Teia de Penas com Kira O’Reilly

 

Conheci Kira O’Reilly em uma disciplina de mestrado que fiz na Laban University, “Estratégias Criativas”, que trazia artistas das diversas subáreas da performance ou que tratavam de temas recorrentes no campo; conheci trabalhos e práticas específicas nos formatos one-to-one, intimidade, identidade, biológico, camp, pele e abjeção, alguns dos meus favoritos. Kira me impressionou por apresentar uma presença investigadora peculiar, não uma presença que aparenta investigação, mas uma presença permissiva à dúvidas, quase que todo tempo, funcionando através de um processo de acumulação. Para mim, ela representa um perfil verdadeiramente indisciplinar e, certamente, se destaca pela grande curiosidade que a rege. Kira O’Reilly é performer do Reino Unido. O British Council apresenta uma definição de sua prática como sendo “deliberadamente interdisciplinar e totalmente indisciplinada”. Com formação em Artes Visuais, O’Reilly atravessa estudos biotecnológicos, performance, dança, novas mídias e texto, e investiga o corpo, os corpos. Eu vejo um corpo que se faz instável e cambaleante justamente para, ocasionalmente, criar espaços de afirmação. Espaços quase sempre curtos e em constante processo de modificação.

 

NATHÁLIA MELLO: Você classificaria sua criação artística como moderna? Arte moderna ainda pode ser considerada uma definição para práticas contemporâneas (mesmo que talvez a ideia de confronto entre movimentos esteja no passado)?

 

KIRA O’REILLY: Suponho que associo a expressão “arte moderna” com práticas modernistas e respectivos propósitos, então descrevo minha prática como contemporânea ao invés de moderna, porque sou constituída pelos discursos da história da arte e crítica que fazem distinção entre moderno e contemporâneo e, claro, sou um produto do meu tempo e da cultura contemporânea na qual vivo.

 

Kira O’Reilly, Stair Falling (2009). Marina Abramović Presents…, Whitworth Art Gallery, Manchester International Festival, 2009. Duração da performance: 17 dias / 4 horas por dia. Fotografia de Marco Anelli

 

NATHÁLIA MELLO: Seu trabalho Stair Falling é realmente uma interpretação de Nu descendant un escalier, de Marcel Duchamp? Como seu processo criativo começou neste trabalho? Você trabalhou noções similares quando apresentando Untitled Bomb Shelter Action for Kuopio, Returning? Enquanto assistia a você em Manchester (Manchester International Festival 2009 no Whitworth Art Gallery), pensei: o que será que passa pela cabeça dela enquanto está descendendo a escada tão devagar, controlada, pesquisando? O que passa pela sua cabeça?

 

KIRA O’REILLYStair Falling não é uma interpretação para o trabalho Nu descendant un escalier, de Duchamp. Embora eu conheça o trabalho, este ou nenhum outro trabalho artístico influenciou meu pensamento inicial, de maneira alguma. Eu fiquei impressionada pela arquitetura; a luz e a imagem de uma figura nua de bruços na escada sugeria uma queda. A partir de então, investiguei e pensei como aquilo podia ser alcançado. Passei por muitas diferentes rotas e empenhei muito tempo no estúdio trabalhando várias práticas de yoga. Também conversei com a artista e performer Fiona Wright, que trabalha com movimento e, atualmente, com feldenkrais. Nós ficamos algum tempo na escada, discutindo como o corpo, meu corpo, se organizaria e como eu acessaria esse espaço. Decidi enfim permitir que o trabalho fosse uma investigação mesmo, que o método evoluísse durante a situação da performance.

Untitled Bomb Shelter Action for Kuopio, Returning foi primeiramente sobre como retornar para um lugar onde eu tinha performado um dos meus melhores e mais potentes trabalhos conhecidos e como reencontrá-lo, redefini-lo. Como Stair Falling, o trabalho demandou ação similar de rolar e cair, mas a arquitetura era completamente diferente. O espaço era tipo um túnel, um ex-abrigo contra bombas construído ao lado de uma colina, remanescente desde a Guerra Fria, atualmente usado como uma academia de ginástica. Eu comecei me enrolando nas cordas do ringue de box feito uma aranha emaranhada, nua. Gradualmente, eu me movia, rolando vagarosamente e, ao contrário, para fora do ringue, em direção à Central Avenue do túnel. O trabalho foi performado quase que na escuridão total e apenas cinco pessoas podiam entrar no espaço por vez. Eles recebiam pequenas lâmpadas de LED que utilizavam para me localizar.

O que passa pela minha cabeça? Não sei, não muito. Mas o que passa pela minha cabeça seria dificilmente interessante ou relevante para o trabalho artístico. Não interessa realmente o que passa pela minha mente, desde que eu esteja focada e concentrada, isso é o principal: foco, comprometimento, empenho, concentração e consciência.

 

NATHÁLIA MELLO: Quais são suas trajetórias interdisciplinares? Como você posiciona budismo e biociências na sua prática?

 

KIRA O’REILLY: Há interdisciplinaridade no sentido de que reúno muitas fontes e modos de fazer, apesar de não ter domínio de nenhuma das áreas. Eu diria que sou “voluntariamente indisciplinada”.

Em 2002 refugiei-me no, em outras palavras, tornei-me praticante de budismo. Não estou certa de como responder à sua questão, porque não posiciono o budismo conscientemente na minha prática artística, mas ser artista, ou tentar ser uma artista, está intimamente ligado à minha prática budista. Budismo é meu chão; tudo, idealmente, vem dessa inspiração e do meu entusiasmo pelo budismo, seja comprando comida, limpando a banheira, polindo meus sapatos, indo para aulas de artes marciais, ouvindo música, fazendo amor. Eu não relacionaria budismo à interdisciplinaridade no sentido de que não o acesso como uma disciplina acadêmica, embora isso seja possível, claro. Meus professores de budismo, Ngak’chang Rinpoche e Khandro Déchen, os portadores dos ensinamentos da linhagem que pratico (Aro Budismo) posicionam uma forte ênfase nas artes, eles mesmos são artistas, atravessando um número de formas em seu trabalho. Uma das coisas que eu aprecio, e que eles enfatizam, é o encorajar mobilidade pelas categorias. Mover através das formas e modelos, permitindo que fronteiras se dissolvam e que haja definição somente por uma configuração de parâmetros.

As biociências são outra fonte de fascínio e interesse e acho que isso está relacionado a duas coisas: materiais e mutabilidade. Desenvolvo um conjunto de preocupações esculturais e de narrativa, das histórias que contamos a nós mesmos sobre nós mesmos, das quais nossas atividades culturais, como a biociência, poderiam ser vistas como uma. A progressão de inovação e desenvolvimento de conhecimento e tecnologias nas biociências podem representar um crescimento exponencial, criando buracos profundos em nosso entendimento de biologia experimental. O espaço entre estes é um lugar frutífero para artistas e designers para trabalhar, produzir trabalhos de arte, artefatos, eventos e situações que destrincham e ampliam enquadramentos conceituais, nos quais o observador ou o público podem duelar ou contemplar.

Durante tanto tempo quanto posso lembrar, sou curiosa sobre o corpo e sua materialidade inata, sobre o fato de que você pode fazer coisas com o corpo, manipulá-lo ou modificá-lo, que há o senso de mutabilidade e transformação potencial. Em 2003, tive a oportunidade de fazer a residência da SymbioticA, um programa de pesquisa para artistas em biociências, na University of Western Australia, e fiquei lá por dez meses. Fui também formada e entusiasmada pelo trabalho de artistas como Tissue Culture e Art Project e os respectivos usos de culturas celulares e engenharia de tecidos. Rapidamente conectei tais práticas não somente com novas mídias, mas também com Dadá e movimentos surrealistas – havia uma dimensão performativa distinta para isso também. Eu aprendi sobre os rudimentos da cultura de tecido, como isolar células e sustentá-las. Investi bastante tempo pensando sobre o que isso significava e quais implicações culturais estariam envolvidas. Uma importante consideração foi dada às implicações da pesquisa, ou seja, trabalhar com animais não humanos, derivados ou organismos inteiros, e perceber que posicionamentos éticos poderiam haver e como trabalhar em direção e através destes. Estava em um ambiente acadêmico para pensar ideias sobre o corpo e permitir que minhas concepções pudessem ser reconfiguradas, e que se expandissem e pudessem se desfazer. Algumas modificações fundamentais ocorreram no meu modo de pensar, mas foi crucial que essas mudanças ocorressem através de processos experimentais. Sempre inicio o processo com alguma coisa concreta, uma atividade, uma prática, e meu pensamento ocorre durante o fazer, através deste vetor. Ao passo que, na SymbioticA, eu estava trabalhando células no laboratório, e, ao mesmo tempo, embarquei em um período de prática intensa de yoga todos os dias, sob a orientação de alguns professores muito bons de Iyengar yoga. O trabalho contínuo sobre e com meu corpo foi perfeito contraponto para trabalhar uma noção estendida e mais abstrata do corpo no laboratório. Não estruturei isso conscientemente, a situação ocorreu de maneira mais intuitiva, mas rapidamente pude ver e apreciar a latitude e perspectiva que isso me deu. Também trabalhei com um grupo de rendeiras locais; meu projeto era o de criar uma renda viva através de células vivas, um têxtil vivo. Então houve um entrelaçamento de fios de atividades: a tecnologia biocientífica, o artesanato local e feitura de renda, e prática corporal na forma de yoga. Este é meu comportamento típico: organizar uma série de atividades paralelas e permitir que interajam e informem umas às outras. Eu não dirijo como as informações devem fluir, permito que o pensamento emane através da criação de espaços para que ele aconteça. Curiosamente, para mim, uma das coisas que desenvolvi a partir dessa experiência, foi o início de uma prática escrita, com a qual pude brincar com esses percursos e permitir que a natureza fragmentada cortasse e entrelaçasse com uma outra, e criar pedaços de textos que poderiam ser lidos, performados entre convenções e conferências acadêmicas e simpósios. Eles têm sido muito bem-sucedidos.

Consequentemente, trabalhei similarmente com a doutora Janet Smith na Escola de Biociências na University of Birmingham. Ela e eu ficamos muito tempo no laboratório experimentando cultivar células em seda de aranha. Nós tecemos conversas e diálogos sobre tecido, têxteis e texto.

Meu amor e interesse pelas biociências me permitiram criar trabalhos artísticos relevantes sobre transformação e metamorfose, e o acesso a esses trabalhos ocorre através da techné e preocupação particular e peculiar ao nosso tempo contemporâneo.

 

NATHÁLIA MELLO: “Permitir que as fronteiras se dissolvam” enquanto acessa fronteiras disciplinares, células, construções; o modo como você fala das práticas que você ama é muito atrativo. Há algum resultado físico da pesquisa de cultivo de células em seda de aranha?

 

KIRA O’REILLY: Não há nenhum resultado de performance específico, mas vários pequenos resultados performativos que se manifestam através de fotografias e textos. Pequenos trabalhos, delicados, como estudos de teias de aranha organizando-se entre meus dedos, teias frágeis se formando ao redor de fios e cabos, armando teias velhas, empoeiradas sob minha pele como se fossem meias-calças bem fininhas, ou provocando os ninhos de aranha e bloqueando, com pinos, para que formem pequenas almofadinhas. Também venho desenvolvendo uma performance que deve ter a duração de três dias, utilizando embriões de galinha em estágio bem inicial, incubando-os até que se desenvolvam, permitindo que o público os segure e, depois, vou cobri-los com glitter verde para que se transformem em algo artificial e decorativo. Finalmente, através de pequenas janelas, cuidadosamente cortadas, vou expor os embriões e os corações precursores.

 

Kira O’Reilly, Cable Tie Webs (2009) a partir de Biocrafts & Edge Practices. Fotografia de Kira O’Reilly

 

Kira O’Reilly, Fingerweb series (2009) a partir de “Biocrafts & Edge Practices”. Fotografia de Kira O’Reilly

 

NATHÁLIA MELLO: A reprodução de um trabalho de alguém, por outros corpos, é menos valioso? No trabalho Untitled (Syncopations For More Bodies), você, generosamente, convidou outras artistas, no início da carreira em performance, para colaborar com você; elas reproduziram sua própria linguagem corporal, performada previamente em um trabalho solo, incorporando diferenças que, naturalmente, são incorporadas pela repetição, pensando sobre os temas de dúvida e certeza, entre outros elementos. Untitled (Syncopations For More Bodies) apresentou o seu corpo, “o original”, em relação aos outros corpos.

 

KIRA O’REILLY: Bem, em primeiro lugar, eu amei fazer Untitled (Syncopations For More Bodies) com você, Lauren Barri Holstein, Hrafnhildur Benediktsdóttir e Amanda Prince-Lubawy. Senti a generosidade vindo de vocês quatro. Vocês trabalham extremamente pesado, fizeram duas performances maravilhosas e, vamos ser claras, receberam pouquíssimo. Comento mais sobre isso na sua próxima questão porque isso se relaciona com algumas questões levantadas lá.

Eu nunca realmente considerei esse trabalho expandido em termos de “originais” e “reproduções”. Eu pensava mais em termos de distribuição, corpo disseminado, multiplicidade e ressonância, os aspectos formais, preocupações visuais e a simples ideia – o que acontece quando você amplifica uma coisa, aumenta sua escala e a faz aumentar? Eu rejeitaria a ideia de que meu corpo, dentro da lógica deste trabalho, seria o “original”. Assisti ao mais recente trabalho de Simon Vincenzi no Great Hall of the People’s Palace, onde performamos Untitled (Syncopations For More Bodies), reaberto depois de um reparo substancial. Neste trabalho, Vincenzi trabalha com um grupo de outros quatro homens e, depois, com uma figura feminina separada; os quatro homens performam de maneira estranha, trêmula; ações estremecidas e cambaleantes, que parecem seguir a liderança de uma figura, são um e separados todo o tempo, parecendo uma unidade impossível, com tipos diferentes de corpos e com a execução de variações sutis. Realmente me lembrou do nosso trabalho e como construímos e pensamos sobre nós mesmas, e como estas diferenças foram materializadas através dos nossos físicos tão distintos. Me fez querer trabalhar novamente, talvez, desta vez, com corpos masculinos.

 

Kira O’Reilly com Lauren Barri Holstein, Hrafnhildur Benediktsdóttir, Nathália Mello e Amanda Prince-Lubawy, Untitled (Syncopations For More Bodies), 2010. Fotografia de Jon Cartwright

  

NATHÁLIA MELLO: Seria interessante ver corpos masculinos exteriorizando espasmos que nossos corpos expeliram. Kira, você colaborou com outras pessoas, por exemplo, em uma série de fotografias com Jennifer Willet, mas você também experienciou performar justaposta à presença de um porco em Falling Sleep With a Pig. Você percebe trajetos comuns de negociações estabelecidas com o público, colaboradores ou animais não humanos? Você percebe a repetição de comportamentos de outros em relação à sua persona performática?

 

KIRA O’REILLY: Não, eu não diria que há repetição. E eu não considero ter uma persona performática.

 

Kira O’Reilly & Jennifer Willet, Refolding (Laboratory Architectures Twins), 2010

 

NATHÁLIA MELLO: Sara Wookey, dançarina que trabalhou com Yvone Rainner no fundamental trabalho Trio A, publicou uma carta aberta relatando a própria experiência de audição para a exibição de Marina Abramović no MOCA, em Los Angeles, 2011. Nesta carta, ela menciona a dificuldade de performar para ou com celebridades. Ela destacou a ausência de padrões trabalhistas, salários e segurança em trabalhos artísticos no setor cultural. Como se diferencia a sua experiência de colaboração com Marina Abramović e Robert Wilson em The Life and Death of Marina Abramović?

 

KIRA O’REILLY: É engraçado falar disso, porque eu estava agonizando para convidar vocês quatro para Untitled (Syncopations For More Bodies), justamente quando eu estava em Madri, trabalhando nos primeiros workshops para o espetáculo de Robert Wilson e a pergunta maior era exatamente a de que eu não tinha financiamento suficiente para pagar vocês propriamente. Consultei outra artista que trabalhou na Laban University e conhecia vocês quatro e sabia que seria tranquilo convidá-las, que seria uma coisa boa, que as quatro apreciariam a experiência, e que vocês considerariam o acordo. Eu só quis mencionar isso, porque um bom trabalho artístico surgiu, mas poderia não ter sido assim. Vocês quatro fizeram a escolha e eu estava satisfeita, mas não teria sido sem propósito se vocês tivessem dito não.

Eu nunca percebi Marina Abramović e Robert Wilson como “celebridades”, que eles talvez sejam, quem sabe, mas nunca me ocorreu pensá-los desta forma. Os dois são artistas que eu tenho admirado e pessoas que têm muito valor para mim.

Encontrei o trabalho de Marina, pela primeira vez, quando eu era estudante, um ano antes de iniciar a escola de artes em 1995. Fui ver uma exposição de seu trabalho em Oxford, no Reino Unido, chamada Objects Performance Video Sound, uma coleção de documentos da performance, fotos em preto e branco com descrições curtas, concisas e com uma série de trabalhos esculturais maravilhosos de cristais e rochas, energia e presença. A última pedia que o observador interagisse com a escultura, utilizasse e se engajasse com ela. Eu amei a exposição inteira e vi que estava validando tremendamente muitas das coisas que eu estava pensando em fazer, particularmente os trabalhos de performance mais físicos. Respondi visceralmente e emocionalmente a estes, às imagens em preto e branco e aos textos, para além e fora das palavras. Você sabe, anos depois tive a oportunidade de trabalhar com ela, certamente não estou pensando nela como celebridade, penso em uma artista que colocou seu corpo na linha. Não estou dizendo que ela não seja uma celebridade, somente que não estou raciocinando através do posicionamento deste ponto de vista.

Participei de dois projetos com ela, nenhum deles em colaboração. O primeiro foi comissionado pelo Manchester International Festival e produzido pela The Whitworth Gallery, com o título de Marina Abramović Presents…, em um formato concebido por Marina. O evento durou dezessete dias e cada um dos catorze artistas e eu fomos convidados a performar trabalhos individuais todos os dias por quatro horas. Durante a primeira hora, Marina colocaria os observadores em uma série de atividades que tinham o propósito de acalmar o observador para facilitar a habilidade de permanecer na galeria para os trabalhos duracionais. Apresentei um trabalho novo na época, Stair Falling, que é uma “queda” de quatro horas, escada abaixo, dolorosamente devagar em uma das escadas do prédio. Manchester International Festival se responsabilizou por todos os aspectos financeiros e lidou, de modo exemplar, com o cuidado necessário para cada artista, como também The Whitworth Gallery. Eu estava interagindo com Marina, com a artista que ela é, ela não estava me contratando. Eu a percebi generosa, calorosa, engraçada e carinhosa. Ela tem uma experiência tão profunda, é uma montanha, magistral, conhece o terreno e desafios do trabalho duracional tão intimamente; o material dela é o tempo. Ela podia nos dizer com precisão aguda como iríamos estar presentes em termos de energia, temperamento etc. Era como se ela pudesse resumir o arco dos dezessete dias. Embora eu sinta muitas dúvidas em relação ao que faço, sempre reconheço isso como algo produtivo e útil, eu valorizo não saber até certo ponto, porque isso me faz curiosa, investigativa e não exclui meu sentimento de ser artista. Trabalhando ao lado de Marina nesse contexto, essa característica não foi diminuída. Eu me senti segura pelo trabalho que faço e pelos méritos; o trabalho recebeu excelente resposta, incluindo de Marina, ela mesma que nos encorajou o tempo todo.

O segundo projeto seguiu totalmente diferente, embora, também, foi uma comissão do Manchester International Festival 2011. Performei em um trabalho criado por Robert Wilson chamado The Life and Death of Marina Abramović. Também não foi uma colaboração. Fui convidada para fazer a audição, sugestão de Marina, e Bob Wilson me selecionou como também a várias outras pessoas para participar em workshops de desenvolvimento para o trabalho e, depois, para performar o trabalho completo, o qual tenho apresentado desde 2011. Como antes, um contrato com o festival e parceiros de turnê lidava com questões de pagamento e não estabelecia nenhuma relação com Marina ou Bob. E por que teria?

Novamente, durante todo o processo, Marina foi uma presença gentil, calorosa e muito disciplinada de se trabalhar, muito emocionada de assistir a esse projeto nascendo e muito espontânea em comunicar a gratidão em relação a todos nós. Ela é um soldado. Os ensaios de Bob são notoriamente longos, podem ser altamente tediosos, especialmente os ensaios técnicos, que são muito desafiadores de diferentes maneiras. Marina foi infalivelmente paciente, doando-se totalmente ao processo de Bob e sua visão. Eu aprendi muito a partir dessa experiência. Mas todas as pessoas no espetáculo agiam de maneira similar. É teatro e uma produção gigantesca, e não funciona sem que não haja o sentimento de inserção geral. Minha experiência de trabalhar com Bob foi com a voz, vinda do escuro, manipulando e moldando, com contínuo refinamento e precisão. Em vários momentos, ele emergia do escuro para entrar no espaço de performance e demonstrar, com o próprio corpo, uma colocação. Ele reiterava, continuamente, os mesmos princípios, sobre o que o teatro é, como se move, como é que se move no teatro, a rejeição contra o teatro naturalista. Ele foi especialista em observar falhas pontuais no trabalho e, finalmente, ao final do processo de desenvolvimento, em entregar o trabalho nas mãos da “companhia”.

Foi um processo tocante e fascinante, aprendi muito, de modos diferentes, e é por isso que me coloquei nessa situação. O trabalho de Bob e sua influência se infiltrou em muitas coisas que conheço culturalmente, e o trabalho com ele pareceu uma grande oportunidade para absorver e aprender em primeiro lugar. O processo também validou muitos dos pensamentos que eu tinha sobre como eu mesma trabalho e penso sobre performance, esculturalmente, arquitetonicamente, como se fosse uma prática de desenho. Tive ideias diferentes sobre esta prática também, mas havia, da mesma forma, uma sobreposição de observações ao redor, que descobri serem interessantes, na verdade, maravilhosas.

Você sabe como me posiciono em relação às praticantes e circunstâncias maravilhosas; acho que isso é fundamental para mim. Eu sou curiosa, tenho perguntas infinitas, elas permanecem em movimento e transformação e eu, de alguma maneira, tenho a oportunidade de fazer investigações que se organizam em um arco que atravessa tantos lugares, pessoas e situações.

 

NATHÁLIA MELLO: É engraçado refletir sobre o pensamento lacaniano que considera: “você é exatamente o que você diz que os outros são”; sua descrição sobre o profissionalismo de Marina Abramović espelha o seu próprio. Gostaria de finalizar perguntando: o que vem por aí? Sou uma testemunha apaixonada pelo seu trabalho. Faço atualmente um doutorado no Rio de Janeiro e meu projeto é exatamente o de organizar um festival internacional de performance inspirado nos formatos de City of Women dirigido por Mara (Vujić), FEM dirigido por Denys (Blacker) e My Earth Staglinec dirigido por Vlasta (Delimar), todas mulheres incríveis. Neste projeto, trato do seu trabalho, assim como falo de práticas como a de Xavier Le Roy e Marten Spangsberg, para exemplificar temas que capto e identifico na minha própria pesquisa como “solitude” e “silêncio”. Você gostaria de performar no Brasil? Tenho certeza que você adoraria observar os pássaros daqui…

 

KIRA O’REILLY: Seu primeiro comentário é muito bacana. Neste momento, estou concentrada em uma produção textual que faz parte da minha associação, mas há trabalhos artísticos, incluindo peças interdisciplinares, de biotecnologia e peças performáticas que estão amadurecendo e começando a se forçar contra as fronteiras da minha consciência.

Quero fazer uma outra série de trabalhos de movimento, talvez a partir da ideia de construir um solo com e no meu corpo e, depois, amplificá-lo através de outros corpos em um segundo trabalho com outros performers, e, quem sabe, expandindo novamente uma série, de talvez, três trabalhos. Idealmente, eu gostaria de desenvolvê-lo em uma situação de residência. O Brasil seria uma ótima ideia. Eu adoraria performar lá, é um lugar que eu gostaria de já ter visitado.

Sou super fã das diversas artes marciais e já fiz várias aulas. Como parte do meu interesse, comecei a aprender jiu-jitsu brasileiro e, mesmo não sendo muito boa nisso, amo essa prática. Se eu puder visitar o Brasil, gostaria de desenvolver uma performance e ir a algumas academias de jiu-jitsu para aprender com os melhores. Veremos.

 

 

PARA CITAR ESTE TEXTO

MELLO, Nathália. “Teia de Penas com Kira O’Reilly”. eRevista Performatus, Inhumas, ano 1, n. 4, mai. 2013. ISSN: 2316-8102.

 

Revisão ortográfica de Marcio Honorio de Godoy

© 2013 eRevista Performatus e a autora

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