Como Dizer o que Penso e Produzo em Até Mil Caracteres? Entrevista com Trinta e Cinco Artistas das Artes do Corpo

 

Em dezembro de 2016, trinta e cinco artistas – que têm o corpo como centralidade das suas práticas artísticas – foram especuladas(os), através de uma mesma questão genérica composta por quatro perguntas, sobre os motes que circundam os seus trabalhos. A provocação lançada só lhes permitia mil caracteres (sem espaços) como resposta, exigindo uma exposição sintética que cada artista elencada(o) é capaz de fazer da sua própria metodologia criativa.

As(os) artistas são as(os) seguintes: Alexandre D’Angeli; Ana Hupe; Ana Santos; Arthur Camargos; Cristiana Nogueira; Dani Barsoumian; Ed Marte; Fernando Hermógenes; Flavio Barollo; Flávio Rabelo; Francesco D’Avila; Gabriel Brito Nunes; Gustavo Ciríaco; Henrique Saidel; Janaína Carrer; Jaqueline Vasconcelos; Joana Levi; Joclécio Azevedo; Leonarda Glück; Lizi Menezes; Luiza Prado; Marcela Antunes; Marcelo D’Ávilla; Marcelo Denny; Márcio Vasconcelos; Marco Paulo Rolla; Mavi Veloso; Monica Galvão; Pêdra Costa; Priscila Rezende; Ricardo Alvarenga; Rodrigo Garcia Alves; Thi Angel; Van Jesus; e Yuri Tripodi.

 

TALES FREY: Como a sua produção artística traz à luz os atuais dilemas humanos? Você constrói algum tipo de denúncia com relação a alguma situação pontual ou o que você cria acaba por funcionar como uma proposta de solução para o que lhe é preocupante? Quais políticas e micropolíticas estão implícitas e explícitas nas suas criações? Seus trabalhos dialogam mais especificamente com o território em que você vive ou têm um caráter mais universal?

 

ALEXANDRE D’ANGELI: Creio que o grande desafio enquanto artista é estar atento aos movimentos de vida e suas questões, de forma que nossa produção seja sempre um reflexo do que vivemos. Por outro lado, penso que criar programas em performance não necessariamente precisam denunciar alguma situação ou mesmo apontar soluções. Pensar brechas onde a audiência possa integrar a ação e experienciar o que está sendo proposto me parece mais importante, bem como considerar a criação de acontecimentos verdadeiramente afetivos, de modo que as pessoas identifiquem fissuras que as possibilitem adentrar e permanecer. Em minhas criações proponho discutir as relações de poder no cotidiano das grandes cidades, seus enclausuramentos e o quanto essas relações atuam na construção de nossa subjetividade. As obras que desenvolvo transitam por diversos territórios, embora questões universais tenham sido cada vez mais recorrentes, como é o caso da performance e instalação 436, que trata da morte e desaparecimento de pessoas durante a ditadura militar no Brasil, que também foi realizada como 119 se relacionando com a ditadura no Chile. C17H21NO2/Au, acionada durante a V Bienal de Performance de Bogotá, que chamou atenção para a extração de minerais na Colômbia, país que também é o que mais sofre com conflitos socioambientais por extrativismo na América Latina.

 

Alexandre D’Angeli, Estudo Para uma Ergonomia do Efêmero. Performance apresentada em São Paulo, Brasil. Outubro de 2016. Fotografia de Waldiael Braz

 

ANA HUPE: Um artista deve refletir seu próprio tempo. No meu caso, me envolvo cada vez mais com a questão imigrante, por ser latino-americana vivendo em trânsito na Europa, estranhando e me deliciando com as diferenças culturais, econômicas, sociais. Da empatia pela diferença positiva que os imigrantes podem causar no mundo, pensando na diáspora forçada de quem foi retirado de sua terra à força, e recolocado em outro planeta, o novo mundo, como os africanos que atravessaram o Atlântico nos temidos navios negreiros, durante três séculos da escravidão, atividade que orientou a economia do mundo por tanto tempo, acabei chegando nas mulheres negras imigrantes hoje. Comecei a cruzar suas histórias, que me tocaram profundamente, com as de seus antepassados, num remix cometa, sem passado-presente-futuro, desejante do cosmos, o anúncio de um novo mundo integrado. O que faço é política, todos os dias.

 

Ana Hupe, Zentai. Performance apresentada na cidade de São Paulo, Brasil. Março de 2014. Fotografia de Daniel Toledo

 

ANA SANTOS: Luta, pode ser um jogo entre dois ou um combate solitário contra muitos; o importante é que existe sempre os dois lados; se há duas forças, há um jogo. Sempre ouvi dizer que aqueles que melhor lutavam eram os que dançavam no ringue. O artista tende a colocar a pergunta para fora de si e, consequentemente, encontrar algum tipo de resposta pessoal, o que não resulta em solução como palavra de conclusão em relação a algum tipo de pergunta. Interessa-me entender as dinâmicas corporais subjacentes e híbridas em relação a espaços em que estas se inserem, destruir esses espaços e entender a sua linguagem. Partir de uma forma histórica para estudar algum problema que nos parece importante socialmente, acaba por se tornar um jogo e um debate constante entre essas relações políticas. Ao falar em micropolítica, é claro haver um debate pertencente à própria realidade da questão. Há debate dentro do próprio debate e há opressão dentro da própria opressão. Há uma universalidade dentro dessa questão, porque ela nos acompanha ao longo da história precisamente pela sua capacidade mutável. O ringue ficará sempre aberto para os novos lutadores e aqui está a Queerness de toda a questão.

 

Ana Santos, (Estou-me) a Lixar, 2016

 

ARTHUR CAMARGOS: O meu trabalho como artista é de construção de lugar no mundo, uma tentativa de criar pontes com ele, de criar uma maneira de existir no mundo. Trabalho a partir das minhas experiências, memórias, anseios e afetos. Tudo passa pelo corpo e pela barra de rolagem. Online, fragmentado em bytes, meu ateliê é também virtual etéreo. Pinturas acontecimento, pinturas luminosas na tela brilhando para você. É como olhar num espelho. Like me or not. Quem eu sou? O que estou pensando? Gênero? Raça? Religião? A tentativa constante de transbordar conceitos e me fazer novo, invenção, mito-quase-folclore. Os museus não dão conta dessa arte toda por aí. Crie já o seu próprio museu em casa ou nas redes sociais! Criei um museu para curar. Não para chamar de meu, mas de #MuseuNossoDeCadaDia. Coloco nele o que está ao alcance da vista e da câmera mais próxima. Ando fotografando bastante o bairro para onde me mudei já faz seis meses. Me sinto mais em casa. Eu me lembro que todo fim de ano, eu ficava numa expectativa danada para saber qual seria a imagem que ficaria dependurada o ano todo na sala da minha vó, ou na cozinha lá de casa. As exposições anuais de imagem calendário.

 

Arthur Camargos e Davi Nascimento, Rapunzel, Curupira, a Princesa e a Ervilha, uma Torre de Colchões e uma Montanha de Afeto, 2015. Fotografia de Danilo Nascimento

 

CRISTIANA NOGUEIRA: Percebo em minha produção algumas questões que podem ser vistas como de interesse universal, como a imagem do corpo feminino, o erotismo fora do campo privado e a degradação ambiental. Trabalho na construção de ações que consigam ampliar a imagem criada inicialmente, abrindo espaço para várias camadas de sentidos; tendo em mente o impacto causado ao, por exemplo, realizar ações nas quais estou vestida de acordo com o estereótipo da mulher-objeto dentro de um contexto específico, que é a universidade onde trabalho. Dessa forma, levanto discursos criando a partir de um corpo que não está nos padrões, que não é permitido ser desejante/desejado, que exerce um papel de poder dentro de uma instituição e que não poderia estar ali daquela forma. Esse dilema desperta dúvidas sobre a legitimidade daquele corpo, no papel que ele desempenha, criando uma fissura. Estou interessada na exploração dessa fissura: incômodos que são trazidos à tona e possibilitam atravessamentos do sensível. Afetar e ser afetado como forma de se repensar o corpo e a sua relação com o mundo e também quais os limites (se é que existem) entre educadora e artista: não consigo desmembrar uma coisa da outra.

 

Cristiana Nogueira, Agudo. Performance apresentada em Macapá, Brasil. Setembro de 2016. Fotografia de Mari Silva

 

DANI BARSOUMIAN: Através do projeto Desidentidades, que vem com a intenção de flexibilizar as identidades solidificadas segundo normas que não me contemplam, eu me coloco em movimento de invenção de mim mesma e do mundo. É no compartilhar desse processo, na implicação do meu corpo na desidentificação de uma realidade que, a cada ação feita publicamente, convido cada pessoa a fazer o mesmo: olhar para si, reconhecer hábitos e encontrar mecanismos de desconstrução. Isso é micropolítica. Quando corto os pelos da boceta, monto com eles uma barba, passo um batom vermelho e vou tomar cerveja em um boteco ou quando entrego os meus pelos para presente, há possibilidade de instabilidade, e é nesse ambiente de risco que a mudança pode se manifestar. Sendo minhas, essas questões discutidas aqui estão relacionadas ao corpo da Mulher, à imagem da mulher sapatão e às discussões sobre feminilidade e masculinidade nesse corpo. Isso cria desidentificação direta com algumas pessoas, mas acredito que, na exposição e vulnerabilidade em que me coloco quando performo, todes podem criar empatia com a discussão. O que interessa não é a afirmação ou a negação das identidades e nem as identidades em si, mas o fluxo entre elas e a contínua ação de se desidentificar do que formata, oprime e restringe.

 

Dani Barsoumian, Desidentidades. Performance apresentada em São Paulo, Brasil. Abril de 2016. Fotografia de Rodrigo Munhoz

 

ED MARTE: Estou vinculado performaticamente a vários movimentos e lutas sociais da cidade. Então meu corpo se presta a denúncias de ataques ao universo LGBTQIA+, de violências diversas contra mulheres, moradores de rua, sem teto e juventudes (principalmente pobres e negras), mas dentro de um processo de circulação afetuosa pelas ruas, uma espécie de corpo híbrido que se apresenta como solução libertária e amorosa para dilemas contemporâneos: fundamentalmente os que dizem respeito à livre movimentação de corpos, desejos, com orientações sexuais e identidades múltiplas de gênero.

E embora esteja muito conectado a Belo Horizonte, onde misturo – sem preocupação com a ideia de autonomia artística – arte, vida e identidade pessoal (sempre em construção), atuando vivencial e performaticamente na Praia da Estação, nas ocupações urbanas, no corredor cultural do centro da cidade (Viaduto Sta. Tereza), nas favelas, no evento GayMada, no carnaval, embora essa conexão com BH seja tão forte, meu trabalho é – exatamente pela abertura ao outro – universal quanto à celebração da liberdade e ao convite à compreensão e ao envolvimento do meu corpo com outros corpos onde quer que isso aconteça.

 

Ed Marte, Réquiem para uma Noiva. Performance apresentada em Belo Horizonte, Brasil. Julho de 2016. Fotografia de Bruno Figueiredo

 

FERNANDO HERMÓGENES: Alunx Ruim e todos os espaços disponíveis serão ocupados (os indisponíveis terão suas cercas atravessadas) – são fontes centrais da minha vida-arte ao longo de treze anos como professor e cinco anos de produção. Em 2012, quando penso e ofereço a minha primeira ação numa sala de aula, quebrei regras da escola sobre ouvir funk – e a proposta foi absorvida pela direção. Como no livro de Gênesis, vi que era bom, muito bom. Minha relação com a performance sempre esteve costurada com processos em educação e por isso tenho um compromisso experimental sem desculpas. Das denúncias, sou Embaixador da MMX-São José – terreno comido pela mineradora na minha cidade, São Joaquim de Bicas [Minas Gerais, Brasil], assim como Embaixador dos Assuntos dx Alunx Ruim, uma postura estratégica de guerra para falar sobre as realidades, insuportabilidades e teoremas da educação e escola que acontecem no meu país. Escrevendo textos, performando, existindo, viajando e propondo, acredito que o meu trabalho pode ser levado como resposta, solução, mas sem ter isso como uma finalidade ou imposição. Quero estar disponível e experimentar no meu constante movimento entre cidades, pessoas e presença em outros modos de fazer a parada toda.

 

Fernando Hermógenes, 
Fação de Ungir um Rei. 
Performance apresentada em Macapá, 
Brasil. 
Agosto de 2016
. Fotografia de Emerson Leal

 

FLAVIO BAROLLO: Vivo aqui dias intensos, botando a mão na massa com os parceiros do Coletivo S.E.C.A., (se)cura humana, Cia do Tijolo, Ocupe & Abrace, AtravessA, Mungunzá, Digna. É com eles que encontrei forças para sobreviver em 2016, construindo microações de resistência. Traquitanas pela cidade que abrangem demandas onde o poder público expõe falhas e gargalos, como a abertura de um poço no leito de um rio concretado, ou laguinhos no asfalto com painéis solares ou um parque aquático com cachoeiras de nascentes.

Sensibilizar na experiência de um olhar diferente, que provoque reflexão ou até mesmo escárnio, para gerar uma nova camada sensível poética de fazer o mundo.

Com o projeto Vidas Secas SP, fizemos expedições pelas represas secas do Estado, depois Mergulho no Rio Tietê, em suas águas poluídas, a performance Piscina Regan no Deserto, nadando por cidades do Brasil e de outros países, tocando a causa da água com a Banda Tribororo, projetando os filmes (se)cura humana, corpo_cidade e #BrasildeTijolo pela cidade e em contêineres, ou cantando a causa LGBTQIA+ em praça pública com nosso espetáculo Ópera Urbe.

Sempre permeando o vídeo como montador de manifestos. Tudo um grande experimento de estar vivo.

 

Flavio Barollo, Wellington Tibério e Coletivo (se)cura humana. Cachoeiras do Parque Aquático Móvel. Performance apresentada em São Paulo, Brasil. Dezembro de 2016. Fotografia de Danilo Verpa/Folhapress

 

FLÁVIO RABELO: Minha produção geralmente surge de uma atitude filosófica, numa espécie de cartografia de inquietações, tanto numa esfera mais íntima e autobiográfica, quanto sociopolítica. Nessa atitude, exercito um tipo de olhar de rastreio que varre os territórios subjetivos micro e macropolíticos, a fim de ser capturado por zonas com mais vibrações. Nessas áreas onde sou capturado, costumo dar várias voltas e, ao longo desse processo de arrodear assuntos, vou deixando rastros, vestígios, pistas que se expressam em variadas linguagens e suportes (artísticos ou não). Esses materiais costumam criar uma rede de afetos que se autoalimenta, influenciando uns aos outros. Ou seja, ao passo que minha produção surge dessas dinâmicas de captura do que há ao meu redor, percebo também o quanto ela pode gerar deslocamentos e intervir diretamente sobre as pessoas e espaços. Acredito na potência das pequenas fissuras. Geralmente sou perseguido por algumas obsessões, assuntos e materiais que sempre me convocam, fazendo-me voltar a gastá-los mais um pouco. Gosto de pensar nesse paradoxo entre atrito e enlace, entre o desgaste e a renovação que surgem do contato íntimo e constante com alguns conteúdos. Às vezes, inclusive, acho que estou sempre “dizendo as mesmas coisas” e/ou apontando as mesmas questões com meu trabalho. Mas não vejo um problema nisso e sim uma postura ética que investe na ideia de diferença e repetição enquanto princípio. E ainda uma aposta na necessidade de me deixar levar pelas obsessões como parte fundamental do trabalho em arte. Contudo, vale destacar que nem sempre as ações buscam apontar soluções; por vezes, consigo apenas problematizar os assuntos numa esfera pública e/ou ritualizar/exorcizar os afetos que estão me desestabilizando intimamente no momento. Não necessariamente numa busca por curas, mas por deslocar pontos de observação/sensação/percepção das inquietações pulsantes.

 

Flávio Rabelo, Cara de Paisagem. Performance apresentada em Salvador, Brasil. Novembro de 2015. Fotografia de Renata Voss

 

FRANCESCO D’AVILA: A performance me provoca a pensar criativamente de uma forma libertária. Meu corpo torna-se canal de transformação da ideia, estimulado pelo espaço urbano, pelo público diverso e pelo contexto social. Uma característica presente é a criação plural sobre determinada ideia. A ecologia no meu processo de criação é um exemplo disso. Investigar essa variação pode contribuir para a criação de perspectivas. E, através das perspectivas, novas possibilidades de leitura do mundo. A construção da imagem através de símbolos, repletos de significado social (cito a ação em que coloco a constituição no rosto e, cego, caminho pelas ruas da cidade), remete para o público que se manifesta durante as intervenções, em viés de protesto. É meu desejo criar possibilidades estéticas valorizando a natureza política da performance. Micropolítica como (re)existência. A forma como é produzida a obra pode determinar o modo de vida do artista. A performance pode facilmente borrar as distâncias entre arte e vida, propõe inevitavelmente outras maneiras de reprodução dos modos de subjetivação dominantes.

 

Francesco D’Avila, Santo Homem da Verdade Ilusionista. Performance apresentada em Coimbra, Portugal. Dezembro de 2014. Fotografia de Jean Lucca

 

GABRIEL BRITO NUNES: O corpo é elemento central de minha prática artística e a ação performática é a oportunidade de executar uma ideia de forma literal e o meio através do qual atuo no mundo e me relaciono com as pessoas. As sujeições sociais às quais me dou conta pertencer, ou com que propositadamente me envolvo durante um projeto, são oportunidades de exposição, reconhecimento e eventual fratura crítica na maquinaria de agenciamentos que nos torna capital humano. Nesse estado de alerta, proponho gerar uma discussão sobre o corpo ao criar posicionamentos políticos para relacionar minha história pessoal com e no coletivo. Esse relacionamento já atravessou questões de sexualidade, identidade, gênero, prostituição e economia das artes. E já aconteceu em intercâmbio com comunidades como a rede de travestis e transexuais de Cuba, visitantes de um museu ou galeria, e passantes. Encontro-me agora na busca de um corpo para a ideia de América Latina, através de meu próprio corpo como paisagem e fenômeno, e da premissa de território além e aquém do contorno fronteiriço, que me tem levado a entender meu trabalho como gerador de encontros.

 

Gabriel Brito Nunes, La Malinche Condesada: El Arte se Va a la CHINGADA. Performance apresentada na Cidade do México, México. Setembro de 2016. Fotografia de Ernesto Moralbaut

 

GUSTAVO CIRÍACO: Nos meus trabalhos, lido com os modos de percepção e interação com o contexto local em termos de sua materialidade, qualidade sensorial e poder ficcional compartilhado por aqueles que o atravessam, habitam e, ao mesmo tempo, são atravessados por ele. Gosto do que é latente, do que é quase invisível, mas que, no entanto, gera uma arquitetura paralela, viva, a qual completa a vida dos lugares. O cunho político de minhas obras está, imagino, no fato de colocar os espectadores como intérpretes e donos em primeira mão de sua experiência. Nos últimos tempos, a noção de paisagem tem me levado a investigar como a humanidade enxerga a natureza, ou melhor, como ela cria zonas cegas de percepção em sua fantasia do mundo ao seu redor. Panoramas e horizontes, dioramas e maquetes têm me atraído como motores ou meios de colocar em questão como vemos os territórios que habitamos e o campo mais extenso ao qual todas as nossas vidas e ações estão acolhidas como possibilidade. Se o meu trabalho tem alguma implicação direta na solução ou contribui para a problematização das questões em que estou envolvido, isso dependerá de como o público irá lidar com a experiência que lhes proponho. No caso mais recente de minhas últimas criações, há uma ênfase na conscientização do modo como não percebemos o impacto real de nossas ações na natureza e como não percebemos o quão o nosso modo de vê-la está totalmente conectado ao modo como a nossa cultura nos inculcou a sua fruição e imaginação. Não tenho a ilusão de que o meio em que atuo possa significar uma grande transformação. Nosso meio é artesanal, limitado ao poder de alcance do público de uma sala de teatro. Não é mídia de massa. Mas é matéria de sonho, de testemunho de uma comunidade e de seu poder de contagio. É micro. Mas pode mover mundos e pessoas. A depender da força das associações e das pessoas que as carregarem em sua experiência.

 

Gustavo Ciríaco, Gentileza de um Gigante | Viagem a uma Planície Enrugada. Performance apresentada em Montevidéu, Uruguai. Abril de 2016. Fotografia de Santiago Tricot

 

HENRIQUE SAIDEL: Minhas criações procuram questionar – via ironia, metalinguagem, erotismo – formas fixas e ensimesmadas de sensibilidade e percepção. Um convite a um olhar outro, uma atenção outra, uma relação outra com os seres – humanos ou não, vivos ou não. É a denúncia de uma visão de mundo carrancuda e previsível, de uma postura (corporal, psicológica, social) enrijecida baseada na negação do inusitado, do riso e do gozo. Na minha tese de doutorado em artes cênicas, debrucei-me sobre questões como cópia, originalidade, mimeses, simulacro, antropofagia, autoria, natural, artificial, bom gosto, mau gosto, presença, ausência. Temas subjacentes na cultura pop contemporânea em tempos de incertezas: a micropolítica das relações e dos afetos surge como um dos principais campos de atuação. Não costumo trabalhar explicitamente com elementos autobiográficos, mas a obra é marcada por uma visão singular de mundo, pela minha forma de me apropriar e recombinar o entorno. Como artista da cena, da performance, minha atuação se dá no território onde vivo e compartilho com o público. No entanto, mesmo ciente de suas especificidades, as questões levantadas procuram diálogos mais alargados.

 

Henrique Saidel, Cicciolina’s Breakfast. Performance apresentada em Curitiba, Brasil. Junho de 2013. Fotografia de Lauro Borges

 

JANAÍNA CARRER: Acho que meu trabalho não parte da tradução de dilemas específicos, mas do dilema humano de lidar com suas transformações (e com isso as questões atuais acabam o permeando).

Em geral, não busco fazer uma denúncia pontual. O trabalho costuma surgir de uma inquietação muito pessoal, ou de um momento de vida, numa tentativa de olhar e trabalhar sobre aquilo. Acho que o que gero não é necessariamente uma solução, mas uma ação que expõe as possibilidades de transformação de si e do entorno.

Há aí uma micropolítica central em meu trabalho, o exercício de aprender a cultivar a si mesmo em uma (re)existência contínua. Um desenvolvimento de si, que exerce e gera micropolíticas em vida, e que na potência da ação pode reverberar, tocar e vibrar outros macrocosmos políticos. Nesse sentido, diria que a criação parte mais especificamente do meu território, mas acho que um corpo/ser em diálogo com outros corpos torna aquele microterritório universal (e ainda, o encontro torna-se um território outro). Como disse uma vez, “meu trabalho” sou eu: sou eu criando práticas de re.existência para mim e práticas de composição com o outro para descobrir outros possíveis de nós.

 

Janaina Carrer, Trabalhando o Sal #3. Performance apresentada em São Paulo, Brasil. Setembro de 2016. Fotografia de Rodrigo Munhoz

 

JAQUELINE VASCONCELOS: Em minha criação, prefiro partir de questões locais para tratar de problemáticas mais globais. Todo discurso que tenho traçado – com os trabalhos da Jack Soul Revenge Girl, que é essa persona que criei para tratar de violência contra a mulher, tenta dar voz às vozes silenciadas.

O que há de global nas minhas performances é justamente o que nos une nas diferenças: a opressão ao corpo da mulher.

Tudo o que proponho artisticamente é engajado politicamente. Não tenho pretensões em dar soluções, pois isso seria tornar rasas questões muito complexas. Me interessa o incômodo que o público sente ao ver-se ali.

Quando vocês me perguntam “quais políticas e micropolíticas estão implícitas e explícitas nas suas criações” digo que são aquelas que dizem respeito ao caráter do espectador. Não se trata apenas de falar de violência contra a mulher, mas colocar o público no diálogo de suas consequências e implicados na própria violência.

A violência é normatizada e, quando nos implicamos no seu fazer, talvez caminhos possam ser encontrados; o que não faço nas criações é apontá-los. Quero falar do que circunda o ser mulher, pobre e latino-americana.

O que vier como leitura expandida é suposição.

 

Jaqueline Vasconcellos a.k.a. Jack Soul Revenge Girl, Peso Masculino. Performance apresentada em São Paulo, Brasil. Novembro de 2015. Fotografia de Rodrigo Munhoz

 

JOANA LEVI: Meus últimos trabalhos evocam relações de tensão do tipo centro-periferia que se expressam em diversos contextos, por exemplo, urbanos, (pós) coloniais e de gênero, seja na relação espacial, na circulação restritiva de pessoas e mercadorias, nas posições fora da heteronormatividade, nas heranças escravocratas e extrativistas. Interessa-me abordar esses contextos políticos não para retratá-los, mas para gerar trânsitos insuspeitos, para assombrar padrões estruturais de poder. A performance é para mim espaço privilegiado de subtração das representações hegemônicas do poder, que intermedeiam as relações contemporâneas em geral. Provocar encontros desestabilizadores desses padrões é uma das formas que encontro para abrir frestas em nossa subjetividade, como nutrição de uma potência que se desdobra num campo relacional divergente da normatividade vigente. Dito de outro modo, faço performance como feitiçaria: para evocar ficções, inventar poções que se fiam sobre, sob, com os fios do real.

 

Joana Levi & Rita Natálio, Ritual de Casamento. Performance apresentada em São Paulo, Brasil, Outubro de 2014. Fotografia de Joana Levi & Rita Natálio

 

JOCLÉCIO AZEVEDO: Tento acionar à volta de cada novo projeto mecanismos de apresentação, de observação e de discussão que alimentem contradições e que possuam um carácter transitório, contribuindo para a circulação dinâmica de ideias e tentando libertar o processo do produto ou objeto artístico. O corpo surge no meu trabalho como uma ferramenta que fornece uma escala e uma plataforma de ligação aos outros. O que me fascina é perceber que cada corpo tem uma duração, um tempo de vida que lhe proporciona potência e fragilidade. Esse tempo de vida e aquilo que nos permitimos fazer com ele torna-se um processo permanente de interrogação e de experimentação estética, ética e política. O meu trabalho não tenta preencher lacunas ou solucionar problemas, mas preocupo-me em abrir espaços, em experimentar possibilidades de uso do tempo, de partilha do tempo como atividade colaborativa e transformadora num determinado contexto. O que fazer com o nosso tempo? Nesse sentido, penso que “o nosso tempo” não traduz apenas o que entendemos por “a nossa época”, mas nasce da capacidade de criar relações que possam entrecruzar a vivência do passado com a presença no presente e com a multiplicação de aberturas para a construção do futuro.

 

Joclécio Azevedo, Escombros. Performance apresentada na cidade do Porto, Portugal. Outubro de 2015. Fotografia de Susana Neves

 

LEONARDA GLÜCK: Meu corpo transexual é a melhor literatura que eu já produzi. Minhas carnes trazem as legendas pagãs dos melhores versos já escritos por mim. O corpo é a grande mídia do meu trabalho, seja ele textual, visual, teatral ou performático. É através dele que surgem as denúncias, as reiterações, as lutas, os muros e as trocas. Para mim, o grande dilema humano é a transcendência, o oco do inenarrável, é a própria limitação do corpo. A grande questão filosófica, para mim, já não é mais o que pode o corpo e sim o que o corpo não pode, e por onde irei desenvolvê-lo para que possa, de alguma forma. Meu corpo é arte para comunicar, as micropolíticas são raiva e amor dentro dele se entrechocando, o que sai é como uma mistura bem preparada, um prato bem servido. Quem come desse prato engole a minha política. Para mim, esse tipo de política é universal e dele ninguém escapa.

 

Leonarda Glück, La Lucha. Performance apresentada em Montevidéu, Uruguai. Novembro de 2014. Fotografia de Alejandro Persichetti

 

LIZI MENEZES: Minha produção artística procura dialogar a corporalidade como extensão de territórios, o corpo enquanto geografia mais próxima, no que diz respeito às dissemelhanças corporais e aos sentidos vitais. Procuro discutir a problemática da diferença sexual e dos sexos que “não são o masculino”. Talvez meu objeto artístico seja a denúncia por via da poética visual, sem construções de resoluções de conflito, apenas trabalhando os territórios onde os conflitos interiorizam e exteriorizam o corpo, exatamente no sentido universal do corpo: o vital.

 

Lizi Menezes, A braZileira II. Performance apresentada na cidade do Porto, Portugal. Agosto de 2015. Fotografia de Rafael Amambahy

 

LUIZA PRADO: Dentro do mundo que usufruo, quando um trabalho consiste em denúncia, inconscientemente busca algum tipo de solução, ou vice-versa; mesmo que essa ação seja micro diante do macro que o trabalho busca atingir, de modo geral eu a denomino como catarse e resistência.

O meu trabalho transita em políticas sociais, o implícito e explícito se misturam em temas envoltos à sexualidade e à marginalização do feminino, descolonização, privilégios, violência. Ele é universal – mesmo que alguns pontos sejam característicos – por correlacionar o vitimador e a vítima e performar, ainda que tentando desconstruir, numa cultura estrutural.

 

Luiza Prado, Indigestão, 2016

 

MARCELA ANTUNES: Aprecio a frase de Miguel de Cervantes: “Me moriré de viejo y no acabaré de comprender al animal bípedo que llaman hombre, cada individuo es una variedad de su especie.” Acredito que todos os performers que atuam de modo sincero sobre o que (n)os aflige, sobre o que (n)os move, já oferecem, de fato, uma contribuição real para retratar de modo poético o humano e suas problemáticas.

O humano é político, a arte é política, não há como ser ingênuo nesse sentido. As micropolíticas, ao meu ver, são geradas a partir dos encontros – no antes, no decorrer e no pós da realização de uma ação. Os encontros são potentes e são potências.

Por vezes o que acontece no entorno de uma ação é mais vigoroso do que a própria ação – os respiros que ocorrem no “entre perfomances” que realizamos e a que assistimos em festivais ou residências, por exemplo, bem como a mescla entre performers, público, gestores, comunidade local e o próprio lugar onde a ação é realizada. Trata-se de redes de afetos criadas e micropolíticas estabelecidas e abastecidas em suas bases, para que, em qualquer outro tipo de rede, possa assim proliferar e contaminar.

 

Marcela Antunes, Da Imaterialidade que Aspiramos. Performance apresentada em Delhi, Índia. Setembro de 2014. Fotografia de Marcela Antunes

 

MARCELO D’ÁVILLA: Meu trabalho tem como foco obras que permanecem na colisão entre vivências pessoais e sociais que atingem diretamente a muitos. Todos os trabalhos acabam se tornando identificação mútua entre artista e público. Atualmente, meus trabalhos têm se mostrado bastante políticos e com foco direto na denúncia, acentuando problemáticas como a mídia, a corrupção e a imagem real de políticos, numa forma de relato direcionado.

Todas as ações são construídas com base em problemas que me atravessam, como o momento no Brasil e a destruição da democracia, governos golpistas tanto daqui como de outros países; estes recentemente têm sido o alvo de minha atenção. Acredito que não há como se alienar disso e escolher criar em cima de uma felicidade anestesiada, que não condiz com nosso momento real. Para exemplificar minhas ações diante dos problemas que mencionei acima, enquanto lia o discurso de posse de Michel #ForaTemer, fui despido violentamente, os meus cabelos foram raspados, a minha barba foi retirada, um bigode à la ditador foi deixado em meu rosto e, simultaneamente, a palavra “golpe” foi tatuada em meu lábio, sem que o discurso cessasse. Trabalhar com ícones é uma tentativa de mover politicamente ideias que se reverberam junto de uma catarse, desestabilizar o que é visto como entretenimento e causar o recebimento de uma mensagem inesperada.

 

Marcelo D’Avilla, GOLPE. Performance apresentada em São Paulo, Brasil. Junho de 2016. Fotografia de ThamuCandyLust

 

MARCELO DENNY: Como professor de Práticas Performativas na Escola de Comunicações e Artes da Universidade de São Paulo, sempre começo minhas aulas com a seguinte pergunta aos alunos: “Qual é a sua espinha de peixe engasgada na sua garganta?”. Desse modo, forço dilemas, crises, questões e problemas, angústias e felicidades de toda ordem.

A denúncia é uma constante em minhas obras e também uma constante nos exercícios de aula. Porém, sempre fico me perguntando se, junto com a denúncia, não deveríamos também propor soluções. Muitas vezes conseguimos, outras, não. Há também aquelas soluções que jamais serão corporificadas e vividas de fato pelas(os) artistas/alunas(os) pelo simples motivo de sermos humanos.

Os problemas políticos são frequentes e se misturam com questões poéticas, criando territórios de duplas leituras. Friso muito esse aspecto quando das discussões e práticas com os(as) alunos(as), destacando a necessidade de propiciar uma respiração poética na denúncia politizada e dar ênfase a questionamentos políticos na poesia.

Meu trabalho sempre parte do individual para o universal, ou pelo menos sempre tento ir nessa direção. Em minhas aulas de performance na universidade, sempre pontuo que na autoexpressão contida na performance é necessário ultrapassar as fronteiras do ego ou do psicodrama e retumbar em leituras e poéticas mais amplas e universais. Aliás, essa tem sido a minha maior dificuldade: fazer as(os) alunas(os) criarem o salto entre o pessoal e o universal. Digo que, ao saltar para o universal, alcançamos a arte maior. Não é fácil e demanda um aprimoramento e uma afinação nos debates sobre signos, leituras semióticas, filosóficas e éticas. Mas creio que essa discussão é onde verdadeiramente reside a arte e a educação, que, para mim, são duas forças inseparáveis.

 

Marcelo Denny e Marcelo D’Avilla, Anatomia do Fauno. Performance apresentada em São Paulo, Brasil. Abril de 2016. Fotografia de Hélio Beltranio

 

 

Márcio Vasconcelos a.k.a. Ex-Punk-me, Atira-se Tomates Bons em Bons Artistas Podres. Performance apresentada em São Paulo, Brasil. Agosto de 2016. Fotografia de Rodrigo Munhoz

 

MARCO PAULO ROLLA: Tema central de minha obra sempre foi o ser humano e suas várias camadas, como a materialidade, o espírito, o amor, o prazer e, principalmente, o desejo, que considero nosso grande motor vital. Sendo o capitalismo o maior manipulador de nossa pulsão social, tenho trabalhado essa relação como pano de fundo para o que hoje são os dramas vitais do humano.

Parte da segunda questão já foi respondida acima com a observação de ações e realidades criadas pelo capitalismo no desvio do desejo humano sem deixar de colocar todas as camadas antagônicas na composição do cotidiano humano, principalmente quando tocamos espiritualidade em contraste com sua imagem e atitudes sociais.

Uma das maneiras é sempre partindo das imagens de publicações variadas no contexto humano, o desenvolvimento das tecnologias e a persuasão selecionados à necessidade de criar tais extensões do corpo.

Eu não crio nada como proposta de solução, a arte não esta aí para solucionar, mas transformar, mudar parâmetros e quem sabe até fomentar o desfecho de algo. Crio como modo de trazer à vida uma parte da existência humana que precisa resistir, que é sua sensibilidade vital, e tento usar a arte como ferramenta para essa finalidade.

As políticas e micropolíticas implícitas e explícitas em minhas criações são as do artístico.

Posso afirmar que o meu trabalho pode ser condizente a um local bem como à universalidade, mas sempre temos que tentar transgredir nosso clichê nos lançando a uma visão mais universal. Assim podemos criar linguagens distintas e experimentais para enriquecer o vocabulário e desviar o curso da normatização da vida.

 

Marco Paulo Rolla, Homem Escutando a Terra. Performance apresentada em Amsterdã, Holanda. Abril de 2012. Arquivo FLAM (Forum of Live Art Amsterdam)

 

MAVI VELOSO: Liberdade de fala, de expressão, consciência, criatividade. Multiplicidade, de gênero, de identidade, de transgressão da sexualidade. Direito de pertencimento ao lugar onde estou, segurança e expansão de território, de miscigenação e produção de conhecimento pelo compartilhamento de diferenças. Direito de possuir meu corpo, de descolonizá-lo, não tê-lo zumbi à mercê de novas e tradicionais formas de controle e captura exercidas por sistemas de poder e mídia. Possibilidade de afetividade, de afetação e prazer, entendo, adaptando e transgredindo estruturas e noções tradicionais do estar a dois, a três, a quatro…

Performo, pesquiso e vivo processos profundos de transformação corporal, emocional, mental, físico, vocal, sexual. Aproprio-me de tecnologias de transição M2F (male to female) e de processos de trânsito, migração entre territórios (Brasil para Europa, políticas de integração social/cívica entre países europeus) como modos e políticas implícitas e explícitas para desenvolver métodos e ferramentas de criação performática.

 

Mavi Veloso, Fingerprints, 2013-16

 

MONICA GALVÃO: Acredito que a arte da performance trata de processos irreversíveis, de atos do agora que fazem nos aproximar da morte. Estar à beira do abismo, de certo modo. A ocorrência da ação já se manifesta enquanto iminência do seu desaparecimento. Nestes tempos de esfacelamento das estruturas, se faz emergente pensar na potência política da ação no seu ato presente. Sua radicalidade de transformação na práxis política.

À beira do abismo no embate direto com a natureza do tempo, a potência da ação se estabelece no atrito com o material e contexto, neste caso, o metal, na performance 4.o Fracasso | metal | 2016, do Coletivo Cartográfico. Um estado de autodestruição e transformação no corpo. Violência exposta e crua, exaustão e deslocamento de sentidos e desejos, um corpo que fracassa. Em Tentativa de Extinção ou Evolar-se | 2016, a intoxicação gerada pelo contato com o carvão, em tempo estendido, trouxe outro aspecto de autodestruição e aniquilamento do próprio corpo, além de provocar outras camadas de subjetividade. Ações duracionais que criam vínculos de afeto humano e geram reflexões sobre angústias humanas mais profundas. A iminência da morte na ação, o aspecto irreversível.

 

Monica Galvão, Tentativa de Extinção ou Evolar-se. Performance apresentada em São Paulo, Brasil. Maio de 2015. Fotografia de Rodrigo Munhoz

 

PÊDRA COSTA: Acho essa pergunta muito ampla. Se entendi certo, não acho que a produção artística seja salvadora de nada. Alguns temas não são atuais, apenas têm uma visibilidade diferente atualmente. Trabalho a partir das minhas experiências de vida em conexão com a história da qual faço parte, mas não me vejo trabalhando sobre dilemas. Dilema é o contrário de solução, saída, aberta. Eu trabalho com aberturas. Logo, não trabalho com dilemas. E, em muitos momentos, fracassei no processo de “ser humano” e continuo fracassando diariamente.

Eu trabalho descentralizando o conhecimento hegemônico em suas variadas formas.

Kuir, pós-pornô e deCUlonização são políticas claras nas minhas criações.

Meus trabalhos dialogam com os territórios nos quais vivi e nos quais eu vivo. “Universal” é conhecimento hegemônico.

 

Pêdra Costa, Solange, Tô Aberta! Performance apresentada em Barcelona, Espanha. Março de 2016. Arquivo El Palomar

 

PRISCILA REZENDE: Acredito que meu trabalho seja evidente e fortemente político. Meu trabalho atua para mim como uma ferramenta de acesso a certos pontos da sociedade brasileira que frequentemente são ignorados, ocultados, propositalmente esquecidos. Dessa forma, desejo e busco fazer com que meu trabalho seja disparador de um diálogo, de questionamentos e discussões. Como mulher e negra, direciono meu trabalho na discussão do racismo e presença (ou a falta dela) do indivíduo negro na sociedade brasileira, em especial a mulher. Não posso dizer que meu trabalho apresenta exatamente soluções, pois o pensar e discutir questões raciais, tanto no Brasil quanto em outras localidades, ainda é um trabalho árduo, gerando conflitos, e às vezes chega a ser doloroso para os envolvidos que sofrem as consequências do racismo. Acredito que ainda temos um caminho longo até alcançarmos soluções e de fato efetuarmos mudanças, mas acredito também que instigar o diálogo, o não silenciamento das discussões sobre nossa história, sobre o ser negro ou não negro, sobre o lugar desse indivíduo e da mulher em nossa sociedade podem sim ser partículas de soluções, ou ao menos ações para a construção das mesmas.

 

Priscila Rezende, Bombril. Performance apresentada em Belo Horizonte, Brasil. Setembro de 2010. Fotografia de Priscila Rezende

 

RICARDO ALVARENGA: Na minha produção artística, o corpo é a matéria e o meio pelo qual busco intensificar a existência e a experiência de comunicação com o mundo; e a produção de imagens, um modo de fazer-me corpo em outras mídias e virtualidades, ampliando o alcance de atuação político-estética das ações. Ocupando espaços institucionais de arte, existindo em redes sociais ou vivenciando ações em anonimato nas ruas e espaços públicos, busco criar composições e situações que deslocam percepções comuns, instauram potências de encontro e afecção e possibilitam reinvenções de modos de existir, investidos do interesse em confrontar padrões sociais normativos formatados pelos processos de subjetivação – institucionais, religiosos, políticos, midiáticos, colonialistas – que insistem em controlar nossas individuações e coletividades. Nessa conjuntura, trabalho para ampliar capacidades de percepção e de interferência no mundo, problematizando o corpo, suas relações, representações e desvios, tendo, como motivação, questões universais ligadas à iconicidade religiosa, identidades de gênero, sexualidade, animalidade, hominização e capacidade de alteridade.

 

Ricardo Alvarenga, Jesus 3:30. Performance apresentada em Salvador, Brasil. Novembro de 2012. Fotografia de Jacob Alves

 

RODRIGO GARCIA ALVES: As performances que desenvolvo junto com a plataforma Studio Disorder, criada por mim durante meus estudos de mestrado, buscam estabelecer uma conexão entre velhas e novas realidades históricas sob a luz da produção artística desenvolvida pela Europa nos séculos XVII e XVIII. O que me interessa enquanto escopo conceitual é entender, através dessa história da arte, processos de colonização que vieram influenciar e desvirtuar outros processos artísticos e de vivências de povos fora do continente europeu. Para mim, todos os acontecimentos atuais e, principalmente, os mais críticos, são consequência ainda dessa empreitada colonial estabelecida lá atrás e, por isso, nas performances do Studio Disorder, usamos estéticas que na superfície (figurinos, cenários, estruturas musicais) dão ao espectador o peso de tempos passados, mas a dramaturgia se desenvolve de maneira contemporânea, associativa e crítica. Falamos de migrações, violência, extermínio, apropriações culturais e artísticas, “feedback” ou “bashback”, humor em tempos de guerra, afetos, sexualidades… Em geral, minhas performances não oferecem soluções aos problemas que apresenta, mesmo porque não os apresentamos como problemas, mas como realidades transformadoras e passíveis de serem retransformadas. Não somos nunca pessimistas. Falamos em luta, em coletividade e, como dito anteriormente, em afeto. O Brasil, a América Latina, o continente Americano são sempre os começos, motes, gatilhos do que nos interessa. Mas claro que, ao final de um processo, sempre acabamos universalizando os nossos diálogos para que o diálogo com o espectador, que geralmente é feito no contexto europeu e mais especificamente alemão, aconteça de maneira fluida e também provocadora.

 

Rodrigo Garcia Alves, Dislecture. Performance apresentada em Berlim, Alemanha. Junho de 2014. Fotografia de Pêdra Costa

 

THI ANGEL: Minha produção artística propõe, de algum modo, que se repense a autonomia dos corpos, questiona o que pode ou não um corpo e, nesse sentido, se choca com forças muito enraizadas na sociedade que coíbem e rechaçam esse tipo de produção artística, filosófica e política de vida. Minha produção discorre sobre as liberdades em ser aquilo que se quer ser e, nesse sentido, não sinto que seja um dilema de todo atual. Historicamente, populações foram e são exterminadas por essa busca de si, de se assumir enquanto ser. O que eu faço constrói uma denúncia contra a destruição de um mundo acessível para todas as pessoas, ao passo que também funciona como proposta de solução, ou melhor dizendo, de enfrentamento e resistência contra estruturas de poder fascistas que vociferam quem deve ou não existir. Eu sou uma monstra, uma aberração, e assumir essa identidade enquanto animal humano é, ao mesmo tempo, construir uma coreografia em um campo biopolítico. Meu sangue é explícito, minha nudez é explícita, meu suor é explícito, minha saliva é explícita e carregam implicitamente denúncias constantes sobre as vidas que importam. Meus trabalhos falam sobre a vida e, nesse sentido, ele é bastante universal.

 

T. Angel, Semen-te. Performance apresentada em São Paulo, Brasil. Junho de 2014. Fotografia de Priscila Nunes

 

VAN JESUS: Através de perguntas, expostas e sondadas de maneira individual ou coletiva, minha produção artística nasce de uma busca em compreender um pouco os dilemas humanos e como as pessoas lidam com eles, de maneira pessoal e coletiva.

Acredito que o que crio funciona como uma proposta de solução para o que me preocupa. Às vezes trata-se de uma proposta de ação direta, trabalhada individualmente, ou de uma demonstração de uma outra possibilidade de se fazer algo.

Escolho sempre trabalhar com questões de ordem política/micropolítica ligadas ao estado de liberdade, realização e concretização dos desejos e sonhos. Suas permissões e sua interpretação perante o mundo, seja ele abordado de forma individual ou coletiva.

Meu trabalho se divide em duas abordagens. Uma parte trata de questões de como se dá as relações sociais e políticas na parte geográfica do mundo onde escolhi viver. E há uma parte que trata da relação política e social em um nível mundial ou como o território em que vivo se relaciona com o mundo.

 

Van Jesus, O Que Você Faz Com Aquilo Que Você Tem? Performance apresentada em Resende, Brasil. Novembro de 2013. Fotografia de Anna Heuseler

 

YURI TRIPODI: Procuro sempre estar atento ao meu tempo sem perder de vista a construção histórica intrínseca como memória de corpo nas subjetividades e modos de relação repletos de normativas, interdições e condutas regradas nos quais, vivenciando diretamente, existindo e criando factualmente, busco produzir fissuras e projetar a realidade que desejo, vislumbrando uma sociedade libertária e pulsante, não repressora. Penso que, quando você produz, existe um sentido de denúncia que eclode na tentativa de anunciar outros modos de existência, mas estou mais adepto a construir narrativas corporais que visam a desobstrução dos poros de alienação e controle a fim de criar uma política de liberdade de pensamento-expressão-criação, um fazer-dizer que anuncia possibilidades de relações diferentes da imposição de formas de conduta. Eu procuro um espaço de universalidade em minhas produções por acreditar e compreender que vivemos sujeitados a uma estrutura globalizante, e sinto, particularmente, mais potência em existir/produzir sobre essa perspectiva. A transformação precisa partir de um pensamento sistêmico, integrado ao seu tempo e às suas características, ativas (vibráteis) e reativas, para projetarmos um mundo micro e macropolítico em fusão com a potência que nos faz vivos e mais livres.

 

Yuri Tripodi, Bikini Quadradão. Performance apresentada em Salvador, Brasil. Maio de 2014. Fotografia de Mariachiara Mondini

 

 

PARA CITAR ESTA ENTREVISTA

FREY, Tales. “Como Dizer o que Penso e Produzo em Até Mil Caracteres? Entrevista com Trinta e Cinco Artistas das Artes do Corpo.” eRevista Performatus, Inhumas, ano 5, n. 17, jan. 2017. ISSN: 2316-8102.

 

Revisão ortográfica de Marcio Honorio de Godoy

Edição de Da Mata

© 2017 eRevista Performatus e o autor

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