, mas sempre tensionando esse lugar.
BIANCA TINOCO: Tenho muita curiosidade sobre a história do coletivo A Moreninha. Como ele começou?
RICARDO BASBAUM: A Moreninha [1] foi um grupo que juntou alguns artistas e críticos – no caso, o Márcio Doctors – ligados ao que ocorria nos anos 1980. Basicamente, teve atividades de 1987 a 1989, sendo que as ações principais ocorreram em 1987. Considero que A Moreninha foi o final da Geração 80, porque foi um esforço de recuperação de palavra, de recuperação da voz do artista nos anos 1980, sobretudo pela presença tão forte e manipuladora da mídia no jogo cultural, colaborando para essa construção de imagem também no campo das artes visuais. Nos anos 1980, alimentava-se uma imagem estereotipada da produção do período, só se repetia clichês e não se via os trabalhos diretamente. Eu entendo A Moreninha como um esforço para colocar no circuito uma fala crítica, não uma fala passiva, contra certos vícios do circuito local, criando uma tensão no contexto local. O grupo terminou depois de realizar esse esforço com uma publicação e um vídeo.
Em 1986, eu estava na plateia de um debate na Galeria do Banerj, com Alexandre, e estavam também lá a Beatriz Milhazes e o Daniel Senise. Eles nos convidaram para um esquema de visitação de ateliês, em que os artistas debatiam sobre o seu trabalho. Também havia uma insatisfação dos pintores em relação ao que se falava sobre o trabalho deles. Mesmo aqueles contemplados pelo estereótipo da volta à pintura não gostavam de certas expressões como “prazer de pintar” e “má pintura”, também se sentiam desconfortáveis frente a esse clichê diluidor. Uma vez por semana, havia visita ao ateliê de um artista. Visitei os da Cristina Canale, do Enéas Valle, do Paulo Roberto Leal, entre outros. Em janeiro de 1987, o artista visitado foi o Barrão, e a visita foi no ateliê dele em Laranjeiras. E então, numa das conversas da visita, combinamos: vamos fazer uma ação. Não lembro quem trouxe a ideia, de uma ação na ilha de Paquetá. Aí a história foi sendo montada: a Geração 80 iria comemorar os cem anos do grupo A Moreninha com uma maratona de pintura impressionista em Paquetá. A cada mês, a Geração 80 iria revisitar um “ismo” da arte moderna, começando pelo impressionismo. Criou-se um press release fake, inventando essas histórias todas, que foi enviado para a imprensa. O texto é bem legal, não me lembro quem escreveu, se foi o Márcio Doctors ou o Paulo Roberto Leal. Mas se inventa totalmente essa história, tem esse dado sintomático, um grupo que fez e faz a história, querer fazer a história em 1987. Não acho gratuito o fato de a ideia ter aparecido no ateliê do Barrão, porque o clima permitiu. Penso que a Dupla Especializada e o Grupo Seis Mãos ofereceram os instrumentos necessários para que as ações da Moreninha acontecessem.
No dia combinado, viajaram conosco um repórter do Jornal do Brasil e um de O Globo. A Dupla Especializada compôs uma música especialmente para essa ação, chamada “Fim de Milênio em Paquetá”, que começava com a paródia de outra música, “Luar em Paquetá”. Era uma espécie de música-tema do grupo A Moreninha, e fomos cantando na barca para Paquetá. Chegamos à ilha, e houve um momento em que paramos na tal Praia da Moreninha, começamos a trabalhar. Havia uma menina tomando sol, elegemos ela A Moreninha e começamos a cantar a música. Pedimos para ela chegar perto, para ser a musa do grupo. E o Fantástico apareceu nesse momento, fez uma gravação que nunca foi ao ar.
Há vários pontos interessantes nessa ação: em primeiro lugar, essa coisa de querer fazer História ou querer ter sua própria voz no processo. A manipulação totalmente descarada e consciente das informações para a imprensa, com um press release cheio de informações fake para atrair órgãos tipo Fantástico, O Globo e Jornal do Brasil com histórias inventadas, ou seja, construir o acontecimento na imprensa, não querer ficar passivo em relação à mídia, simplesmente querer que a mídia chegue para fazer a cobertura, mas já agir para criar uma série de elementos que já são notícia, inventam notícia e ocupam esse espaço como um espaço de ação. Lembro que o Enéas Valle também fez umas coisas interessantes porque ele trouxe para a discussão do grupo a experiência dele na Alemanha, que era uma experiência de contato com o [Joseph] Beuys, ou com a herança do Beuys – quando ele morou na Alemanha, o Beuys ainda estava vivo. Nesse momento [de A Moreninha], o Beuys estava morto há um ano, e o Enéas em vários momentos do A Moreninha traz referências à Universidade Livre, aos conceitos de performance do Beuys.
A ação foi totalmente bem-sucedida. Primeiro saiu uma matéria engraçada do Frederico Morais no domingo em que viajamos. Na segunda-feira, saiu em O Globo uma matéria assinada pelo Alexandre Martins, e no Jornal do Brasil uma que não tem assinatura, e também uma nota na coluna do Ancelmo Gois. Em O Globo, dizia-se que a ideia era de revisitar um “ismo” da arte moderna por mês, em 1987, terminando nos anos 80.
BIANCA TINOCO: Mas era uma proposta realmente, ou isso também foi inventado?
RICARDO BASBAUM: Não faço a menor ideia. A gente já vinha tentando se discutir nas visitas de ateliê. Mas o release era irônico, e o jornalista que leu aquilo não dá nenhum sinal de que era uma história ficcional, ele comprou a história. A ação mostra uma maturidade desses jovens personagens do meio de arte do Rio de Janeiro. Em meio a essa vertigem dos anos 1980, que tem o novo rock, a euforia da abertura política, esses criadores eram considerados jovens artistas que iriam trazer a liberdade que não tivemos antes. A presença muito acrítica dos meios de comunicação construía essas imagens e ninguém oferecia resistência. A Suely Rolnik fala disso muito bem: com a entrada desse novo regime econômico, não só no Brasil mas em vários países do Cone Sul e do Leste Europeu, que eram regimes totalitários em processo de desmonte, não havia proteção. Esse regime econômico entrou com tudo, ninguém conseguiu resistir. Ficaram sem saber o que fazer, um pouco como aconteceu no Brasil do início dos anos 1980. Só sobrevive quem entra no jogo, é assimilado por essa economia. A Moreninha demonstrou uma construção de resistência, mostrou ter consciência desse mecanismo de construção de imagem da mídia. É importante ressaltar que para a imprensa, nesse momento, a Geração 80 era também “performática”. Depois sumiu. Para o mercado não era – o mercado não assimilou isso.
Logo em seguida ao passeio a Paquetá, Frederico Morais fez uma matéria em O Globo em que criticou o gesto desses artistas, dizendo que eles só queriam aparecer. Citou exemplos de outros artistas que ele considerava mais sérios na performance.
BIANCA TINOCO: Ele ficou se sentindo enganado, de alguma maneira?
RICARDO BASBAUM: Não sei. O artigo é ruim, é rancoroso. O grupo estava totalmente animado, a gente se encontrava no ateliê do [Hilton] Berredo em Botafogo. Logo na semana seguinte, nos perguntamos: “O que a gente faz agora?”. Nesse momento, já estávamos em uma situação diferente daquela das visitações de ateliê, viramos um grupo de ações. Eu falei que ia responder ao Frederico Morais. Escrevi uma carta, mandei para O Globo e li em uma reunião. Na carta, eu falei que a ação era legítima, que lidava com os meios de comunicação porque não havia mais como ser artista hoje e se posicionar de maneira inocente em relação a esses meios, e que considerava importante intervir nos meios de comunicação. Escrevi ainda que ele não estava preparado para entender o que estava acontecendo nos anos 1980, ele não tinha ferramentas críticas. Se ele tivesse interesse, poderia procurar e ver os trabalhos. A carta tinha uma contundência sim. Respeitosa, mas contundente.
BIANCA TINOCO: E foi publicada?
RICARDO BASBAUM: Não. Mandei pelo correio para a casa dele, e deixei uma cópia em O Globo. Disseram que ele leu a carta em um debate na [Casa de Cultura] Laura Alvim, que ele respondeu as questões. Mas ele respondeu dizendo que já não podia dar mais conta de tudo, que eu tinha que ser crítico de performance. Alguns dias depois, em uma reunião, alguém falou que o Bonito Oliva iria fazer uma palestra na Galeria Saramenha. Estavam todos tão animados com o êxito da primeira ação que toparam imediatamente, quase não precisava nem falar. “A segunda ação vai ser na Galeria Saramenha, na palestra do Bonito Oliva.” O Bonito Oliva era essa figura emblemática dos anos 1980. Hoje, está um pouco entre canastrão e sério. Achamos que era um momento interessante para fazer uma segunda ação do grupo A Moreninha.
Então planejamos a ação, e é nesse ponto que a experiência do Seis Mãos e da Dupla Especializada foi importante – a Dupla Especializada fazendo um hino, criando uma identidade para o grupo, e o Seis Mãos, que colaborou para a ação com a proposta dos Garçons, desta vez também com duas garçonetes, a Márcia Ramos e a Lúcia Beatriz. A performance teria duas etapas: a primeira, com os Garçons entrando na galeria, e a segunda, das pessoas que já estariam sentadas na plateia e reagiriam à presença dos Garçons. A partir de uma senha, elas fariam umas ações e sairiam da galeria. Os Garçons se preparariam antes. Como o Bonito Oliva vinha apresentar o que ele chamou de Progetto Dolce, e a artista que expunha na galeria era participante do Progetto Dolce e também namorada dele, isso contribuía para abalar um pouco a credibilidade do que ele estava fazendo.
BIANCA TINOCO: Como era o nome da artista?
RICARDO BASBAUM: Paola Fonticoli, uma pintora. E o Projeto Dolce seria um desdobramento da Transvanguarda. Bonito Oliva já havia estado no Rio algumas vezes, e um ano ou dois anos antes, havia organizado uma exposição no MAM chamada Transvanguarda e Culturas Nacionais, com Tunga, Leda Catunda, Sérgio Romagnolo, Victor Arruda. Tudo meio transvanguarda. Já havia uma desconfiança em relação ao discurso dele.
No planejamento da ação, o grupo, que estaria incógnito, entraria como se fosse plateia, sentaria nas cadeiras e ficaria esperando a entrada dos Garçons, que se daria com cinco a dez minutos de palestra. Os Garçons andariam por ali, e, em referência ao Projeto Dolce, eles trariam doces nas bandejas, como torrões de açúcar e balas em saquinhos de São Cosme e Damião. A partir de um certo momento, as pessoas que estavam sentadas colocariam orelhas de burro e, quando tivessem acabado as balas, alguém gritaria “acabou o doce” e todos sairiam. Também tinha um barbantinho cheiroso, aí já era uma coisa mais agressiva. Nem sei se usaram ou não, porque eu estava na parte dos Garçons.
[Pega uma folha no arquivo.] Isso aqui é um roteiro que ficou comigo: “concentração no ateliê do Berredo às 17h, produção e distribuição de orelhas, barbantinhos, discussão, 20h chegada na Saramenha, Moreninha se espalha nas cadeiras, os Garçons se escondem, no início da palestra Moreninha acende os barbantes, aos 5 minutos de palestra começa o senta-levanta, senha Berredo. Imediatamente após entram os Garçons servindo moedas de chocolate e torrões. A Moreninha coloca as orelhas, os Garçons anunciam ‘o doce acabou’, a Moreninha exclama oh! Ah!, Paulo liga o rádio, Enéas canta uma ópera e ocorrem outras manifestações individuais”.
Nos trocamos no banheiro do Shopping da Gávea, porque a galeria era lá, e fomos para a intervenção. O pessoal já estava sentado: Paulo Roberto Leal, Enéas Valle, Cristina Canale, Gerardo Vilaseca, Hilton Berredo… No momento do planejamento, ainda no ateliê do Hilton Berredo, quando se pensou qual seria a ação, alguns artistas falaram “não vamos fazer, não temos interesse”. Saíram Beatriz Milhazes, Daniel Senise, Luiz Pizarro, Francisco Cunha, pessoas que tinham ido a Paquetá. Falaram: “não interessa para a gente, porque envolve corpo, não é nossa onda”.
Eu não estava na galeria, mas as pessoas relataram que, antes de o Bonito Oliva começar a falar, o Victor Arruda apresentou a palestra dizendo que houve um telefonema anônimo avisando que seria realizada uma performance na ocasião. Isso contribuiu para criar um clima de tensão que talvez não existisse normalmente. Até no Bonito Oliva. E na verdade não havia segredo nenhum, no meio de arte todo mundo se conhece, certamente a galeria sabia por várias fontes do que ia acontecer lá. Vários amigos do galerista estavam no grupo – eu não era amigo pessoal, não sei detalhes. Sempre achei essa história estranha, colaborou para criar um clima estranho, diferente para a performance.
Aí a gente entrou e foi fazendo a ação. Eu levei na minha bandeja um gravador cassete com uma fita que eu tinha usado numa exposição em 1985. Era uma fita cassete que misturava trechos de filósofos pré-socráticos com música sertaneja. A primeira era uma música sertaneja engraçada, e eu ligava o gravador de vez em quando, e começava a tocar essa música. Os Garçons andando pela galeria, o Bonito Oliva começou a fazer a palestra em italiano, e eu ligava o gravador e percebia que ele parava de falar. Aí eu desligava o gravador. Mas não era só eu e ele, havia muita coisa acontecendo.
BIANCA TINOCO: Nessa hora, já havia as orelhas de burro?
RICARDO BASBAUM: Sim, as pessoas já colocavam as orelhas. Não prestei muita atenção, porque não tinha ângulo de visão, estava muito apertado ali. A gente colocou açúcar no copo do Bonito Oliva, distribuiu as balas, as pessoas pediam as balas, até estavam um pouco do nosso lado. E a palestra em italiano. Ele parava de falar, eu desligava o gravador, ficava o silêncio um tempinho e ele começava a falar. Eu esperava um pouquinho e ligava o gravador, a música começava. Uma hora ele teve esse ataque de fúria, levantou-se e veio para cima de mim. Eu estava no corredor, ele deu um soco na bandeja, caiu tudo no chão. Nesse momento, eu estava do lado do Paulo Roberto Leal, que estava sentado perto do corredor que dividia a galeria ao meio. Ele se levantou e falou algo parecido com “Vai bater em artista lá na sua terra!” Foi completamente inesperado. Achamos que o Bonito Oliva ia facilmente neutralizar a performance se levantando para tomar um café e esperando aquilo acabar, porque seria o comportamento de uma pessoa experiente em uma situação dessa. Por isso a gente precisava ter um timing, uma senha para sair, porque não dava para fazer a performance por mais de 10, 15 minutos. No entanto, durante a palestra, ele falava: “isso que vocês estão vendo aqui é uma forma de linguagem que está esgotada, chamada performance, típica dos anos 1960 e 1970, agora isso não tem o menor sentido”. Falou em italiano, mas essa parte eu entendi. Achamos que ele poderia neutralizar parando de falar ou incorporando a ação, mas já houve esse clima de adversidade criado antes.
A confusão foi tanta que não havia mais sentido continuar lá dentro. Eu gritei “Moreninha”, as pessoas saíram e fomos para o Baixo Gávea entender o que tinha acontecido. Duas coisas curiosas nessa debandada: primeiro que o Enéas Valle ficou sentado na Galeria Saramenha, na primeira fileira, de costas para o palestrante, olhando a palestra com um espelho retrovisor. Então, quando saímos, ele continuou lá dentro, e fazia uns gestos para a gente “onde vocês vão?”. Chamamos, mas ele ficou lá, apareceu depois. Na saída, encontramos o Alex [Hamburger] e a Márcia [X.]: ela vestida de Rambo, com roupa de guerrilheira, e o Alex com um chapéu de marinheiro e uma espada do He-Man. Acho que eles não chegaram a entrar, mas foi engraçado encontrar os dois uniformizados como se fossem combatentes da arte.
A partir do ocorrido, houve uma série de artigos. Reynaldo Roels publicou: “Festival de Agressões, Crítico Criticado”, com uma série de coisas mal contadas da Moreninha. Pelo nome A Moreninha, achavam que era um grupo nacionalista, protestando contra o Bonito Oliva porque era um crítico italiano, mas não havia nenhum nacionalismo. O Reinaldo Roels publicou um artigo, saiu na Joyce Pascowitch na Folha de S. Paulo. O Milton Machado, eu não sei o que aconteceu, levou um soco do Bonito Oliva e jogou um uísque nele. Até hoje eu não entendi como o Milton Machado entrou nessa história. Wilson Coutinho escreveu na Folha em 21 de fevereiro “Moreninhos Atacam Oliva”. Bonito Oliva deu uma entrevista ao Jornal do Brasil em 25 de fevereiro, em que chamou a cultura brasileira de cultura sambista. Isso, por sua vez, provocou um comentário de [Rubens] Gerchman, que disse que ele era um crítico colonizado, que veio de novo ao Brasil e não tinha feito nada que prometeu. E é claro, os sambistas não gostaram da colocação de que a cultura sambista era uma cultura inferior, então eles também reclamam: Paulinho da Viola, Chico Buarque, Nei Lopes… Em 27 de fevereiro, saiu a reportagem “Sim, Somos Todos Sambistas”. Até que o Reynaldo Roels organizou uma mesa redonda, “Cultura Também Dá Samba”. Chamou para o debate Márcio Doctors, Antonio Manuel, Valério Rodrigues, Milton Machado, Paulo Roberto Leal, Luciano Figueiredo, Marcus Lontra, Barrão e eu. Até o Affonso Romano de Sant’Anna escreveu no dia 1 de março, foi publicada uma carta do Milton Machado, em 5 de março, o Frederico Morais escreveu “Cultura Sambista Entre a Terra e o Céu”, fazendo um elogio ao carnaval. “A Cultura É uma Cuíca” saiu no dia 8 de março. Ou seja, se produziu um acontecimento que foi replicado, uma polêmica na imprensa, se criou uma situação que poderia ser trabalhada, pensada. Eu soube que houve uma crise pessoal entre o dono da Saramenha e seus amigos próximos que estavam ligados à galeria, pessoas que foram convidadas a retirar obras do acervo. Na verdade, a ação foi muito mais voltada contra um certo provincianismo no meio de arte do que contra o Bonito Oliva. Não havia preconceito contra o crítico italiano.
Frames da performance Orelha de Enéas Valle com o grupo A Moreninha filmada e editada por Sandra Kogut em 1987
O grupo continuou se reunindo e pensando em como dar a nossa versão sobre o que aconteceu. Se pensou em publicar um livro, fazer um vídeo e uma exposição. A exposição aconteceu em junho do mesmo ano, numa loja que o Márcio Doctors tinha no centro do Rio, chamada Brumado, e se chamou Lapada Show. Teve a Lygia Pape, o Alex e a Márcia fizeram uma performance no dia da inauguração. E a gente já estava produzindo o livro, foram lidos alguns textos nessas reuniões, já estava em processo. Ele foi publicado no final do ano [1987], chamou-se Orelha. Durante as nossas reuniões, apareceu um papo sobre orelha, a Márcia Ramos tinha um trabalho em que lia orelhas das pessoas. No livro, cada contribuição era antecedida por uma foto da orelha de cada participante. A capa é a orelha do Duchamp. Orelha e texto expressam a ideia de escuta. São basicamente textos de artistas, publiquei os textos do Enéas Valle e do Márcio Doctors também no meu livro [Arte Contemporânea Brasileira: Texturas, Dicções, Ficções, Estratégias]. Alguns artistas colaboraram com ensaios visuais, o Barrão fez uma espécie de fotonovela da ação na galeria. E foi feito um vídeo chamado Orelha, que é muito interessante. Esse vídeo tem uma história importante. Enéas Valle, nessas conversas da Orelha, confessou que, quando era pequeno, a mãe dele colava a orelha dele, porque ele tinha orelhas de abano. Para ele, era uma lembrança de infância complicada. Então ele disse que faria uma operação naquele momento para tirar a orelha de abano, aproveitando a ocasião para operar a orelha. Foi arranjada uma operação com um cirurgião para consertar a orelha dele, através do Paulo Roberto Leal se não me engano, e a operação foi filmada e incluída no vídeo. Vejo esse trabalho do Enéas como de body art, porque ele inclui em seu corpo tudo o que estava sendo discutido ali. O vídeo é muito bom: quando ele vai tirar os pontos da cirurgia, ou logo depois da cirurgia com anestesia local, ele fala de Salão Nacional, faz críticas. Ainda está se recuperando da anestesia e fazendo observações críticas ao circuito de arte brasileiro. Também incluímos no vídeo umas pajelanças que fizemos no ateliê do Barrão, umas pequenas encenações sobre orelha. O vídeo foi lançado um pouco depois do livro. A Sandra Kogut filmou e editou, mas acho que ela renega um pouco esse vídeo. Lançamos o livro e o vídeo no dia 5 de dezembro de 1987, na Petite Galerie. E o Márcio Doctors fez um artigo em O Globo, sobre a Moreninha e a Orelha. É um dos poucos registros.
Por essa minha descrição rápida, acho que dá para ter uma noção do que foi A Moreninha. Primeiro, tivemos essa significativa saída dos pintores das ações da Moreninha, depois a importância dos grupos de performance para estruturar as ações, o Seis Mãos e a Dupla servindo de referência para várias das iniciativas. Para mim, o mais interessante é que os produtos da Moreninha foram um livro e um vídeo, sobretudo o livro. Na exposição, os trabalhos não conversavam muito entre si. O que unia aquelas pessoas não eram os trabalhos, era a preocupação de querer buscar um tipo de fala, de combater uma fala dominante, uma construção do acontecimento cultural por parte da mídia. Esses artistas demonstraram que tinham consciência dessas manipulações e que era necessário ser menos passivo. A sensação dos anos 1980 é de que o artista era um funcionário do galerista. Você fazia o que o galerista queria, o que ele pedia para você fazer. Thomas Cohn fazia isso o tempo inteiro, receitas do que os artistas deveriam fazer.
BIANCA TINOCO: O que pensa dessa denominação Geração 80?
RICARDO BASBAUM: Para a Dupla Especializada, era interessante dizer que a gente era da Geração 80. Porque era um rótulo, ajudava a situar. Geração 80 queria dizer que você era um jovem artista, de vinte e poucos anos, não era dos anos 1970, e estava trazendo algum tipo de proposta no clima do momento. Então a gente dizia que era Geração 80, não via problemas. Mas começou a causar um incômodo perceber como estava a inscrição dessas obras no mercado ou em um discurso. Percebemos rapidamente que, ainda que a Dupla Especializada tivesse textos críticos do Frederico Morais, das duas exposições que fizemos na Galeria Contemporânea e no IBEU, ele dizia assim: “O tempo agora é de reflexão, acabou a era da agitação, cada um deve voltar para o seu ateliê.” Como se aquilo fosse uma mera brincadeira. Começamos a perceber que o discurso queria cristalizar – como dizem Deleuze e Guattari, queria reterritorializar, remarcar as divisões, segmentar novamente. Não assimilava o que não tinha encaixe, o que era ao mesmo tempo pintura, música, performance. E ainda mais essa rebeldia antiprovinciana da Moreninha, você não estava se comportando como deveria no circuito das artes, tendo as relações corretas. Então a gente realmente – e quando digo a gente, era eu, Alexandre, Barrão, talvez o Alex Hamburger e a Márcia X., basicamente – começou a perceber que não tinha registro, que ninguém comentava o que fazíamos com performance, ninguém escrevia nada, ninguém pensava aquilo. Constatamos um vazio que toda a geração constata: que o circuito não dá conta, não corresponde à demanda dos trabalhos. Isso foi constatado nos anos 1970, que o circuito não responde ao que você faz em tempo real. Quando eu fiz minha monografia de especialização na PUC-RJ, quis fazer sobre os anos 1980, pois eu tinha vivenciado aquilo. Então li os principais textos críticos, esses críticos principais que eram o Lontra, o Frederico Morais, o Pontual e o Jorge Guinle. Guinle talvez seja o mais consistente, mas estava preocupado com o fazer dele, a história da pintura. A gente expunha, mas não havia ninguém querendo entender o Seis Mãos, a Dupla Especializada.
BIANCA TINOCO: Mal comparando, havia algum preconceito do tipo “o lado besteirol da produção de artes visuais”?
RICARDO BASBAUM: Talvez, acho que sim. A performance não era levada muito a sério, era o lado engraçado, divertido. O trabalho da Márcia e do Alex era mais consistente em termos de história da performance. O nosso teve coisas interessantes, mas a Dupla Especializada tinha mais uma relação com a música pop, e o Seis Mãos teve essas ações ligadas talvez ao teatro. Se você for ler na Revista de Domingo, aquela coluna do Tutty Vasques, naquele momento falava do Mistura Fina, fazia uma aproximação do besteirol com as performances. Só havia essa leitura, não havia nada mais consistente. Num primeiro momento, o slogan Geração 80 era interessante como rótulo que ajudava a identificar. Mas quando o trabalho ia ficando mais elaborado, não dava conta. E ficamos um pouco sem registro.
Mudei minha estratégia de trabalho, repensei uma série de coisas. E a partir de 1990, 1991, meu trabalho mudou. Até tenho uma leitura do meu trabalho, que fui construindo de 2000 e poucos para cá, daquela marca que estava no trabalho da Documenta. Penso naquilo como “trauma”. Trauma porque não consigo me livrar daquela marca, ela está em mim de alguma maneira. Trauma não pessoal, do Ricardo, afetivo, mas o trauma do papel do artista em relação ao circuito. E que eu localizo em relação a esses acontecimentos mesmo, o que foi começar a ser artista no início dos anos 1980 e como reconfigurei, procurei usar disso tudo que eu aprendi, diversas estratégias, para reprocessá-las no meu trabalho. A partir de 1990, 1991, tenho esse momento muito importante, de perceber e tentar entender os momentos em que o circuito me tensionou em uma posição antagônica a algumas linhas dominantes. Perceber o impacto dessa nova economia dentro do circuito, a passividade do circuito brasileiro, que não oferece resistência a nada, que não olha os trabalhos, que não tem o seu trabalho inscrito por mérito mas por uma rede de relações. Quando tive um trabalho adquirido pela Tate em 2003, eu vendi diretamente, não tinha galeria para agenciar meu trabalho. Só comecei a trabalhar com uma galeria mais regularmente a partir do ano seguinte. E eu sei que o curador que escolheu meu trabalho estava interessado também nessa minha atuação, dos anos 1980, da Moreninha… Imagina, o que a gente ia fazer depois da Moreninha? Fui totalmente estigmatizado no circuito local. Não tinha relação nenhuma possível com galeria, e também não estava interessado. Fui construindo meu trabalho com autonomia. A especialização que eu fiz na PUC foi concluída logo depois, tive um grupo de estudo que depois virou o grupo Visorama, que gerou mais tarde a revista Item, o espaço Agora. Foi uma série de situações na construção de uma autonomia de ação. Para mim, essas coisas com as quais me envolvi foram totalmente fundamentais para as opções que tomei em seguida.
BIANCA TINOCO: O que foi falado pelo Bonito Oliva, de que performance era uma expressão artística ultrapassada, era a posição do mercado também?
RICARDO BASBAUM: O mercado não se posiciona; em geral constrói as coisas de outra maneira. Mas o que se sentia é que não havia interesse para isso. O mercado lida com dificuldade com esse tipo de produção, não só no Brasil. E não é só o mercado, também os espaços institucionais são assim.
Dupla Especializada, Folheto (Capa e Miolo), 1985. Matriz original para fotocópia. Colagem em papel, 4 páginas, 15 x 21 cm. Arquivo Dupla Especializada
BIANCA TINOCO: Como era essa relação dos artistas de performance com as instituições culturais? Até que ponto vocês se utilizavam do espaço público?
RICARDO BASBAUM: O Seis Mãos fez essas performances no Mistura Fina e depois em outro lugar chamado Barão com Joana, na Praça Nossa Senhora da Paz. Outros que fizeram temporada no Mistura Fina foram o Alex e a Márcia. E fizeram também no Barão com Joana. Era um lugar de shows, musicais. Depois a Dupla Especializada fez no Teatro de Bolso, depois fez na Funarte de São Paulo. Mas não tinha continuidade, a gente é que tinha que ir atrás o tempo todo, não havia um curador. Nós é que teríamos que fazer a continuação, e uma hora ficamos sem fôlego. Os lugares eram esses, uma exposição no metrô chamada Circo de Imagens, foi lá que a Dupla Especializada atuou. A Márcia e o Alex fizeram performances no bar Botanic, no Barão com Joana, no Mistura Fina. Havia também o lançamento da revista Imã no Mistura Fina de Ipanema. Era uma revista de poesia, que era mais comum, feita de maneira independente. Depois, quando o CEP apareceu, o Seis Mãos fez algumas coisas lá, fiz umas ações no CEP. A primeira leitura desse projeto NBP [Novas Bases para a Personalidade] foi no CEP 20.000. O CEP é a consequência disso tudo, mais do pessoal de literatura – Tavinho Paes, Chacal, Waly Salomão, Guilherme Zarvos.
BIANCA TINOCO: Frederico Morais escreve em 1970 “O Corpo É o Motor da Obra”, que naquele momento parece bastante conectado com o que estava acontecendo. Como esse mesmo crítico, posteriormente, tem uma posição tão conservadora sobre a arte da Geração 80?
RICARDO BASBAUM: Eu percebo isso como uma mudança paradigmática do circuito. O Frederico, quando saiu do Globo, reclamava nas entrelinhas que o crítico de jornal não dava mais conta, a prática dele não cabia mais. Começou a se sentir sufocado pela quantidade de material que recebia, pelos divulgadores, pela força da galeria na construção desse espaço. Começou a sentir que o crítico era funcionário da galeria por conta dos assessores de imprensa, com todos os seus materiais gráficos bem construídos. Ele se formou em outro momento, o que ele fazia não tinha mais lugar. Ele tinha uma coluna muito generosa, não sei quando ele começa no Globo nos anos 1970, mas todas as semanas ele tentava dar todas as notas de exposições. Era uma relação pessoal dele com os artistas. Mas quando isso passou a ser mediado, ele começou a se sentir sem lugar. O jornal acabou se tornando o espaço mais do jornalista cultural e do trabalho do assessor de imprensa, que pode ser muito agressivo às vezes. E, como eu tentei colocar na carta para o Frederico, os artistas consideravam aquele um espaço de batalha também, a mídia era um espaço a ser ocupado. Por outro lado, a produção dos anos 1980 ficou sem cara, sem identidade artística, cultural. Havia uma construção de imagem do jovem hedonista, mas não se parava para ver quem eram esses artistas, que linguagem era essa, o que os motivava. E aí se caiu em um vazio estranhíssimo. O grupo que vinha mais afiado dos anos 1970, do Ronaldo Brito, do Paulo Venâncio, Paulo Sérgio Duarte talvez, que vinha do Opinião, da revista Malasartes, A Parte do Fogo, as publicações da Funarte, era o mais preparado culturalmente, intelectualmente. Mas, ao ver aqueles jovens artistas ocupando um espaço, eles imediatamente se colocaram contra. Com exceções, como a Lygia Pape, esse discurso intelectual ficou um pouco fora. Fizemos um esforço enorme para buscar as ferramentas próprias do discurso crítico. Eu fiz e continuo fazendo. A revista Item foi uma tentativa, o grupo Visorama. Essa turma nunca nos deu o prazer de escrever uma linha sobre os nossos trabalhos e falar que tinham o mínimo interesse para pensar aquilo, até hoje nos ignora sumariamente. Esse livro que o Paulo Sérgio Duarte está lançando não tem nenhuma linha sobre nenhum desses artistas que eu estou falando, provavelmente. Um artista como o Alex Hamburger, que é um poeta experimental, com um trabalho tão importante, não tem registro. Houve uma renovação muito difícil de discurso; parece que foi uma época um pouco arredia para a construção de discurso crítico, pouco politizada.
BIANCA TINOCO: O que pensa do discurso crítico construído de dez anos para cá, com a exposição 2080 do MAM-SP; a exposição Onde está você, Geração 80? do CCBB-RJ?
RICARDO BASBAUM: A Moreninha foi um marco nesse discurso crítico, e eu vejo o grupo Visorama fazendo isso, eu me vejo fazendo isso – nunca quis ser crítico de arte, mas… Márcio Doctors de certa maneira fez isso um pouco. Essas exposições que você citou são marcos negativos, no meu entender são desastres por várias razões, principalmente a do Banco do Brasil, que eu acho um desserviço total. Uma pessoa jovem, que não viveu aquela época, entendeu pela exposição algo completamente diverso do que aconteceu. A exposição tem exclusões imensas, como Eduardo Kac. Porque não pode dizer que ele hoje em dia é um artista de outro tipo, importante internacionalmente, e estava na Geração 80? Por que isso não pode ser considerado uma expansão no contexto brasileiro daquele momento? Ou mesmo o meu trabalho, ou o do Alexandre? Eu não tinha nenhuma referência naquela exposição, nem mesmo uma menção ao meu texto, que foi pioneiro sobre a Geração 80, publicado em 1988. São coisas que não entendo, que beiram a patologia. Os anos 1980 sintomatizam isso de uma maneira muito estranha. Sabe-se, por exemplo, que quando o Thomas Cohn decidiu expor o Leonilson na galeria dele em 1983, um grupo mais ligado ao Ronaldo Brito briga com ele, porque até então o Thomas Cohn era um colecionador voltado para uma produção mais conceitual. Também havia um conflito entre o Frederico Morais e o grupo do Ronaldo Brito e do Carlos Zílio, porque o Frederico Morais achava que essa turma fazia uma crítica de arte muito voltada para a academia. Enfim, é outra polêmica em que eu discordo, me coloco mais do lado do Ronaldo Brito, mas ali o Frederico Morais já sentiu uma diferença em relação ao que ele fazia. São coisas que não estão escritas, que é preciso garimpar. Isso é grave, muito diferente de como acontece o processo cultural nos Estados Unidos; eles dedicam uma competência, um tempo e uma verba para mapear tudo. Aqui, a gente deixa passar e coloca panos quentes. Os anos 1980 seriam outros se tudo isso viesse à tona. Os conflitos são importantes. É importante o papel do Frederico Morais; por que ele sente um esgotamento? Por que ele desiste? Seria importante também para o trabalho dele se essa questão fosse debatida. O surgimento de uma crítica mais ancorada na universidade foi muito importante, o discurso crítico brasileiro ganhou outro patamar.
A exposição que aconteceu no MAM de São Paulo, eu acho errada porque não houve pesquisa e o curador diz que trabalhou com os acervos, as coleções. É óbvio que, se você for trabalhar com as coleções, elas também são muito limitadas, refletem o que foi comprado. A do Marcus Lontra, acho que é quase uma má-fé. Comecei a fazer uma resenha crítica em que o título era “Curadoria Umbilical”. Ele colocou a si próprio como fonte de pesquisa. E isso foi o que eu vivi no Rio de Janeiro, sem falar o que aconteceu em Curitiba, em Porto Alegre etc.
BIANCA TINOCO: Você teve na época alguma conexão com os artistas de São Paulo?
RICARDO BASBAUM: Tinha um pouco de conexão com o grupo que virou a Casa Sete, e depois especialmente com o Mário Ramiro, que eu conheci logo na época da Moreninha. Eles foram mais bem agenciados, São Paulo agenciou melhor seus artistas que o Rio de Janeiro. O grupo Casa Sete teve o apoio teórico do crítico Alberto Tassinari e de outros, e a Aracy Amaral, em uma exposição que ela organizou, chamada Pintura Como Meio, procurou entender melhor o trabalho daqueles artistas. Na medida em que esses artistas desenvolviam suas estratégias voltadas para o mercado, nosso contato com eles também diminuiu, ficou estéril. Sei que o Goto, um artista de Curitiba, tem um texto sobre os anos 1980 no Paraná, em que ele procura mapear os grupos que estavam lá. Existe uma pesquisa parecida também sobre o Rio Grande do Sul. O [grupo] Nervo Ótico também era voltado para a experimentação e a performance, Curitiba também teve grupos por esse caminho. Esses lugares todos têm suas histórias, sobretudo porque não tinham um circuito de arte minimamente estruturado, então dependiam mais de ações individuais.
BIANCA TINOCO: Acredita que o trabalho dos performadores da década de 1980 no Rio de Janeiro foi reconhecido pelos artistas do gênero nos anos 1990 e 2000?
RICARDO BASBAUM: Sim, com mais força nos anos 2000. Hoje, o Aimberê é quase um monumento vivo. Deixou de ser uma figura exótica que dava aula de filosofia zen na Rádio MEC, que criou o zen nudismo. Isso é fruto de uma coerência do Aimberê, de continuar a fazer seus trabalhos, ninguém consegue negar a densidade da obra dele. O trabalho da Márcia, quando começou a ser inscrito, era o trabalho dos anos 1990 para cá, e o que ela fez com o Alex, que eu tentei descrever um pouco em um artigo, não está mapeado. Era uma época pré-digital, a documentação era complicada, escassa. Quando a gente fez o Egoclip, precisava carregar câmera pesada, fio. Pouquíssimas pessoas tinham câmera. Os Estados Unidos, não tem comparação, tudo está mais mapeado e registrado do que aqui.
Houve um momento em que o Alex me apresentou a edição pequena do livro da RoseLee Goldberg – todos nós compramos. Decidimos escrever para ela e contar sobre o caso com o Bonito Oliva. Mandamos um envelope com essas histórias, alguma documentação de performance, fita de vídeo, em 1987 ou 1988. Ela respondeu, mas nunca passou disso. E nós somos culpados por essa falta de registro da performance brasileira em um circuito mais amplo, porque não temos o catálogo para entregar para eles, o livro em inglês. Achamos que eles vão ter uma curiosidade de pesquisa. Mas o mundo está mudando, descentralizando. Senti que havia um ambiente favorável ao que fizemos nos anos 1980 a partir dos anos 2000, sobretudo a partir dessa geração do [Alexandre] Vogler, da Daniela [Mattos]. Eles começaram a achar interessante o que a gente fazia, totalmente diferente do que aconteceu antes.
NOTA
[1] Ver o dossiê organizado por Ricardo Basbaum sobre a atuação do grupo A Moreninha nos anos 1987/88 em: <https://rbtxt.files.wordpress.com/2010/01/dossie_moreninha.pdf>. Acessado em 11 de dezembro de 2017.
PARA CITAR ESTA ENTREVISTA
TINOCO, Bianca; BASBAUM, Ricardo. “Entrevista com Ricardo Basbaum”. eRevista Performatus, Inhumas, ano 6, n. 19, jan. 2018. ISSN: 2316-8102.
Revisão ortográfica de Marcio Honorio de Godoy
Edição de Da Mata
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