Carolina Cony
Entrevista a Nathália Mello, em 15 de setembro de 2014
Fotografia de Renato Mangolin
NATHÁLIA MELLO: Por que Cindy Sherman como musa inspiradora? O espetáculo Retratos passa por um viés de composição autobiográfica?
CAROLINA CONY: Cindy Sherman. Por que Cindy Sherman? Na verdade, antes de pensar sobre ela, e de ficar vidrada na sua capacidade de transformação, eu já tinha uma relação forte com a fotografia. Existe algo de misterioso na imagem fotográfica. Alguma coisa que parece estar nítida, mas se desmancha quando fixamos o olhar e tentamos saber o que realmente aconteceu. A não ser que tenha uma legenda e, mesmo assim, não sabemos o que havia em torno daquele objeto fotografado, nem como era o espaço fora do enquadramento. O que a foto nos diz é o que está recortado, o resto, inventamos.
Cindy Sherman me afetou pela capacidade de transformação. A força narrativa que existe em suas fotografias convida o espectador a viver um pouco aquele drama. E mais ainda, muitas vezes nos identificamos com algum detalhe, alguma expressão, um gesto. Não sei dizer bem, mas lembro de observar as fotos, procurando alguma novidade, algum detalhe que não havia sido percebido ainda por mim. E adorava quando percebia, por exemplo, o fio que ligava a câmera para o clique. Era fácil de achar, muitas vezes, mas minha alegria de ficar vendo aquele fio era imensa. Ele me dizia que aquele ambiente era falso, que atrás da câmera existia outros equipamentos, provavelmente muitas roupas, maquiagem, perucas etc. Uma imensidão de possibilidades fora do quadro.
Retratos foi impulsionado pelo desejo de transformação e está inteiramente ligado à minha vida, às minhas escolhas e aos meus desejos. Por isso Cindy Sherman. Porque ela dialoga comigo. Fui afetada pela sua ousadia, seus movimentos, seus tantos gestos e expressões, suas lágrimas, sua solidão, raiva, irritação, ingenuidade e seu horror.
Cindy Sherman foi a artista que me motivou a elaborar e criar o espetáculo, mas minhas ferramentas criativas partem da minha vivência, das minhas lembranças, do que amo e do que odeio, do caminho percorrido, dos encontros que tive, das surpresas da vida, dos risos e das angústias.
Enfim… um trabalho árduo, cheio de nuances. Assim como a vida.
NATHÁLIA MELLO: Falamos sobre o fato de que o jornalismo cultural nessa cidade [Rio de Janeiro] não se interessa pela definição de projetos como dança-teatro; como categorizar Retratos? Existe singularidade ou originalidade nessa peça?
CAROLINA CONY: Difícil categorizar Retratos, mas não é impossível. Só acho uma pena ter que escolher uma definição para um espetáculo que realmente percorre diferentes linguagens. Gosto de pensar ele como dança. Sei da potência teatral que ele tem, até porque venho do teatro, mas não acredito que faça dele teatro. Escolho a dança, porque penso ele como movimento. Como se fosse um grande corpo, que abraça a artista, os elementos cênicos, tudo. Um corpo vivo. E pensando no meu corpo cênico, sinto a mesma sensação. Meu corpo está sempre em movimento. Existe algo de misterioso entre um gesto e outro, um passo e outro. Uma linha que une tudo. E que se move constantemente. Por isso acho que gosto de pensar ele como dança.
Acho que existe singularidade e originalidade em Retratos, sim. Ele foi criado a partir do encontro entre duas artistas, que não estavam determinadas a chegar em algum ponto específico, em como seria o formato, qual a dinâmica ideal etc. Ele foi acontecendo com um certo fluxo. Claro que com todas as questões e dúvidas que um trabalho levanta. Mas acho que é singular por ter esse caráter autobiográfico também.
NATHÁLIA MELLO: Como são selecionadas as fotos e como se estabelecem as dinâmicas dos movimentos de conexão entre uma “foto” e outra? Como surgiu o pouco texto que ouvimos nessa peça?
CAROLINA CONY: Eu já tinha algumas fotos que me afetavam muito. Não sei exatamente o porquê elas me afetam. Mas acho que tem a ver com a situação que elas sugerem: uma mulher de avental e lenço na cabeça olhando para trás com uma irritação contida, uma outra “brincando” com uma arma na cabeça, e outra se olhando no espelho e arrumando o cabelo. Eu olhava para essas fotos e me sentia convidada a sentir como aquela mulher e a construir um pouco do seu universo, a partir do meu.
Comecei os ensaios um mês antes da Cristina chegar. Era meu desejo estar só pra começar a investigar algumas coisas que havia pensado. Uma das primeiras coisas que fiz foi imitar algumas poses das fotografias que eu mais gostava. Escolhi cinco fotos para trabalhar a imitação e a repetição. Eu caminhava pelo espaço e parava nas poses, repetidamente, em velocidades diferentes. Depois comecei a trabalhar um pouco como uma pose poderia se transformar em outra e assim por diante. Mas isso foi só o início. Depois, começamos a dar vida às imagens, como pequenas situações cênicas. É incrível partir de uma imagem estática para uma cena em movimento. É como na revelação do filme, em que a imagem vai surgindo no papel. Surpreendente.
O texto do espetáculo surgiu de vários lugares. O primeiro texto, do “Super herói”, foi meu filho que fez, o Martin. Era tão incrível que foi impossível não usar. Eu contei o que ele tinha falado pra Cristina e ela pediu pra eu usar em cena.
O texto da cena “Morri”, que partiu de uma imagem da Cindy Sherman em que ela está deitada de olhos abertos, aparentemente morta com um pouco de terra no rosto, foi criado por mim. Na época estava fazendo uma oficina de dramaturgia com o Pedro Brício, o que foi ótimo para a criação desse texto. Eu escrevia para a aula e experimentava no ensaio. Foi bem interessante. Depois de pronto, a Cristina inseriu algumas frases de Clarice Lispector. Frases incríveis como: “Enfeitar-se era um ritual”; “Ponho perfume na testa e no nascimento dos seios”.
No último texto eu fiz uma colagem do livro Histórias Reais, da artista francesa Sophie Calle. Ela escreve uma pequena história e ao lado tem uma fotografia sobre essa pequena história. Eu percebi que as primeiras frases desses primeiros textos começavam com ela falando quando tinha essa ou aquela idade. “Eu tinha 09 anos.”; “Tínhamos 11 anos.”; “Eu tinha 14 anos” etc. Achei interessante e continuei lendo somente as primeiras frases, o que resultou num texto estranho, mas intenso.
NATHÁLIA MELLO: Você improvisa no estúdio? Existe um plano de ensaio no sentido de duração de atividades específicas em tempo e espaço? Qual a relação com a direção?
CAROLINA CONY: Sim. O improviso é essencial para a minha criação. Tanto para mim quanto pra Cristina. Esse é um ponto forte do nosso encontro.
Quando comecei a ensaiar, antes de a Cristina chegar, não havia muito planejamento. Às vezes levava os livros em que estava trabalhando, músicas e imagens. Outras vezes tentava fazer um certo planejamento, pensava em temas para começar a criar alguma partitura de movimento ou um texto. Mas nunca era pré definido o que faria na sala de ensaio. Muitas vezes chegava no ensaio e precisava de um tempo ali, naquela sala vazia, pra sentir qual seria a necessidade do dia. A minha necessidade criativa. Olhava pela janela da casa da Glória e admirava a vista, as pessoas ao longe, pequenas, passeando pela Glória, e eu lá. Mas esses momentos de pausa causavam em mim um vazio, e desse vazio surgiam bons improvisos. Era difícil começar e difícil de parar.
O encontro com a Cristina foi muito rico e fluido. Ela chegou e eu já tinha algum material para apresentar. Conversávamos muito, muito. Sua condução é delicada e rígida ao mesmo tempo. O que faz o trabalho ter nuances e ser intenso. É bonito ver o trabalho sendo lapidado e os materiais, que antes eram impulsos, se materializando e se transformando em cenas, movimentos, gestos. Intensidade. A Cristina tem um olhar sobre a dramaturgia que faz com que o espetáculo tenha uma linha que segura tudo. Ela é invisível, mas está lá. Somos as criadoras desse espetáculo. Levávamos o dia todo para ensaiar nossas reflexões sobre a vida e sobre o fazer artístico, sobre as inseguranças e as poucas certezas. Foi um encontro muito criativo.
NATHÁLIA MELLO: Como Retratos estabelece uma relação com a cidade? Quais são os planos futuros de apresentação?
CAROLINA CONY: Essa questão é importante. Depois que o trabalho estreou é preciso outro tipo de trabalho. É preciso fazê-lo circular, se deslocar, rodar, rodar. Tenho muito desejo de fazer outra temporada no Rio de Janeiro, porque ficamos pouco tempo em cartaz. Mas por enquanto não temos nada em vista.
Apresentei ele no Cacilda Becker, na ocupação 17 semanas de dança, da Flávia Tápias, que foi muito importante pra levantar ele novamente.
Tenho entrado em contato com algumas pessoas para que o espetáculo circule. Mas acredito que só em 2015.
NATHÁLIA MELLO: A sua trajetória na Intrépida Trupe influencia na sua prática até hoje?
CAROLINA CONY: Acho que tudo o que eu fiz ao longo da minha vida influencia na minha prática. A Intrépida foi essencial pro meu amadurecimento como artista. Pra mim foi muito intenso o tempo que estive trabalhando lá. Foram seis anos de dedicação a um grupo que me deu a oportunidade de criar vínculos fortes e amizades lindas. Como artista, desenvolvi uma elaboração corporal, fui conhecendo meu corpo, meu movimento, e acredito que esse tempo em que estive lá tenha sido essencial para que isso acontecesse. Assim como a Faculdade Angel Vianna. Durante o mesmo período estava na Angel, e sinto que foi uma boa escolha fazer a faculdade junto com a Intrépida. Descobri muitas coisas em relação ao meu corpo e, principalmente, aos meus desejos e escolhas artísticas.
Foram tempos de descoberta. Muitas viagens, muitos ensaios. É intenso o trabalho em grupo. Todos os dias você encontra as mesmas pessoas, ensaiando, conversando, almoçando, brigando, um monte de coisa. E esse “todo dia” constrói muita coisa. Era delicioso, na verdade.
NATHÁLIA MELLO: O que você tem visto nas artes e na vida que te chama atenção nos dias de hoje? Você poderia falar sobre alguns dos seus objetos-atividades venerados?
CAROLINA CONY: Durante o processo de Retratos conheci o trabalho de uma fotógrafa também norte-americana, que me encantou. Francesca Woodman virou minha Cindy Sherman. Seu trabalho me afeta muito, me emociona, me transporta pra um lugar misterioso, que ainda não sei o que posso fazer com isso e se é preciso fazer. Mas estou realmente encantada com ela. Ela se suicidou aos 23 anos. Uma tragédia! Fiquei muito mexida com isso. Sua história também me chamou muita atenção. Obra e vida. É impressionante a quantidade de coisas que ela fez na sua curta vida.
Tenho pesquisado muito sobre fotografia, visto muitas imagens, conhecendo mais fotógrafos.
Em nosso encontro falamos sobre Ana Mendieta, voltei a ela. Ela é de uma força absurda.
Na verdade, tenho visto bastante coisa, mas o que está me encantando ainda é a fotografia. É o que gosto de pesquisar em casa, folheando os livros e lendo sobre. Tenho visto algumas exposições. A última que vi foi Arte Vida, na Casa França-Brasil. Mendieta está lá! Linda!
PARA CITAR ESTA ENTREVISTA
MELLO, Nathália. “Entrevista com Carolina Cony”. eRevista Performatus, Inhumas, ano 2, n. 12, out. 2014. ISSN: 2316-8102.
Revisão ortográfica de Marcio Honorio de Godoy
© 2014 eRevista Performatus e a autora
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